CRÔNICAS

Uma cidade sem passado

Em: 12 de Maio de 1995 Visualizações: 2851
Uma cidade sem passado

Em locadoras de vídeo de Manaus pode ser encontrado o filme The Nasty Girl, cujo título em português é Uma Cidade Sem Passado. Este filme dirigido pelo cineasta alemão Michael Verhoven recebeu, em 1990, o prêmio Urso de Prata (melhor diretor) no Festival de Berlim.

Baseado em fatos reais ocorridos na Alemanha na década de 1979, conta a história de uma estudante – Sonja Wegmus Rosenberger – filha de um refugiado político e de uma professora de religião. Ela participa de um concurso de redação escolar sobre a Liberdade na Europa e ganha com sua redação o prêmio uma viagem a Paris.

Estimulada pelo reconhecimento e agora mais amadurecida, Sonja decide participar de outro concurso de monografia, escolhendo como tema de pesquisa Minha cidade natal durante o III Reich.

Leve e bem-humorado, o filme narra as dificuldades encontradas por Sonja para pesquisar a documentação existente nos arquivos do Bispado, da Prefeitura, do arquivo privado da família do prefeito no período nazista e do próprio jornal da cidade – o Pfilzinger Morgen. Fica evidente como os senhores da memória exercem o controle do passado, assim como o papel de instituições como família, escola, igreja no jogo de esconde-esconde.

Todos eles fecham suas portas. Ninguém quer que uma "judia e comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.

Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.

Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, denominada no filme de Pfilzing, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.

Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.

O debate sobre este filme exibido em Manaus há três anos, num curso ministrado aos professores do município pelo atual diretor do Museu Amazônico, Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, tornou-se extremamente oportuno no momento em que se comemora os 50 anos do final da guerra e o vereador Aloysio Nogueira de Melo (PT) apresenta na Câmara um projeto de lei, criando o Arquivo Público Municipal de Manaus.

Que documentação um jovem pesquisador pode encontrar hoje se estiver interessado em pesquisar a história de Manaus, em qualquer período, de sua fundação aos dias atuais? Quase nada. Ao contrário de Sonja, o jovem pesquisador não teriam nem com quem brigar, porque simplesmente não existem arquivos dignos de tal nome.

O munícipio de Manaus, hoje governado por Eduardo Braga (PPB vixe vixe), não tem uma política adequada para conservar e organizar a documentação sob sua responsabilidade. Ela foi destruída sistematicamente, entregue às traças e o pouco que foi salvo está amontoado em um depósito de forma desordenada, sem instrumentos de controle como inventários, índices e catálogos que permitam a sua identificação e facilitem a sua consulta.

A Prefeitura Municipal de Manaus gastou no ano passado na gestão Amazonino Mendes (PPR vixe vixe) mais de R$ 2 milhões com propaganda institucional e mais de R$ 10 milhões e meio com a manutenção da frota de veículos, áreas que não são efetivamente prioritárias, conforme já denunciaram os vereadores Serafim Correa (PSB) e Vanessa Grazziotin (PCdoB).
Qualquer administração municipal com um mínimo de sensibilidade e de compromisso com os interesses reais da população manauara estabeleceria como uma prioridade a criação do Arquivo Público Municipal de Manaus, o que já é um primeiro passo, extremamente importante  para que a cidade comece a construir o discurso sobre o seu passado.

P.S. Mãe e aniversário de 15 anos são suas coisas sérias, “muito sérias”. Neste Domingo, Dia das Mães, um carinho especial para todas as leitoras mães, incluído a dona Elisa e sua neta Natália Emilia de Alcântara Freire, que completa 15 anos.

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1 Comentário(s)

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Joana D'Arc Fernandes Ferraz comentou:
31/01/2024
Obrigada pelo texto maravilhoso, amigo Bessa! Queria lembrar também que a "cidade sem passado" pode ser estendida para todo o Brasil. Os principais arquivos da ditadura empresarial-militar brasileira permanecem fechados, do Exército, Marinha, Aeronáutica e da Polícia Investigativa (P2). Essa realidade de apagamento do passado também se faz presente em muitas instituições, públicas e privadas, a despeito da Lei de Acesso à Informação. Estou tentando desesperadamente o acesso aos arquivos da Fazenda Guarani, custodiados pela FUNAI. Até agora esse órgão ou alguns funcionários têm dificultado bastante a minha pesquisa de pós-doutorado. Reforço que não sei exatamente se é uma política desse órgão ou seus alguns dos seus funcionários.
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