.Ele é estudante de direito da Universidade Federal do Amazonas. Calouro. Curioso e indagador, está descobrindo coisas novas. Seu nome: Rafael Cyrino. Marcou um encontro informal com os colegas, na Faculdade de Direito, para organizar um júri simulado, um trabalho exigido pelo professor de português, valendo pra nota.
Lá vai ele, às 14h00, debaixo de um sol escaldante, numa temperatura beirando os 40º C. Está vestido decentemente e, sobretudo, corretamente para o calor amazônico: tênis, camisa de meia e bermuda. Na porta da faculdade, é barrado por uma funcionária - uma simpática segurança.
- De bermuda, você não pode entrar, meu bem. O diretor José Russo não permite.
O Rafa é um menino respeitador, recebeu boa educação, não é bagunceiro. Mas não é leso. Argumentou contra a norma burra. Disse que não ia assistir aula, mas simplesmente reunir-se com colegas para preparar um trabalho. Mesmo assim, lhe disseram que, de bermuda, não entrava, porque o curso de direito é um curso de status, de respeito e blá-blá-blá.
Ele contra-argumentou: "Por que tanta formalidade, meu Deus? Conheço a história da faculdade, me orgulho dela, mas considero bobagem considerar o curso de direito como melhor do que os outros. Essa visão arcaica deve ser mudada. Nosso curso é tão digno quanto o de jornalismo, filosofia e biblioteconomia. Por que no Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) é permitido o uso de chinelos, bermudas e camisetas e aqui não? Tanta formalidade, prá quê? Prá dividir na mesma praça o espaço com tucunarés e jaraquis? Isso é hipocrisia".
A simpática segurança se mostrou inflexível: o Zé Russo, o grande guardião da ordem, havia ditado normas rígidas. A solução foi um colega que mora perto da faculdade ir buscar uma calça comprida e emprestar ao Rafa. "Ao vestir a calça, me senti melhor, agora sim era um estudante de direito, agora tinha moral suficiente para entrar em tão honrosa instituição educacional".
Depois do fato, indignado, o Rafa me escreveu. Ele escreve bem à beça. O que repassei para ti, leitor, foi o que copiei de sua escrita. Sua carta começa afirmando: "Talvez não se trate de algum tema comumente discutido por você, mas vale a pena ler! Espero que goste e se quiser publique. Desde já agradeço. Abraços".
O Rafael não disse, mas digo eu. Mantendo essas normas sem sentido, o José Russo, diretor da Faculdade de Direito, concorre com o Lupércio Ramos ao primeiro prêmio do FELESAM - Festival da Leseira Amazônica. Se eu fosse estudante de direito, data venia, impetrava um habeas-corpus, conseguia uma liminar, abria um processo, iniciava um inquérito, sapecava um mandado de segurança contra o Zé Russo, exigindo a entrada de bermuda e sandália. E mandava latinorum bermudorum em cima do Zé Russo: "Amicus Ius, sed magis amica bermuda mea". O resto, "papus fiadus est".
O Rafael Cyrino, calouro de direito, está descobrindo coisas novas. O mundo estará salvo, enquanto houver na face da terra, alguém como ele, disposto a lutar contra normas burras. Lembrei que há dez anos me impediram de entrar no Teatro Amazonas por estar calçado com sandálias. Na ocasião, escrevi uma crônica, que recupero agora para a homepage, intitulada "O Pé do Peduto". O Peduto morreu, mas o Zé Russo está vivo. Vivíssimo.
P.S. - Ver também: 1) O pé do Peduto http://www.taquiprati.com.br/cronica/598-o-pe-do-peduto-de-sandalias-no-teatro-amazonas
2) A colonialidade e a bermuda do Rafa http://www.taquiprati.com.br/cronica/1117-a-bermuda-do-rafa-e-a-colonialidade
Cartas do leitor
Pretendo abrir semanalmente um espaço para as cartas dos leitores. Durante a semana, recebi 65 cartas e três telefonemas, todos eles se solidarizando com a coluna. Publico uma das cartas, com a devida permissão do seu autor, porque acho que ela sintetiza o pensamento das demais.
“Caro Bessa,
Quando soube que sua coluna estava sendo novamente publicada, imediatamente me cadastrei para recebê-la a cada domingo. Como você sabe, morando em Brasília eu não consigo comprar o jornal A Crítica. Apenas posso acompanhá-lo pela Internet. E achei excelente a possibilidade de receber as tuas crônicas, regularmente, na minha caixa de correspondência eletrônica.
Porém, além de me cadastrar, divulguei a boa nova para cerca de 250 pessoas com as quais mantenho correspondência regular, pela Internet. Esses correspondentes estão em diversos estados do país e em diversos países da América do Sul, da América do Norte e da Europa. São pessoas que trabalham sobre temas relacionados à Amazônia ou que têm algum interesse pela região, e que colaboram ou mantêm algum contato com o Núcleo de Estudos Amazônicos da Universidade de Brasília, do qual participo e que coordenei até poucos meses atrás. São também leitores da Terra das Águas, revista de estudos amazônicos da qual sou editor e cujo Conselho Editorial tem o privilégio de contar com tua participação.
Com satisfação e renovado otimismo pela volta do Taqui pra Ti, apresentei tua coluna e o teu trabalho aos que ainda não os conheciam. Agora, vejo-me diante do constrangimento de ter que informar a todas àquelas 250 pessoas que tua coluna está sendo, no primeiro ano do século XXI, CENSURADA pelo principal jornal do estado do Amazonas.
Que lástima! Mas não podemos dizer que isso fosse totalmente inesperado. Embora você, em tuas crônicas, tenha a capacidade de tornar cômico o obscurantismo (para dizer o mínimo) que impera nas esferas do poder do estado do Amazonas, esse obscurantismo é real e, em suas manifestações concretas, é trágico.
Você já sentiu isso na própria pele e agora volta a ser sua vítima. A nós, teus leitores, amigos e admiradores do teu trabalho, só nos resta colocarmo-nos ao teu lado, condenando firmemente essa ato verdadeiramente repugnante do jornal A Crítica.
O Amazonas é um dos mais belos estados do Brasil. Seu povo - criativo, alegre e cordial - não merece os governantes que tem, que o insultam a cada dia. Não merece, tampouco, a imprensa que tem que, em atitude de grande desrespeito, parece querer apenas desinformá-lo, confundí-lo e ludibriá-lo.
Um abraço fraterno,
Kelerson.