Terás fora da casa um lugar onde irás satisfazer as necessidades da natureza, levando um pauzinho no cinto. E tendo satisfeito à necessidade, cavarás ao redor e cobrirás com a terra que tiraste. (Bíblia – Deuteronômio)
Jimmy. Chamava-se Jimmy.
Quase diariamente, antes da novela “O Bem Amado”, sua mãe via aparecer no meio de notícias confusas, bombas e greves, a figura sorridente do presidente Carter que, para ela, era um ator a mais, como o Francisco Cuocco. Sonhou para o seu filho um futuro risonho semelhante ao daquele artista bonito, corado e bem parecido, que fazia o papel de presidente dos Estados Unidos na telenovela “Jornal Nacional”.
Por isso, ela nem piscou, quando na pia batismal, o padre perguntou qual seria o nome do recém-nascido. Como resposta, silenciosa, entregou o recorte do jornal onde – ao lado da foto de Carter – aparecia o nome em letras garrafais: JIMMY, jota, i, eme, eme e aquele “v”, com um rabinho: Jimmy.
Estava sacramentado. Chamava-se Jimmy.
Dimas
No entanto, apenas uma vez na vida ele foi chamado pelo seu verdadeiro nome. Foi quando o padre norte-americano que o batizou na igreja de Aparecida, benzeu-o dizendo: “Eu te batizo, inocente Jimmy, em nome do Pai, do Filho...” O padre falou ‘Jimmy’ como o Cid Moreira, entortando a boca, levantando o canto esquerdo do lábio superior na primeira sílaba e baixando o canto direito do lábio inferior na segunda.
Dimas. Inocente Dimas.
Dimas. Para todos os vizinhos do Beco da Bosta, ele era Dimas, como o “bom ladrão” que morreu crucificado ao lado de Jesus. Dimas era mais fácil de pronunciar, não precisava entortar a boca, o som parecia pacas com Jimmy, bastando tão somente dar uma chiadinha na última sílaba. Além disso, era um nome mais adequado ao futuro que o esperava. Dimas.
Dimas jamais seria artista ou proprietário de uma grande empresa exportadora de amendoim, como o seu xará americano da Geórgia. Nem presidente da República. Se não fosse cheirador de cola analfabetizado pelo “Projeto Meu Filho”, inventado pela Secretaria de Educação, poderia com muita sorte ser vendedor de amendoim na feira da Bandeira Branca.
Jimmy. Dimas. Chamava-se Jimmy. Chamavam-no Dimas. Era Dimas.
Mister Z. Y.
O destino é tão irônico que Dimas nem sequer se apropriou por muito tempo do nome do “bom ladrão”, corruptela de Jimmy. Seu nome mudou uma vez mais, quando umas manchas claras e circulares, tipo ‘pano branco’, começaram a se espalhar pela sua carinha de crucificado, dando-lhe uma aparência de extraterrestre.
Aí, a molecada cruel do bairro batizou-o com o apelido com o qual ficaria conhecido pelo resto de sua vida, que não seria longa. Era o nome definitivo: Mister Z.Y.
O apelido pegou. Todo mundo, que já havia esquecido Jimmy, apagou Dimas da memória. Mister Z.Y. tinha a vantagem de resgatar o prestígio do nome americano através do ‘mister’. E de conservar o “v” com rabinho, reforçando o toque estrangeiro.
Com o passar dos meses, as manchas brancas e redondas foram aumentando em sua cara, desceram por seu tronco raquítico e se espalharam pelos dois gambitinhos que lhes serviam de braços. O bichinho foi mirrando, mirrando, mirrando, minado por “estranha doença”, que ninguém sabia o que era.
“Isto deve ser mau olhado”, abelhudavam as vizinhas. Dona Elisa ainda deu a sua guaribada: “Isso é lombriga, que está puxando toda a sustância dele. Por isso, está com essas manchas brancas”. A mãe de Mister Z.Y. – atordoada com tantos conselhos – agora só tinha uma certeza: o seu filho nunca seria um artista risonho como Jimmy Carter.
A Morte
Numa tarde chuvosa de fevereiro, no meio da batucada da escola de samba de Aparecida, a molecada do bairro ouviu gritos desesperados na casa de Mister Z.Y. A notícia se espalhou rapidamente pelo beco, desceu até o Plano Inclinado, avançou pela Bandeira Branca e subiu pela Alexandre Amorim: “Mister Z. Y. está morrendo. Manda chamar o padre”.
A molecada invadiu sem cerimônia a casinha de taipa e zinco de Mister Z.Y., ali na rua Carolina das Neves, nº 42, e presenciou uma cena brutal, que jamais se apagaria da memória de nenhuma de suas testemunhas. Mister Z.Y. agonizava em uma rede encardida e mijada, com uma careta que era a negação do sorriso de Jimmy, seu xará. Mister Z.Y. morria, com lombrigas de mais de 30 cm. – branquelonas e leitosas – saindo por tudo o que era buraco de seu corpo: boca, narinas, orelhas...
Mister Z.Y. morreu, leitor, atacado pela “ascaris lumbricoides”, em pleno século XX, quando um simples disparo certeiro de “Tiro Seguro” ou de mamona – para só ficar na farmacopéia da dona Elisa – teria resolvido o problema, em termos imediatos.
As míseras lombrigas se hospedaram no seu corpinho já frágil e subnutrido e mamaram o pouco que lhe restava, chupando-lhe o fósforo, o cálcio, os açúcares, os carboidratos, espoliando-o até o último suspiro, deixando-o apenas com a carcaça: a pele e os ossos.
O curioso é que nenhum parasita que se associa a um hospedeiro quer que o seu ‘sócio’ morra, porque isto acaba com a mamata e a mordomia da hospedagem, não é mesmo Amazonino Mendes? Eu estou mentindo, ‘professor’ Gilberto Mestrinho?
No caso de Mister Z.Y. – os médicos que me perdoem se cometo uma heresia – a situação era tão extrema que as lombrigas começaram a se picar, quando sacaram que o seu ‘sócio’ não lhe oferecia mais condições de se reproduzir e alimentar.
As mortes
Mister Z.Y. morreu não uma, mas várias mortes. Morreu como Jimmy, como Dimas e como Z.Y. Morreu quando seu pai foi demitido no Distrito Industrial. Morreu com o salário de fome de sua mãe. Morreu com as péssimas condições de higiene. Morreu de fome.
Mister Z.Y. morreu pela décima vez, quando sua mãe, sem saber que o estava envenenando, abriu a torneira e encheu a sua mamadeira de plástico com a água podre que a COLAMA distribui aos amazonenses. Morreu com a falta de esgoto que transformou o Amazonas em um gigantesco penicão – foco perigoso de infecção e contaminação.
O calvário de Mister Z.Y. se prolongou. Ele morreu também, quando a administração pública, em vez de tratar a água e construir rede de esgoto, realizou obras de fachada, enchendo os bolsos das construtoras. Morreu mais uma vez, quando nós, amazonenses, elegemos uma quantidade expressiva de ‘lombrigas’ e ‘vermes’, que penetraram no tecido social e se hospedaram no corpo político da sociedade amazonense, de onde estão retirando toda a sustância.
Eu estou exagerando Carlos Alberto De Carli? Me desmente, Gilberto Miranda!
Mister Z.Y. continua morrendo, diariamente, na periferia de Manaus e no interior do Estado, aonde proliferam ‘bairros’ de nomes pomposos como o tal do Mutirão, onde crianças, atoladas na merda, contraem diferentes tipos de parasitose intestinal.
Morrer devorado por lombrigas em pleno século XX! Bastava tão pouco para impedir esse crime. Que humilhação! Quanta impotência!
Ah, leitor, onde a nossa ira santa e o nosso amor? Como canalizar, de forma organizada e eficaz, tanta cólera contida, tanta ternura represada e tanta sede de justiça, para impedir as mil mortes dos Jimmy, dos Dimas, dos Z.Y.?
Cadê Jimmy, o artista sorridente, cadê? Cadê Dimas, o ‘bom ladrão’, cadê? Ou pelo menos – e a gente se contentava com tão pouco – cadê o querido e inocente Mister Z.Y.? Cadê o menininho guenzo da mamãe, o extra-terrestrinho do Beco da Bosta que, mesmo se ‘obrando’ todo, ainda se derretia com um gesto de carinho? Cadê?
P.S. – Essa crônica, publicada duas vezes (1987 e 1990), foi dedicada à Maria Elisa Freire Meneghini, que presenciou a morte de Mister Z.Y. Na época, ela ficou tão chocada, que jurou dedicar sua vida ao combate à parasitose. Cumpriu o juramento: hoje, farmacêutica e bioquímica, é professora da Universidade Federal do Amazonas. Seu colega, Kleber Bastos, então diretor do Instituto de Ciências Exatas da UFAM, me pediu cópia do texto. A ele, falecido recentemente, essa crônica vai também dedicada.
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