CRÔNICAS

A normose do ministro: mortalidade indígena

Em: 13 de Março de 2005 Visualizações: 11927
A normose do ministro: mortalidade indígena
As mortes sucessivas, quase diárias, de crianças Kayowá das aldeias de Dourados (MS), por fome, subnutrição e, agora, infecção hospitalar, estão escandalizando a parte sadia do Brasil, mas foram minimizadas pelo futuro ex-ministro da Saúde, Humberto Costa. Com aquela sua vozinha de corneta rachada, ele disse que o pessoal estava exagerando, e usou a estatística para afirmar que “a mortandade não é maior do que nos anos anteriores”. Admitiu - é verdade - que “uma morte é sempre preocupante”, mas discordou do tom 'alarmista' dos jornais: “As mortes estão dentro do número do que normalmente acontece”. Ou seja, as crianças indígenas estão morrendo, mas está tudo sob controle, dentro do previsível, do normal.
O que é, afinal, 'normal' ? 'Normal' é tudo aquilo que costuma acontecer, o que ocorre sempre, sem que se registre nada de diferente, de raro, de excepcional ou de extraordinário. Aí, aquilo que é freqüente e usual passa a ser aceitável, com as pessoas achando que se trata da coisa mais lógica e natural do mundo, compreensível e legítima. Daí, começa, então, a se tornar norma e padrão, funcionando como regra, modelo e referência. De modo geral, é isso ai, embora o conceito de normalidade sofra algumas variações de acordo com o momento histórico, com a geografia e com a cultura.
A normalidade
Desde quando alguém morrer de fome pode ser considerado um fato normal? Essa foi a pergunta indignada feita pelo jornalista Clóvis Rossi. Se ele me permitir, sem querer ser pretensioso, gostaria de dizer que eu sei desde quando. Posso até mesmo dar o dia, mês e ano: 22 de abril de 1500. Desde essa data até os dias atuais, tem gente normal invadindo normalmente as aldeias indígenas, roubando normalmente suas terras, desmantelando regularmente suas roças, esgotando as reservas de caça e pesca, desorganizando suas formas tradicionais de vida e seus sistemas de produção, o que significa uma condenação à fome e à morte. Taí os bandeirantes de São Paulo e os arrozeiros de Roraima que não me deixam mentir.
As conseqüências foram devastadoras. Quem escapou das balas, das epidemias e da escravidão, acabou morrendo de fome e desnutrição. A documentação da época parece reforçar esses dados. Frei Gaspar de Carvajal, o cronista de Orellana, viu em 1542 as margens de todo o rio Amazonas entupidas de gente. O padre Acuña, que em 1639 navegou de Quito até Belém do Pará, viu aldeias tão próximas umas das outras, que em uma era possível escutar o barulho do machado feito na outra. Trabalhos atuais que usaram uma metodologia rigorosa, como o de William Denevan, estimam uma população de 6.800.000 índios vivendo no ano de 1500 na região denominada Grande Amazônia.

O que aconteceu com esse mundo de gente ? O vigário de Belém do Grão-Pará, cônego Manoel Teixeira, descreve a tragédia, numa carta escrita ao rei de Portugal em 5 de janeiro de 1654. Irmão do governador Pedro Teixeira, o cônego tinha muitos escravos índios. Com quase 70 anos de idade, à beira da morte e com medo de ir pro inferno, se confessou, escrevendo carta, que está no Arquivo de Évora. Nela, conta as atrocidades cometidas pelos portugueses, afirmando que a violência, o excesso de trabalho e a fome mataram, em trinta e dois anos, no Pará, “mais de dois milhões de índios de quatrocentas aldeias ”.
Os demógrafos da Escola de Berkeley, nos Estados Unidos, confirmaram essas conclusões estarrecedoras. Woodrow Borah, em 1964, calculou que no primeiro século de colonização, houve 90% de despovoamento (ou a razão de 10 para 1). Dois anos depois, em 1966, os estudos de Henry Dobbyns apontaram um índice de declínio populacional de 20 para 1, enquanto William Denevan, em 1976, estimou em 35 para 1.
Se 'normal' é tudo aquilo que costuma acontecer, se há 500 anos os índios vem sendo sistematicamente exterminados, se nos anos anteriores houve igual mortandade, então o futuro ex-ministro da Saúde parece estar coberto de razão, quando diz que é normal criança indígena morrer de fome ou de infecção hospitalar. Será mesmo?
Um caso patológico
Segundo Pierre Weil, doutor em psicologia pela Universidade de Paris, existe uma crença enraizada de que “tudo o que a maioria das pessoas pensa, sente, acredita ou faz, deve ser considerado como normal e, por conseguinte, servir de guia para o comportamento de todo mundo e mesmo de roteiro para a educação”.
No entanto – ele diz – muitas normas sociais podem levar indivíduos, grupos e coletividades inteiras ao sofrimento moral ou físico. Por isso, é preciso questionar seriamente a normalidade de certas 'normas' ditadas pela sociedade através daquilo que é freqüente e usual. Quem não questiona, adoece.

O futuro ex-ministro Humberto Costa não questionou. Médico, com pós-graduação em Medicina Geral Comunitária e em Psiquiatria, seu discurso apresenta características de uma doença psicopatológica, aparentada com a psicose e a neurose, denominada de 'normose' por Pierre Weil. Trata-se de uma forma de comportamento visto por todos como normal, embora na realidade não o seja. É uma espécie de escoliose do cérebro, que distorce o pensamento.
Quando a maioria das pessoas está de acordo com uma determinada opinião, atitude ou ação, forma-se um bloco consensual que dita a norma e caga a regra. Aí a normose se torna um hábito de pensar e de agir aprovado por quase todo mundo, em base ao que costuma acontecer. Você acha que aquilo é certo, porque a maioria das pessoas pensa da mesma forma. Segundo Pierre Weil, co-autor do livro “Normose – A patologia da normalidade”, essa doença ataca pessoas sem que elas tenham consciência de sua natureza patogênica.
A normose tem cura? Weil acha que sim, desde que o doente, demitido de seu cargo, se submeta a uma 'normoterapia' que lhe faça entender que aquilo que a maioria pensa, sente, acredita ou faz não deve ser um guia para nossas vidas. Se você leitor, considera anormal o que o quase-ex-ministro acha normal, então você está vacinado contra a normose. O Brasil precisa, na realidade , não de um ministro da saúde normal, burocratinha de meia tigela, conformista, mas de alguém extraordinário, especial, excepcional, fora do comum, e por isso mesmo, 'anormal', capaz de se indignar e de se rebelar contra a 'normalidade' da morte de crianças indígenas por fome, e não de aceitá-la passivamente como um dado inquestionável .
Humberto Costa, futuro ex-ministro, quase ex-ministro, já foi um cara fora-de-série, fora da norma, quando era secretário do Sindicato dos Médicos de Pernambuco. Era um dos nossos . Hoje, suas declarações conformistas me fazem lembrar um provérbio turco recuperado pelo meu amigo, o historiador Marco Morel: “Quando o machado entrou na floresta para destruí-la, as árvores disseram: - o cabo dele já foi um dos nossos ”. O futuro ex-ministro não é o único cabo de machado que ameaça o bosque de nossas esperanças .
P.S. – Lula governa normalmente há 802 dias e ainda não homologou a demarcação da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol, conforme é de direito. Esse PT, eu vou te contar!

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3 Comentário(s)

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joana ferraz comentou:
07/07/2014
FANTÁSTICO! NESTES TEMPOS ELEITOREIROS DEVE SER LEITURA OBRIGATÓRIA.
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Claudia Dedeski comentou:
26/02/2014
Quase 10 anos se passaram e o tema continua atualíssimo! Texto lindo de tão simples de entender!. Obrigada, Prof.! Contato de Claudia Dedeski
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Cris comentou:
28/02/2012
Querido Professor excelente texto, adorei cada linha especialmente: Trata-se de uma forma de comportamento visto por todos como normal, embora na realidade não o seja. É uma espécie de escoliose do cérebro, que distorce o pensamento. De fato o email e a crônica se completam e com o mesmo sentido; melhor questionar ou mesmo ser chamado de anormal, não importa; do que adoecer na temeridade do conformismo endossando atrocidades. Bela noite pra ti. Carinhos
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