.“Guardai-vos dos gandras peçonhentos que chafurdam na lama pantanosa das charnecas”. Gandra é nome, em português arcaico, de um sapo venenoso que vive no igapó. A frase foi pronunciada pelo padre Antônio Vieira, em sermão que pregou numa igreja do Grão-Pará, na segunda metade do século XVII, exortando os paraenses a terem muito cuidado com o capiroto.
“Fregapane, no prende el pane de la boca dei bambini”. Fregapane, em italiano, significa “rouba-pão”. Com essa frase , o papa Pio VI censurou em 1790 Maria Antonieta, por ela estar tirando o pão da boca das crianças . Como todos sabem, a rainha da França debochou dos manifestantes famintos que pediam pão nas ruas de Paris, mandando-os comer brioche.
‘Gandra Fregapani, to-ulápayi ewopánepe-za”. Foi isso que falou na semana passada , na maloca do Surumu, um índio makuxi. A tradução da frase é: “ Seus contadores de potoca , eu destruo as armas de vocês ”. Dessa forma, vemos que a mistura dos dois nomes – Gandra Fregapane – em vez de significar, como era de se esperar , “o sapo que roubou o pão da boca das criacinhas”, quer dizer, em língua Makuxi, “ loroteiro ”, “ cascateiro ”, “ mentiroso ”. Sabe por que ?
Sapo Peçonhento
O advogado Ives Gandra Martins, de 70 anos, professor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, publicou na semana passada, num jornal de circulação nacional, um artigo . Nele, destila seu veneno contra os Makuxi ( que ele chama de nakixi), Wapixana (chamados de xapixanos), e outros três grupos, porque esses índios, em número de 876, habitam áreas demarcadas pelo Governo Federal que totalizam 599 mil hectares. Numa operação destinada a impactar o leitor , ele converte as terras indígenas em cifras bilionárias:
“Como cada hectare tem 10.000 mil metros quadrados, multiplicando 599.000 mil hectares por 10.000, receberão eles 5.990.000.000 m2; ou seja, 876 – repito 876 - índios receberão 5 bilhões e novecentos e noventa milhões de metros quadrados do território nacional, passando a ser titulares destas terras como constituindo povos diferentes dos brasileiros ”.Depois, Gandra enche a boca, arredondando cifras bilionárias e assustadoras: “Considero um escárnio o que o governo federal acaba de fazer, outorgando a 876 índios 6 bilhões de metros quadrados do território nacional ”. Propõe que essas terras sejam “melhor aproveitadas pelo povo empreendedor do Brasil”. Condena Lula por manter “indiscutível simpatia pela população indígena e profunda antipatia aos fazendeiros”, e discute um projeto seu: quem não cursar antes uma Escola Superior de Política deve ser proibido de governar.
Ives Gandra, presidente de um conselho da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, não está preocupado com os interesses nacionais. Seu artigo simula defender o Brasil, mas o que ele faz mesmo é proteger seus clientes particulares. Por isso, não vê “o outro lado” do país: os índios. Diz que Lula deu terra aos índios, quando isso não é verdade. As propriedades dos fazendeiros são privadas, mas as terras indígenas são bens da União , conforme determina o art. 20 da Constituição de 1988. O presidente apenas reconheceu que os índios têm a posse e o usufruto legal desse território.
Os olhos de Gandra não enxergam a realidade. O cara parece o tio Patinhas: só vê cifras. No entender dele, se 50 pedreiros gastam um mês para construir uma casa, 1.500 pedreiros levam um dia e 2.160.000 pedreiros um minuto. Aliás, 29.600.000 pedreiros gastariam apenas um segundo. Basta aplicar uma simples regra de três. A realidade que se lixe.
É inacreditável como um homem de 70 anos, bilionário, que já viveu 1.847.520.000 segundos – repito, quase dois bilhões de segundos – não consegue sequer grafar corretamente os nomes das etnias. Eves Gronda não vê os índios, suas línguas, suas culturas, seus conhecimentos refinados. Vê apenas os interesses de sua clientela. Por isso, pessoas que, como Aves Gantra, nunca estudaram o tema, deviam ficar proibidas de escrever sobre ele em jornais e revistas do país.
O “Rouba-pão”
Quem jura que estudou o assunto é o gaúcho Gelio Fregapani, coronel reformado do Exército, fundador do Centro de Instrução de Guerra na Selva, na época da ditadura militar. Ele também participou, nessa semana, da ofensiva histérica contra os índios. Fez um relatório para a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), noticiado há dias pelo “Estadão”. Trata-se de cópia mal feita do desmoralizado livro “Máfia Verde ”, editado há mais de dez anos por um cavernoso movimento de extrema direita, conforme denúncias do editorial do www.amazonia.org.br .
O coronel garante que a reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima, atenta contra a soberania nacional e pode criar conflito entre as Forças Armadas e o governo federal. Suas – digamos assim – idéias, estão no livro que cometeu, há cinco anos - “Amazônia – a grande cobiça internacional” - onde repete uma série de besteiras. Para ele, a população indígena não foi reduzida, mas ampliada, porque mais de 30 milhões de brasileiros, que se consideram brancos, têm sangue indígena. Ai ele barbariza, defendendo não uma eliminação física do índio, “mas das sociedades indígenas por serem anacrônicas”. Diz:
- “A sociedade medieval já acabou, as sociedades dos samurais e dos mandarins também. Por que tem de ser mantida uma sociedade que não cabe no mundo moderno?”
Pois é, né? Por que? Francamente !!! Se a regra é eliminar formas anacrônicas de pensar, então Fregapani, a vanguarda do século XI, teria que se suicidar.
O coronel Fregapani acha que as terras indígenas devem ter outra utilidade. “Se nós plantarmos 7 milhões de hectares de dendê na Amazônia, extrairemos 8 milhões de barris de biodiesel por dia, o que equivale à produção atual de petróleo da Arábia Saudita, que tende a declinar”. Quanto ao desmatamento, ele acha que os madereiros não fazem mal à floresta, porque “quando uma árvore é abatida, aqueles filhotes que estão em redor crescem numa velocidade espantosa na disputa para ver qual dos indivíduos vai substituir a árvore que foi abatida”. Os índios atrapalham o projeto dendê do coronel.
Granda e Fregapani nunca disseram uma palavra sobre o relatório final, de agosto de 1968, da CPI presidida pelo deputado brigadeiro Haroldo Veloso, que apurou a venda de terras da Amazônia a estrangeiros. As terras em mãos de americanos - empresas e pessoas físicas – somavam 32.341.326 de hectares, ou seja, 323.413 km 2.
Granda nunca converteu essa cifra em metros quadrados. Quanto se trata de terras da União ocupadas por índios, os dois esbravejam. Afinal, é fácil bater em quem está por baixo. Mas são incapazes de abrir a boca contra a grande propriedade fundiária privada. Não compensa brigar com poderosos ou usar sua inteligência e conhecimentos jurídicos para defender os índios como fizeram Dalmo Dallari e a sub-procuradora geral da República, Déborah Macedo Duprat.
O cadáver do marechal Rondon deve ter se revirado todo na sepultura ao ouvir os contadores de potoca. Rondon, esse sim, era macho, um exemplo para o exército brasileiro. Instituiu como princípio para orientar o contato com os índios o lema “Morrer se for preciso, matar nunca”. Gandra e Fregapane, dois bandeirantes do século XXI, representando o que existe de mais atrasado, bárbaro e arcaico no pensamento brasileiro, inverteram: “morrer nunca, matar se preciso for”. Sobretudo se houver necessidade de desocupar a terra de índios para plantar dendê, soja ou arroz. Por isso, temos de dar razão ao makuxi, quando ele diz: “ Gandra Fregapani, to-ulápayi ewopánepe-za”.