No momento em que os índios ocupam há mais de vinte dias a sede da Funai, em Manaus, eu gostaria de surfar na onda perigosa dos tsunamis para discutir a importância das culturas indígenas para a sociedade brasileira.
Nas últimas semanas, os canais de TV e os jornais noticiaram como ondas gigantes devastaram no último 26 de dezembro mais de 500 ilhas no sudeste asiático e mataram cerca de 230 mil pessoas, entre as quais um grande número de turistas europeus. Isso foi amplamente divulgado. A mídia, porém, não deu o devido destaque ao que aconteceu em duas dessas ilhas – Andamán e Nicobar – no golfo de Bengala. Lá, ocorreu algo singular: enquanto muitos moradores indianos morreram, todas as pessoas pertencentes a cinco minorias étnicas conseguiram escapar.
As duas ilhas são habitadas por indianos e por seis povos aborígenes, dos quais apenas um – os Nicobarenses, com uma população de 30 mil indivíduos – mantém relação permanente e constante com a sociedade regional e nacional. Os outros cinco, com uma população reduzida de mil pessoas no total – vivem de acordo com sua tradição. São caçadores e coletores, que produzem fogo pelo atrito de pedras, usam arco e flecha para caçar, moram em cabanas feitas de folhas e galhos, não leem nem escrevem, mas conservam e transmitem seus saberes através da tradição oral. Apesar de viverem na área atingida pela onda, nenhum deles morreu, porque todos buscaram antecipadamente refúgio nas florestas e partes altas de seus territórios.
Como é que isso pôde acontecer?
Duas respostas diferentes foram dadas num pequeno debate reproduzido pela Agência DPA, de Nova Delhi. De um lado, representantes do governo indiano manifestaram a crença de que esses povos, como os animais, são dotados de um sexto sentido, que lhes permitiu intuir o perigo e agir instintivamente. A prova é – dizem eles – que os animais também conseguiram se salvar. De outro lado, o diretor do Instituto de Pesquisas Antropológicas (ASI – Anthropological Survey of Índia), V.K. Rao, se insurgiu contra esse tipo de enfoque, por considerá-lo como uma forma de animalizar povos que produziram conhecimentos refinados, observando a natureza, formulando e testando hipóteses e buscando respostas para problemas diversificados.
Na verdade, o sistema de alarme que evitou a morte desses grupos étnicos na Ásia funcionou graças a conjunto de saberes codificados na tradição oral. Circula entre eles um relato transmitido de geração a geração, que descreve uma grande inundação, ocorrida num passado distante. Esse relato oral conta que tal maremoto foi precedido por alterações na natureza: o movimento dos ventos, o cheiro da terra, o voo e o gorjeio dos pássaros, o estrondo de elefantes selvagens, o comportamento diferente das iguanas, das cobras, dos delfins, dos peixes e até mesmo a mudança na pressão atmosférica.
Bastou seguir o roteiro indicado na narrativa, responsável por arquivar essa experiência, para prever o que ia acontecer. O relato desempenhou, assim, aquela função de relâmpago que Walter Benjamin sempre sonhou para a ciência da história, ou seja, “iluminar no momento do perigo”. Eles escaparam da morte, porque souberam preservar, transmitir e interpretar conhecimentos tradicionais. Portanto, foram salvos, não por um sexto sentido, mas por sua cultura, que acumulou e sistematizou experiências coletivas.
Esse debate parece bastante ilustrativo das formas de encarar os saberes indígenas no Brasil. Existe uma corrente, lamentavelmente ainda dominante, que não reconhece que povos ágrafos que vivem nus, no meio da floresta são capazes de produzir e transmitir saberes sofisticados. No máximo, admitem a existência de um conhecimento simples, limitado e empírico sobre algumas plantas e animais.
No entanto, esses conhecimentos são altamente refinados. Com eles, os índios garantiram a biodiversidade, tornando-se os defensores da floresta, como garante João Barbosa Rodrigues, um botânico carioca, que viveu vários anos no Amazonas, no final do século XIX, como diretor do Museu Botânico de Manaus, onde aprendeu o Nheengatu. Os linguistas, quase sempre, nada entendem de botânica. E os botânicos desconhecem as línguas indígenas. Barbosa Rodrigues reuniu as duas qualidades. Por isso, ficou fascinado com a precisão e a propriedade dos sistemas de classificação dos índios e demonstrou sua indignação contra os que desprezam esses sistemas.
O seu livro intitulado “A botânica – nomenclatura indígena”, publicado em 1905, está repleto de exemplos, com nomes indígenas de plantas medicinais, algumas até então desconhecidas pela ciência ocidental, cujos nomes sequer foram codificados em línguas de origem europeia. Outras que foram incorporadas ao português. É o caso de uma planta conhecida pelos índios de língua da família tupi como tangarakaá. Em Pernambuco é conhecida popularmente como “pega pinto” e no Rio de Janeiro como “erva tostão”. Segundo Barbosa Rodrigues, essa planta é um poderoso remédio contra os males do fígado e o significado de tangarakaá exprime exatamente essa propriedade. Significa algo como “erva fresca para os doentes do fígado”. Por isso, Barbosa Rodrigues concluiu:
“O resultado da aplicação indígena no reino vegetal é tanta, que a sua nomenclatura é clara, precisa e exata, e alargou o campo do conhecimento das plantas. Os índios seguem um método sintético na classificação. Designam as espécies por nomes tirados de características das folhas, das flores, dos frutos ou de propriedades como a forma, o cheiro, o sabor, a dureza, a duração, a cor, o emprego, a consistência e contextura, o tamanho. São tão exatas as suas observações, que se encontram gêneros e subgêneros em uma só família como se fossem agrupados por um botânico” .
Depois de citar muitos outros exemplos sobre o rigor da taxonomia indígena, ele comenta: “Parece até que os índios leram e estudaram a 'Philosophia Botânica de Lineu'. E entenderam o seu sistema, tanto na classificação, como na determinação específica binária”.
No final de seu livro, Barbosa Rodrigues se pergunta como o índio, sendo um observador perspicaz e inteligente, capaz de criar uma taxonomia com método e rigor científico, é desqualificado como atrasado e primitivo. Ele mesmo responde, num tom panfletário:
“Essa calúnia é difundida pelos ambiciosos e sanguinários que se locupletaram explorando os índios e procuram uma desculpa para esconder seus crimes, condenando os descendentes dos desgraçados a passar à posteridade como brutos, sem sentimento e sem cultura”.
Muito atual o velho João Barbosa.
PS.1 – Quantos dias se passaram do Governo Lula, sem que as terras indígenas Raposa/Serra do Sol fossem demarcadas em áreas contínuas? No momento em que escrevo, dezenas de índios continuavam ocupando a sede regional da Funai, em Manaus, há mais de vinte dias. Os índios querem a substituição do administrador local, considerado incompetente, a demarcação da terra dos Mura e a formulação de uma nova política indigenista. A FUNAI, o Ministério da Justiça e o Poder Judiciário mostraram intransigência, lavaram as mãos e chamaram a Polícia para resolver o problema, manifestando ignorância sobre a importância das culturas indígenas para o Brasil.
P.S.2 (acrescentado dez anos depois) - A Folha de São Paulo (23/12/2014), publicou matéria assinada por Marcelo Ninio, enviado especial a Aceh (Indonésia), reproduzida abaixo:
CANÇÃO DE NINAR: MÚSICA INFANTIL QUE ALERTA PARA O RISCO DE TSUNAMI AJUDOU A SALVAR HABITANTES DA ILHA DA INDONÉSIA DA TRAGÉDIA DE 2004.
"Uma canção de ninar pode salvar muitas vidas. Essa foi uma das lições do tsunami na Indonésia, país castigado pelo desastre que completa dez anos na sexta (26). A lição veio da pequena ilha de Simeulue (pronuncia-se simelu), pouco mais que um ponto no mapa da Indonésia, formada por um arquipélago de 19 mil ilhas. Paraíso de surfistas e mergulhadores, Simeulue era o ponto mais próximo do epicentro do terremoto que gerou tsunamis devastadores no oceano Índico em 2004. Mais de 230 mil pessoas morreram em 14 países, 70% delas na Indonésia".
"Apesar de sofrer o primeiro impacto, Simeulue escapou com poucas baixas graças a um costume mantido de geração em geração há mais de cem anos. A ilha foi arrasada por um tsunami em 1907 e desde então os pais passaram a cantar uma canção de ninar a seus filhos alertando para o perigo".
"Muito antes de a expressão japonesa tsunami (maremoto) entrar no vocabulário do mundo, as crianças de Simeulue já conheciam do berço a palavra 'smong' - onda gigante em devayan, o idioma local. Embalada por versos poéticos e pitadas de contos de fadas, a canção de ninar ensina que, quando o mar recua, é hora de fugir para as montanhas, porque uma inundação está a caminho".
"Na manhã daquele domingo, dez anos atrás, os moradores de Simeulue sabiam o que fazer após o terremoto de 9,3 na escala Richter, um dos mais potentes já registrados. Com uma população de 80 mil pessoas, a ilha teve sete mortos no tsunami".
"A tradição não está só na canção de ninar, mas em toda a cultura popular local. Natural de Simeulue, o fotógrafo Ampuh Devayan, 53, conta que cresceu ouvindo histórias sobre o smong em reuniões familiares e vendo cenas do tsunami de 1907 retratadas em pinturas populares. Cenas do tsunami de 1907 permanecem vivas em sua memória, como "búfalos pendurados nas copas das árvores".
"Devayan vive em Aceh, a região mais atingida pelo tsunami de 2004, a 360 km de Simeulue. Ao sentir o terremoto, gritou instintivamente o alerta que povoou a sua infância, e que ele passou para os três filhos. "Smong!"
"Sob a resistência da mulher, natural de Aceh e descrente da tradição, abasteceu-se de arroz e água e colocou a família no carro para se refugiar num local elevado. A mulher hesitou antes de entrar no carro e Devayan deu o ultimato: "Ou vai ou fica".
"Ela foi, mas os vizinhos ficaram. Devayan diz que avisou que era hora de partir, mas não o levaram a sério. "Me chamaram de louco".
Desde 2004, houve grande melhora no sistema de alerta, com uma rede de sensores que une os países da região. Mas a sabedoria tradicional é levada a sério pelos especialistas.
"O Centro de Pesquisa do Tsunami de Aceh promove programas educacionais inspirados no "smong" para treinar as crianças desde cedo a saber o que fazer se a onda voltar. Como Aceh está em uma das áreas de maior atividade sísmica do mundo, a questão não é se haverá um novo tsunami, mas quando.
O "smong" também está prestes a virar revista em quadrinhos, por iniciativa de uma ONG de Aceh. É a forma de adaptar a canção de ninar de Simeulue para uma linguagem de que as crianças gostam, diz Yulfan, um dos responsáveis pelo centro cultural Komunitas Tikar Pandan.
A experiência de Simeulue é tema de estudos acadêmicos que frisam a importância da tradição popular na preparação para desastres naturais. "A sabedoria nativa deveria ser adaptável, transferível e modificada conforme as condições de cada comunidade", diz a pesquisadora Syafwina Syafwina, da Universidade de Kyoto (Japão).
Para quem cresceu na cultura do "smong", o sistema de alerta de Simeulue faz parte de uma filosofia de vida - observar a natureza para respeitá-la, mas sem temê-la.
"Aprendemos a ler o comportamento dos animais. Quando os pássaros voam para as montanhas, os cães ficam nervosos e as formigas saem do chão, é sinal de que alguma coisa está errada", garante.