Se aveche, maninhazinha / Em logo fugir de lá (Torrinho)
Passei o carnaval no Rio imobilizado por uma forte gripe. Aproveitei, então, para ler e curtir músicas, entre as quais o cd ‘Porto de Lenha’, do compositor amazonense Torrinho, gravado em 1991. São onze composições de rara beleza, feitas em parceria com dois dos nossos melhores poetas vivos: Aldisio Filgueiras e Aníbal Beça.
A música me transportou. Meu pensamento empinou, que nem papagaio de famão, embiocou pelas nuvens “num vôo cego e certeiro”, e foi descaindo, descaindo, até Manaus. Aterrissou no sambódromo, onde desfilava uma escola de samba com o sugestivo nome de Grêmio Recreativo Escola de Samba Sem Compromisso.
O samba-enredo da Sem Compromisso – segundo os jornais locais - pretendia proporcionar ao público uma verdadeira viagem ao Norte Europeu, mais precisamente à Escandinávia do século IX, formada então pelos reinos da Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia.
- Que maravilha! Isso dá samba – pensei. Todo povo tem uma vontade danada de conhecer outros povos. O contato entre culturas diferentes cria diálogo intercultural, o que é muito saudável, pois estimula a curiosidade, a tolerância e o respeito pelo outro. Portanto, aquela seria uma oportunidade singular de expor ao amazonense quem foram os antigos escandinavos, como viviam, seus mitos, suas crenças, suas técnicas e seus saberes.
A boiúna da Suécia
O que é que a Sem Compromisso está mostrando no sambódromo de Manaus? Sem poder ver o desfile, deixo minha imaginação voar. Visualizo carros alegóricos e fantasias. Os vikings louros, usando capacetes com chifres, apresentam seus barcos tão sofisticados e leves que podem ser dobrados e guardados no bolso. Demonstram assim porque são conhecidos como “o povo de Thor”.
Aliás, a figura de Thor - o deus do trovão, da chuva e dos raios - merece destaque especial nesse desfile por mim imaginado. Ele vem sambando num carro puxado por dois bodes beiçudos, segurando seu martelo mágico de guerra e lançando relâmpagos sobre a cruel serpente Jormungand, uma espécie de boiúna tão grande que deu a volta em torno da terra, até morder seu próprio rabo.
A madrinha da bateria é Sif, esposa de Thor, deusa da colheita, que vem acompanhada de sua filha Thrud, ambas com cara sardenta e olhos azuis. Na comissão de frente vem Skoll, o lobo que persegue o sol e consegue devorá-lo; Sleipnir, o cavalo de oito pernas e os berserks, guerreiros loucos e suicidas.
Finalmente, no último carro vem o grande guerreiro Siegmund, brandindo sua espada mágica que se quebra em mil pedaços, acompanhado de seu filho, Siegfried, que consegue restaurar a espada e com ela mata o dragão Fafner, conquistando assim a bela Brunnhilde, uma das nove valquírias. É o final do desfile e eu acordo suado suado, com febre alta. Não foi nada disso que os amazonenses viram. O samba enredo foi outro, segundo os jornais.
Samba do caboco doido
Os mitos escandinavos ficaram internacionalmente conhecidos, porque foram narrados e cantados na ópera ‘O Anel dos Nibelungos´, de Wagner, que dá vida aos deuses e heróis, tão grandiosos quanto os personagens míticos das narrativas dos Tukano, Tuyuka, Dessana, Baniwa e outros povos do alto Rio Negro.
No entanto, nada disso foi mostrado no sambódromo de Manaus. Não houve diálogo de culturas, porque os irmãos Souza resolveram transformar o mito escandinavo no samba do caboco doido. Carlos e Wallace Souza, deputados federal e estadual, encomendaram ao Maurinho Saúba e ao Mestre Jimmy um samba enredo, onde os grandes heróis – pasmem! - são eles dois.
Assim foi feito. A escola de samba Sem Compromisso, traindo seu próprio nome, comprometida até o tucupi com a politicagem sórdida, apresentou o enredo “Guerreiros do Norte, Jovens Idealistas, Irmãos de Coragem, Guardiões da Justiça”. Seu objetivo não era tornar conhecida a criação cultural de outro povo, mas puxar o saco dos irmãos deputados, exibindo dessa forma as nossas mazelas.
Na maior cara de pau, os irmãos Carlos, Wallace, Fausto, Marlúcia e Ulisses Souza se apresentaram como os grandes guerreiros escandinavos, enviados pelo deus Thor para proteger o eleitorado amazonense. Imagine só! Usaram para isso cerca de 3.200 integrantes, uma bateria de 300 componentes e quatro carros alegóricos.
Dessa forma, Carlos Souza, cabocão como qualquer um de nós, passa a ser o louro Siegmund. Wallace é o lourissimo Siegfried. Ambos, com a cara sardenta e os olhos azuis, num calor de 40 graus, lutam contra monstros gelados, que constituem o maior perigo para os nórdicos. Loki, o gigante capturado, em vez de ser transformado em salmão, é metamorfoseado em pirarucu? Eraste! Eu, hein, maninha!
Porto de Lenha
A letra do samba enredo parece inspirada pelo espírito de Santa Etelvina, pois menciona que o deus Thor veio ao Amazonas, entrando em contato com as índias guerreiras. Aí, ninguém sabe como, aparece Ulisses Souza lutando contra uma tal de tirania. Ele é derrotado, “mas seus irmãos / com o poder da comunicação / se encarregaram da grande missão / de defender sua nação”. Só nos resta dizer, aproveitando a rima fácil: quanta enganação! É muita esculhambação! E manipulação.
Trata-se de um festival de besteira, sem pés nem muito menos cabeça, que não se sustenta nem como fantasia. Como se a heroicidade fosse contagiosa através do verso! Além disso, exibe duvidosa qualidade literária e tremendo mau gosto, por tentar se apropriar de um herói mítico alheio do qual os irmãos Souza só conhecem o nome porque brincam de palavras cruzadas: deus escandinavo com quatro letras.
O enredo da Sem Qualquer Compromisso com a realidade amazônica e com seu povo, deseduca a população e constitui um grande desrespeito aos moradores inteligentes da Vila da Prata e de toda Manaus. O que os irmãos Souza fizeram foi um crime de falsificação, um estelionato cultural. Porto de Lenha, tu nunca serás aquilo que os irmãos Souza pensam que é Liverpool ou a Escandinávia! Sieg Carlos e Sieg Souza jamais terão cara sardenta e olhos azuis, como alienadamente desejam.
Fico pensando na dona Zuzu, coitadinha, que sempre desfila na ala das baianas, e veio, neste ano, em cima de um carro, por causa da idade avançada. Ela é muito digna e não merece ser manipulada, como foi, pelos irmãos Souza.
Se a Sem Compromisso não corrigir seu rumo, pode desaparecer, como ocorreu com a pintura do corpo da Priscila Carla, rainha da bateria da ‘Império da Camélia’, que se derreteu com o calor senegalesco de Manaus, enquanto ela sambava.
Francamente, sou mais o Bloco Unidos do Eduardinho, organizado pela ONG Associação Chico Inácio e pelo meu compadre Rogelio Casado, coordenador do Programa de Saúde Mental. Esse bloco concentra na esquina da 24 de maio com a Eduardo Ribeiro e reúne os usuários do serviço de saúde mental, familiares, voluntários e profissionais.
Borimbora, maninha! Deixa os irmãos Siegmund e Siegfried Souza sozinhos. Se avexe em fugir dali. Vamos pro Bloco Unidos do Eduardinho, que esse sim, não tem compromisso com o poder e representa o aspecto mais sadio da sociedade manauara.