Era uma vez uma bruxa malvada...
As bruxas, que eram personagens exclusivas dos contos de fadas e das histórias da Carochinha, invadiram nessa semana o noticiário dos jornais, desafiando a ciência e a modernidade. Confirmaram o provérbio espanhol que diz: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”. Uma delas, Adrosila, morreu em Manaus no dia em que a outra, de nome Vera, era presa no Rio de Janeiro.
Quando Wilson, de apelido Choro, aos sete anos, usando a língua do “p”, chamou o velho Buretama de fipilhopó daputapá, dona Adrosila, sua mãe, mostrou as suas garras de bruxa. Esfregou pimenta murupi na boca do menino, cujos lábios incharam.
- “Não permito que filho meu suje a boca com nome feio” – ela gritava. Na sua cruzada contra o palavrão, chegou a queimar muitas vezes a boca do filho com ovo cozido tirado da água fervendo.
Abro parênteses para contar que o velho Buretama fez por merecer. Cego, ele andava pelos becos do bairro de Aparecida, nos anos 50, com uma bengala, auxiliado aqui e ali pelos moradores. Um dia, pediu a Wilson para ajudá-lo a atravessar a Rua Xavier de Mendonça. Já do outro lado, antes de largar a mão do menino, puxou-a na direção do seu fiofó e deu um peido sonoro e demorado sobre ela. Isso lá era forma de agradecer uma boa ação? Wilson reagiu, usando a língua do pê para despistar a mãe. Mas a megera era bilíngüe.
A Fipilhapá
Ela sim, dona Adrosila, era uma fipilhapá daputapá. Por qualquer motivo sentava a porrada na criança indefesa, usando o que estivesse à mão: palmatória, cinturão, pau, vassoura, galho de goiabeira, chicote, fio elétrico, ferro de engomar, panela. Eram várias surras por dia, todos os dias. A primeira, de manhã cedinho, punia a incontinência urinária noturna do Wilson, que até aos quinze anos ainda mijava na rede de dormir.
O bairro não esqueceu o dia em que ele chutou uma bola enlameada, que quicou sobre a anágua engomada da mãe e depois sobre uma combinação de jersey que estavam no quaradouro. Foi covardemente açoitado, torturado e martirizado. Berrava como um cabrito degolado. Seu corpo exibia marcas da violência: cicatrizes, hematomas, queimaduras. O beco todo se comovia, ouvindo seus lamentos:
–“Ai, mãeginha, eu não faxo mais, mãeginha”. Aí é que a megera Adrosila batia ainda mais forte, exigindo:
-“Engole o choro! Engole o choro!”
Daí, ele ganhou o apelido de ‘Engole o choro’ que ficou, depois, reduzido apenas a ‘Choro’. Moído de porrada, acabou sendo engolido pela crueldade sádica da mãe. Tornou-se um menino amedrontado. Sua cara era a imagem da dor, do sofrimento, da melancolia, como ‘O Grito’ de Munch, com aquela boca aberta em forma oval, as duas mãos tapando os ouvidos, a cabeça de quem fez quimioterapia e a expressão dilacerada de horror nos olhos. Não dá pra perdoar dona Adrosila.
Nos contos infantis de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, a bruxa é sempre uma velha hedionda e repugnante, torta e encurvada, com uma boca enorme, nariz de papagaio, vestida sempre de preto, com uma vassoura na mão. Como na história do João e Maria, vocês lembram? Um lenhador pobre abandona os dois filhos na floresta porque não tinha como alimentá-los. As crianças encontram, então, uma casa, cujas paredes eram feitas de fatias de pão, janelas e portas de bolo, e o teto de chocolate.
A casa acolhedora pertencia a uma bruxa, que dessa forma atraiu os dois meninos, oferecendo-lhes abrigo, casa, comida e roupa lavada, mas sua intenção era engordá-los para depois devorá-los. No final, eles empurram a bruxa no forno e fogem. Dizem os entendidos que esse tipo de história oferece às crianças um palco onde podem representar e solucionar seus conflitos interiores e seus medos.
Bruxa da mídia
Uma nova edição dessa mesma história aconteceu agora no Rio de Janeiro. As bruxas condenadas pela Inquisição não eram bruxas, a imagem delas foi construída pelo Poder, mas essa sim é uma "bruxa" real do terceiro milênio. Sem vassoura, mas com turbante, ela tem nome, sobrenome, profissão e endereço: Vera Lúcia Sant´Anna Gomes, procuradora aposentada, mora num edifício de luxo em Ipanema, tem uma casa de veraneio em Búzios, ganha R$ 25 mil por mês e, como a bruxa da história de João e Maria, quis adotar uma criança de dois anos, abandonada em um abrigo pela mãe, que vive em situação de extrema pobreza.
No processo de adoção, a megera Vera visitou a menina no abrigo, várias vezes. Até que, em março, levou-a para casa, comprou-lhe roupas e brinquedos, e um mês depois a transformou num saco de pancadas. Puxava a menina pelo cabelo, esbofeteava e chutava o rosto e o corpo da criança, segundo depoimento à polícia feito pela empregada doméstica, que não agüentou ver tanto sofrimento e pediu demissão. “Se a menina não desse bom dia, já era um motivo para ela bater”, contou a empregada.
O Jornal Nacional mostrou as fotos com marcas da agressão sofrida pela criança que tinha os olhos inchados. Quando o Conselho Tutelar retirou a menina do apartamento, ela estava no chão, onde fica o cachorro. O JN reproduziu também uma gravação com a bruxa gritando para a criança:
- Maluca! Engole! Você vai comer tudo, entendeu, sua vaquinha! Pode chorar!
Denunciada através de um telefonema anônimo, Vera fugiu e, finalmente, depois de oito dias foragida, nessa quinta-feira, foi presa numa cela com nove mulheres, no Presídio Feminino Nelson Hungria, conhecido como Bangu 7, com direito a televisão e banheiro, porque tem diploma de ensino superior. Ela vai ser processada por torturar a menina de dois anos que pretendia adotar. Nessa terça-feira, dia 18, será julgado seu pedido de habeas-corpus para responder em liberdade.
A gente sabe muito pouco sobre a vida da procuradora. Nem sequer sua idade. Alguns jornais dizem que ela tem 57 anos, outros 63 e por ai vai. A empregada doméstica, o porteiro do edifício, a manicure, o seu professor de tarô deram informações muito picotadas sobre a bruxa, que é arrogante e racista, vive só, sem marido, sem namorado, sem amante, sem parentes, em dez anos foi visitada por um sobrinho quando a mãe dela, com quem vivia, morreu.
Pedofobia
Os jornais, parece, comeram mosca, não foi não? Não li um único depoimento dos ex-colegas de trabalho da procuradora. Não é possível que ela tenha exercido suas funções sem dar pistas sobre o seu estado doentio. Esse caso choca, justamente, por se tratar de uma profissional bem situada, com grana, que busca voluntariamente uma criança para adotar, num gesto aparente de generosidade, mas que acaba exercendo seu poder, torturando-a.
Os jornais, parece, comeram mosca, não foi não? Não li um único depoimento dos ex-colegas de trabalho da procuradora. Não é possível que ela tenha exercido suas funções sem dar pistas sobre o seu estado doentio. Esse caso choca, justamente, por se tratar de uma profissional bem situada, com grana, que busca voluntariamente uma criança para adotar, num gesto aparente de generosidade, mas que acaba exercendo seu poder, torturando-a.
O pior é que não se trata de um caso isolado de violências contra crianças. Há anos, tive a oportunidade de conversar na UERJ com o pediatra Lauro Monteiro, que criou a ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência. Ele testemunhou centenas de casos de violência contra crianças nas enfermarias de pediatria do Hospital Souza Aguiar, espancados pelos próprios pais.
O SOS Criança da ABRAPIA criou e operacionalizou o Disque Denúncia para todo o país e o Telefone Amigo da Criança (TECA) para o município do Rio de Janeiro. Num espaço de tempo relativamente curto, já atendeu 1.169 casos de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica somente no Rio. Um desses casos foi o de um pai, bêbado, que incomodado pelo choro do filho à noite, agarrou-o pelos pés e bateu a criança na parede quebrando-lhe os ossos. Existem muitas fotos no arquivo pessoal do doutor Lauro Monteiro, que podem ser acessadas via internet.
Felizmente, "bruxas" reais são presas, punidas e também morrem como as bruxas no imaginário popular. Sugiro que o juiz condene a procuradora a viver no bairro de Aparecida, em Manaus, porque lá os moradores não perdoam. Ela pagará por seus pecados, como dona Adrosila, que foi atormentada enquanto lá viveu. Quando a megera passava, a molecada, escondida detrás de uma árvore, de uma janela, na banca de tacacá, partia para o esculacho, como forma de punição. Cada um gritava com voz em falsete para não ser identificado:
– "Assassiiiiina! Fipilhapá daputapá!"