- Fumante ou não fumante?
- Não fumante.
A funcionária do check-in marcou o assento:
- A entrada é pelo portão B. O embarque é dentro de 40 minutos. Boa viagem!
Ele passou pelo controle da Polícia, já com um cigarro aceso. Durante a espera de voo que o levaria do Rio de Janeiro a Manaus, com escala em Brasília, fumou por conta uns dez cigarros. Hollywood. Comerciais dessa marca mostravam homens cercados de mulheres bonitas e cheirosas.
Por que um fumante inveterado como ele – uma chaminé ambulante – escolhia assento de não fumante. É que tal escolha o impediria de fumar durante o voo, o que era bom para a saúde, e, além disso, aumentava a possibilidade de viajar sentado ao lado de uma mulher.
Não. Não era mulherengo. Tampouco um santo. Para ele, a galinhagem nas alturas era tão incompatível como a paz na terra com homens de má vontade. Acontece que mulheres eram menos tabagistas. E com medo de avião, ele preferia sentar ao lado delas, por se sentir superprotegido, talvez por ter convivido em sua infância com uma mãe dominadora e nove irmãs.
Já os homens debochavam de seu pavor, diante das turbulências. Por isso, sentado na janela, ficou contente quando o comissário de bordo apontou a poltrona a seu lado e disse a ela:
- É aqui.
- Oba, uma mulher! – ele pensou. A estratégia dera resultado. Ela pediu licença e sentou. O voo não estava lotado. Com o rabo do olho ele a observava. Vestia, esportivamente, um conjunto cinza claro e um tênis branco de marca. Depositou uma valise de mão azul sob a poltrona, jogou para trás os cabelos castanhos, lisos e compridos e ficou segurando um pequeno baú branco. Teve dificuldades em colocar o cinto de segurança. Ele ajudou-a como um pai faria com sua filha.
Mulheres, geralmente, sabem conversar melhor que homens. Após a decolagem, ela tomou a iniciativa de puxar papo, tecendo comentários sobre as instruções de segurança, o colete salva-vidas, a máscara de oxigênio e as oito saídas de emergência do DC-10.
- Tudo isso é inútil. Este avião é muito seguro.
Discretamente, ele sondou sua sensibilidade social e política e começou a se exibir, mostrando estar bem informado sobre acontecimentos recentes no campo da política internacional. Analisou o confronto de Boris Yeltsin com o parlamento russo, comentou o plano de saúde de madame Clinton, fez um balanço da situação na Bósnia.
Quieta, ela ouvia atenta, com os olhos vivo e inteligentes, acompanhando tudo com um sorriso maroto nos lábios. Ele achou que havia conseguido impressioná-la. Mudou o tema para política nacional. Comentou os resultados das pesquisas de opinião que davam Lula na cabeça, ironizou as declarações do ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso sobre a paulada na inflação e o fracasso na caça a PC Farias. Quando haviam terminado o lanche oferecido pela Companhia Aérea, ele começou a falar apaixonadamente sobre a Amazônia.
Ela abriu o baú repleto desses trens que servem para alimentar a vaidade feminina, derrubando no chão um frasco de Mucovital ou coisa que o valha. Ele ajuntou e o devolveu. Com voz quase infantil, ela explicou:
- Remédio para mucosidade.
Em seguida, tirou uma escova e passou nos cabelos. Com muita habilidade, mudou o tema da conversa que – parece – não a interessava. Entrou no delicado terreno pessoal, com certo cuidado, porém, de sua privacidade. Chamava-se Lenina. Linhares por parte de mãe e Gomes pelo lado paterno. O pai morou em São Luiz e não gostou. Muito quente, praias perigosas. Agora, ela residia em Brasília.
- E o seu nome? – perguntou desinibida.
Ao saber que ele era amazonense, ela informou que tinha um tio que vivia em Manaus.
- Linhares? Seu tio é tocador de charamela?
- O quê?
- Charamela, um instrumento de sopro antigo. Tenho um amigo, excelente escritor amazonense, que escreveu um conto belíssimo “O tocador de charamela”.
Como ela demonstrasse certa perplexidade, ele acrescentou mais dados pessoais:
- Erasmo é o nome dele, filho da dona Mimi, casado com dona Diná. Mora lá no bairro de Aparecida, onde nasci.
O tempo passou com uma rapidez impressionante. No momento em que Lenina falava de suas duas tias, ambas de nome Maria José e de sua irmã de 15 anos, a Maria da Penha, o trem de pouso já havia baixado. Efetuado “o completo estacionamento da aeronave”, eis que a aeromoça se aproximou, pendurou um enorme carta de identificação no pescoço de Lenina e disse:
- Vamos, que a tua mãe deve estar te esperando.
Lenina, com seus dez aninhos e um século de inteligência, deu adeus e desembarcou em Brasília, No seguinte trecho da viagem até Manaus, sua poltrona foi ocupada por um obsceno deputado federal do PFL (vixe, vixe!), com pinta de corrupto. A Bela cedeu lugar à Fera. Para evitar qualquer papo com o flatulento depufede, colocou o head-fone e sintonizou o aparelho para seguir o roteiro musical. Por ironia – ele queria ver sua mãe mortinha no inferno se estivesse inventando – o cearense Belchior cantava as estratégias para vencer o medo: :
Foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez a tua mão.