.Não a-cre-di-to!”. O recepcionista separava as sílabas da palavra e mostrava aos hóspedes o meu documento. Tudo isso aconteceu num hotel em Jaguarão (RS), na fronteira Brasil-Uruguai, revelando que ninguém é amazonense impunemente. Quer que eu conte essa história, contarei. Quer que eu conte?
Depois do seqüestro do embaixador norte-americano, em setembro de 1969, o Rio de Janeiro ficou irrespirável. A ditadura militar sentou a porrada indiscriminadamente em jornalistas, estudantes, escritores, sindicalistas. Prendeu, torturou, arrebentou e sumiu com muita gente. Quem podia, fugia, se exilava ou pedia asilo.
Na lista dos procurados havia dois amazonenses que militavam na mesma organização: o poeta Thiago de Mello e esse locutor que vos fala. A polícia invadiu o apartamento onde eu morava. Aí, caímos na clandestinidade. Ficamos escondidos num subúrbio do Rio, e de lá, juntos, botamos o pé na estrada rumo ao sul do Brasil.
Numa tarde de outubro chegamos a Pelotas. De lá, fomos de táxi para Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. A cidadezinha estava até o tucupi de milico. Parecia sitiada. Havia soldados, armados ou não, nas ruas, praças, esquinas, bares, rodoviária e, sobretudo, no acesso à ponte que levava ao outro lado, à liberdade. O que fazer? Entramos num bar, pedimos um café e deliberamos.
Com 22 anos, pouca experiência e muito medo, eu queria cruzar logo a fronteira, acabar de vez com aquele pesadelo. O poeta, então com o dobro da minha idade, argumentou que naquela hora, quase noite, o fraco movimento na ponte permitia um maior controle militar. Era mais prudente atravessar a fronteira só no dia seguinte, de manhã, no meio de muita gente, que trabalhava no outro lado. Convenceu.
No entanto, passar a noite em Jaguarão era perigoso. Thiago tinha projeção nacional e podia ser reconhecido. Eu não. Por isso era conveniente nos separarmos ali, pois juntos, no mesmo hotel, se ele fosse preso, eu também ia em cana. Combinamos, então, que a partir daquele momento ninguém se conhecia, a gente se encontraria no Uruguai.
Apartamos a farinhada. O poeta saiu e eu fiquei no bar fazendo hora. Dei um tempo. Depois, procurei um hotel na rua das Portas. Lá, me pediram os documentos. Naquela época, a carteira de identidade não era unificada nacionalmente. Cada estado tinha a sua, mas a do Amazonas chamava a atenção por sua singularidade. Era um livro, em vez de uma cédula. Parecia a atual carteira de trabalho, só que com uma capa amarela.
Tratava-se, na verdade, de um documento de identidade tribal. Trazia tudo sobre minha família: nomes de pai, mãe, avós e, se duvidar, os nomes de minhas nove irmãs, irmãos, sobrinhos, tios e até vizinhos do Beco da Bosta, mencionando o meu bairro de nascimento – Aparecida - o que efetivamente é fundamental pra minha identidade.
Quando viu o documento, o recepcionista gritou, colocando dez pontos de exclamação: - “Não a-cre-di-to!!!. Ele falava, exibindo seus dentes de ouro:“ Durante 25 anos nesse hotel, nunca vi um amazonense. Agora, vejo dois de uma vez só, com seus livros de identidade”. O gaúcho achava que era mesmo uma coincidência ex-tra-or-di-ná-ria.
É. Deu azar. O hotel inteiro – o único de Jaguarão - parou pra me ver. Foi um escândalo. No meio da confusão, caminhando pelo corredor, surgiu o poeta, vestido como sempre de branco. O recepcionista, consultando sua ficha, me perguntou:
- “Você conhece Amadeu Thiago de Mello?”
Neguei. Lá fora, um galo cantou três vezes. O gaúcho disse, então, que fazia questão de fazer as apresentações.
Ficamos os dois, ali, diante de hóspedes atônitos, apertando a mão um do outro, com cara de égua, de devoto de Santa Etelvina, unidos por uma mesma identidade amazônica. O poeta deu a volta por cima, disse que era um prazer conhecer alguém de sua terra e me convidou para jantar com ele no restaurante do hotel.
Dessa forma, pelo menos tínhamos um álibi para planejar o que faríamos. No dia seguinte, cruzamos a ponte sobre o rio Jaguarão, andando. Passei primeiro. O poeta, logo depois. Sua mulher, Lurdinha, grávida de Isabela, já nos esperava em Montevidéu, de onde esquematizamos a continuação da viagem até o Chile.
Uma vez mais viajei na frente, levando cartas para vários amigos de Thiago, entre eles, Salvador Allende, então presidente do Senado, Gabriel Valdez, ministro das Relações Exteriores, e um exilado amazonense: Almino Affonso.
Antes do golpe militar de 1964, o poeta havia sido adido cultural do Brasil no Chile. Aí, ele fez amizade com Pablo Neruda, Violeta Parra, o pintor Nemésio Antunes, a atriz Inez Moreno, a dramaturga Isadora Aguirre e outros intelectuais. Os chilenos gostavam do programa de rádio que ele comandava. Souberam retribuir sua generosidade.
De férias, uma amiga - Isabel, filha de Allende - cedeu seu apartamento, no bairro La Providencia, para Thiago e Lurdinha, com quem morei algum tempo. Num domingo, logo depois do almoço, toca a campainha. Abro a porta e tomo um susto: diante de mim, em carne e osso, Salvador Allende, acompanhado de Inez Moreno.
Allende estava em plena campanha para presidente da República. Perguntou por Thiago. Informei que o poeta tinha ido passar o fim de semana em Viña del Mar. Eu estava sozinho. Allende brincou:
- “No hay café en casa de brasileño?”.
Fiz, então, um café, al tirito, nomás. Conversamos sobre política, música – ele gostava de bossa-nova - e amenidades. Inez tocou violão.
Depois de um longo papo agradável, Allende me convidou para tomar sorvete. Despedimo-nos de Inez e ele próprio foi dirigindo o carro até uma sorveteria da moda, no bairro Las Condes, comigo de co-piloto. Dentro de dois meses, seria o presidente da República. Estava ali, sem qualquer segurança, nem mesmo um motorista.
Ocupamos uma mesa. Saboreamos um sorvete de ‘chirimoya alegre’. As pessoas vinham abraçar e cumprimentar Allende. A todo mundo, ele me apresentava: “Un brasileño, amigo de Thiago”. Eu estava muito emocionado por viver aquele momento ali, ao lado de um homem bom, límpido, decente, de tanta importância para a história dos povos humildes de nossa América.
Fui apresentado outra vez como “amigo de Thiago”, anos depois, ao escritor uruguaio Mario Benedetti. De passagem por Lima, Peru, Thiago sofreu ataque do coração. Benedetti e eu demos plantão na Clínica Italiana. Numa madrugada, Chabuca Granda, saiu de seu espetáculo na noite, invadiu o quarto de Thiago com seus músicos, fez a maior zona e acordou todos os doentes, cantando ‘Fina Estampa’. Derramando ‘lisura’ e muito charme diagnosticou:
- “Eso te pasa porque tienes un corazón muy grande”.
No momento em que o poeta festeja seus 80 anos, lembro Allende, Benedetti e Chabuca só para dizer que gostaria de continuar sendo apresentado assim, como “o amigo de Thiago”, um cavalheiro de fina estampa, um caboco suburucu muito do seu pai d’égua, com o coração do tamanho de um bonde.