CRÔNICAS

Os dois filhos de arigó

Em: 29 de Dezembro de 1992 Visualizações: 17634
Os dois filhos de arigó

Eram dois arigós, dois cabras-da-peste. Um nasceu em Pernambuco, em 1886. O outro no Maranhão, em 1898. Um não sabia da existência do outro. Mas a borracha iria junta-los no início do século, na mesma cidade e, quase cem anos depois, o destino iria uni-los politicamente.

(Nor) destinos

Era uma vez um arigó, filho de um deputado estadual pernambucano. Migrou para Manaus em 1905, com 19 anos, carregando dentro da mala de couro o diploma de advogado, conquistado na Faculdade de Direito de Recife. Foi juiz municipal em Moura, Barcelos, Fonte Boa, chegando em 1930 a desembargador do Superior Tribunal de Justiça, com um currículo imaculado.

- Ele nasceu para praticar justiça, pois nele se reuniam a sabedoria, a sensatez e a serenidade. Foi juiz por vocação – escreveu Agnello Bittencourt em seu ‘Dicionário Amazonense de Biografias’.

Era uma vez outro arigó, nascido numa família maranhense pobre. Morto seu pai, embrulhou seus teréns numa trouxa e, com a mãe viúva, embarcou para Manaus, também no início do século. Enquanto trabalhava como professor na Escola Técnica de Comércio Sólon de Lucena, cursava a Faculdade de Direito do Amazonas, onde se formou em 1939. Elegeu-se deputado estadual. Foi secretário de Educação e Cultura. Fisicamente, era um “tampinha”.

- Mas esse homem de pequena estatura era um dos maiores em se tratando de capacidade mental – diz Agnello Bittencourt, que foi seu professor.

O pernambucano morreu com 70 anos em 1956. Chamava-se Arthur Virgilio do Carmo Ribeiro. O maranhense, Felix Valois Coelho, morreu dois anos depois, aos 60 anos. Mas ambos continuaram vivos, porque prolongaram sua existência, deixando uma herança genética, moral e intelectual, que criou raízes no Amazonas. Legaram, cada um, a seus descendentes, um nome honrado (ouviu, Amazonino?)

Candidaturas

Era uma vez dois amazonenses, descendentes de arigós, batizados com o mesmo nome de seus antepassados. Em 1978, os dois se uniram numa dobradinha nas eleições parlamentares, disputadas apenas por dois partidos: Arena e MDB. Arthur Virgilio Neto candidatou-se a deputado federal. Felix Valois, ao Senado. Ambos pelo MDB. Ambos contra a ditadura.

Em 1978, o ditador de turno era o general Geisel, responsável pela cassação arbitrária de muitos parlamentares e, em cujo governo foram assassinados o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. Bombas explodiram nas sedes da ABI e da OAB do Rio de Janeiro, na Editora Civilização Brasileira e em bancas de jornais. Um ano antes, a polícia paulista havia invadido a PUC, ferindo gravemente dois estudantes. Sindicatos estavam sob intervenção e as universidades infiltradas por dedos-duros. A barra continuava muito pesada. A anistia só seria conquistada um ano depois.

No entanto, o movimento popular se reorganizava. No dia 12 de maio de 1978 explode a greve de 1.600 trabalhadores da Scania, no ABC paulista, alastrando-se em seguida por Osasco, Campinas e pela própria capital.

Em Manaus, todos nós que tínhamos feridas não cicatrizadas causadas pela ditadura nos reunimos no Comitê Eleitoral Valois-Arthur. O convite veio do escritor Márcio Souza, que estava tentando juntar os cacos da esquerda baré.

O Comitê

Os dois descendentes de arigós compareceram à reunião do comitê. Pareciam Dom Quixote e Sancho Pança, investindo contra os moinhos do autoritarismo. Sonhadores, queriam mudar o mundo, o Brasil ou, pelo menos, o Amazonas. Reacenderam as nossas esperanças coletivas. O que Agnello Bittencourt havia dito dos pais servia para os filhos. Inteligentes, brilhantes, ágeis no raciocínio, corajosos, honrados, donos de um discurso bem articulado, eles representavam naquele momento, em Manaus, a proposta mais radical de combate à ditadura. Faziam política fundamentalmente porque tinham um projeto político e não por fisiologismo ou por razões de ordem pessoal. Isso era novo no Amazonas.

Essa foi a única reunião do comitê, a qual compareci, mas saí de lá entusiasmado. A Lei Falcão, aprovada dois antes, impedia a exposição de idéias na rádio e na TV. A propaganda tinha que ser feita na base do cochicho.

- Não voto neles. O Valois e o Arthur são comunistas – resistia minha tia Conceição, com um escapulário na mão. Votou neles. Eu tive de jurar que os dois tinham sido membros da Cruzada Infantil e do Apostolado da Oração. Uma mentirinha que Deus, por certo, perdoou.

Para variar, nenhum dos dois foi eleito. A Lei Falcão foi mais forte que os votos catados entre os familiares, os alunos e os cacos da esquerda.

No ano seguinte, com a anistia e o fim do bipartidarismo, os caminhos se diversificaram. Nós embarcamos no projeto mais radical surgido das greves do ABC, fundando o PT. Os dois ficaram no PMDB. Valois se elegeu deputado estadual e Arthur Neto deputado federal, em 1982, numa aliança com Gilberto Mestrinho, por nós questionada, mesmo se não apresentávamos uma alternativa viável.

As alianças

As alianças de Valois e Arthur, na década de 80, não impediram que eles mantivessem um compromisso com os movimentos locais. Eles estiveram presentes na eleição do sindicato dos metalúrgicos, no movimento dos professores da APPAM, na batalha do igarapé de Manaus, na defesa da Universidade. Eles e Mário Frota.

- Eles só estão aqui porque querem o nosso voto – berrou um companheiro do PT, considerando-se muito perspicaz. Ah, leitor, se o Átila Nunes, o Ézio e o Amazonino viessem buscar votos nessa seara, apoiando os movimentos sociais, em vez de apelarem para o clientelismo dos ranchos e das camisetas, juro que eles seriam bem-vindos. Só que eles não vêm. Como a nossa esquerda, às vezes, é tão provinciana e ‘petititinha’.

Muitas vezes, nós não compreendemos que numa sociedade plural, como a nossa, nenhum partido ou personalidade política pode se declarar dono do desenho da consciência dos trabalhadores e dos setores populares. A pluralidade de partidos em uma sociedade democrática representa a multiplicidade de opções. Fazer aliança com outros partidos é uma necessidade para conseguirmos mudanças. Não significa uma adesão a tal personalidade ou agremiação política, mas uma aliança com uma parcela da população que essas forças progressistas representam. Isso exige negociação, transigência. Não é, portanto, um evento eleitoral, mas uma constante na vida partidária.

Em 1989, Arthur e Valois assumiram a Prefeitura de Manaus, apoiados por um leque de alianças das forças de esquerda, que se foram suficientes para elegê-los, não bastavam para governar. Eles, então, redefiniram o quadro de alianças.

E é aí que a gente não concorda e critica. No plano federal, Arthur aproximou-se perigosamente do Governo Collor. Perigosamente porque transcendeu a esfera do administrativo para adquirir contornos políticos. Algumas vezes bateu, duro e forte, em seus antigos aliados de esquerda. Tudo isso como parte de uma estratégia política, é verdade, e não como uma postura pessoal fisiológica. Mas de qualquer forma, no nosso entender, um grave equívoco.

Manaus

Essa crítica, que merece ser aprofundada, não nos impede de reconhecer os avanços no governo da cidade de Manaus. Arthur e Valois receberam uma cidade esburacada, bombardeada, saqueada, suja e endividada. Os seus habitantes eram “cidadinhos” e não cidadãos.

A Prefeitura devia 100 milhões de dólares e estava com suas contas bloqueadas, porque os antigos prefeitos, que contraíram as dívidas, entre eles Amazonino, deram um calote. Você se lembra, leitor?

Nos últimos quatro anos, as finanças do município foram saneadas. Encargos sociais com atraso de até dez anos estão todos em dia. Os fornecedores foram pagos, bem como os 18 milhões de dólares da dívida interna e os 5 milhões e meio da dívida externa.

A administração que depois de amanhã está deixando a Prefeitura não contraiu nenhuma dívida externa nova. Pegou apenas, internamente, 970 mil dólares para as obras de saneamento do igarapé do Franco, de onde foram retiradas toneladas de lixo, com drenagem, construção de ponte e aterro.

Manaus ficou mais limpa, perdeu aquele ar de favelão. Foram feitas obras de drenagem e esgoto nos Campos Elísios, que não dão voto, mas proporcionam saúde e qualidade de vida. Foram rasgadas novas avenidas, duplicadas e arborizadas outras, como a via principal de acesso à Cidade Nova.

Nos últimos quatro anos, educação, saúde e transporte foram considerados setores prioritários. Houve um investimento de 100 milhões de dólares em educação contra 38 milhões no período de 1982-1988, cerca de 80 milhões de dólares para a saúde contra apenas 33 milhões em sete anos, mais de 800 ônibus novos circulando contra 308 carcaças de ônibus velhos, caquéticos e sujos.

Esses são os números do Relatório que Arthur e Valois entregaram à imprensa. Manaus está uma maravilha? Arthur e Valois são os reis da cocada preta? Claro que não. Existem muitos problemas. Os dois erraram. Tiveram divergências. Ambos são cheios de contradições e defeitos. No entanto, depois de Eduardo Ribeiro, essa foi a administração que melhor tratou a cidade de Manaus.

No momento em que Arthur e Valois estão deixando o poder, a população de Manaus deve um reconhecimento aos dois filhos de arigós. Se nós não cultivamos a nossa memória e não sabemos defender com unhas e dentes os nossos valores, então seremos estirpes condenadas a cem anos de solidão e não teremos uma segunda oportunidade sobre a terra, como a família Buendia, de Gabriel Garcia Márquez.

P.S. – O papel do jornalismo é criticar. Foi o que fizemos durante a gestão Arthur/Valois. Depois que eles deixaram o poder, escrevemos essa cronica, atendendo ao pedido insistente da sempre leitora Regina Nakamura. Gostaria que ela fosse lida como a homenagem de um arigó que perdeu no 1° e no 2º turnos, aos arigós derrotados no 2º turno. É melhor, um milhão de vezes, a derrota com Arthur e Valois do que a vitória com Amazonino, pelo que todos eles simbolizam.Torço pelo contrário, mas creio que Manaus vai sofrer mais do que charuto em boca de bêbado. Mesmo assim te desejo, leitor (a) um feliz ano novo.

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1 Comentário(s)

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marcio moreira maquine comentou:
03/08/2011
é aquela história, que a gente só da valor a alguma coisa depois que perde a mesma.
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