CRÔNICAS

Dez coisas a fazer antes de morrer: o patê no tucupi

Em: 18 de Junho de 2006 Visualizações: 9285
Dez coisas a fazer antes de morrer: o patê no tucupi
A Folha de São Paulo entrevistou celebridades, pedindo-lhes uma lista com dez coisas que gostariam de fazer antes de morrer. As respostas foram reveladoras. Se a mesma pergunta for feita a pessoas comuns como tu e eu, leitor (a), o que é que a gente responde? Vai pensando na tua lista, enquanto eu apresento a minha. Não morro sem antes fazer o seguinte:
 
1. Morar na casa do seu Daniel, na escadaria da Xavier de Mendonça. É uma modesta palafita. Armo minha rede na varanda, que se abre sobre o igarapé de São Vicente, cuja água – quem diria? – é pura e cristalina. Depois de estraçalhar um pacu frito com baião-de-dois, me embalo, os dedos dos pés entre os punhos da rede coçam uma frieira imaginária. Acaricio meu cachorro, que finge dormir. Na rádio Baré, no vizinho, Orlando Dias canta: “Tenho ciúmes do sol, do luar, do mar”. Sopra ventinho manso. Olho os barcos chegando. O ranger do armador da rede se mistura ao pec-pec dos motores. Êta vida boa, meu Deus!
 
2. Jogar dominó na taberna do Armindo, no beco da Bosta, com meu fiel parceiro Jerry, um refinado ‘passador de gatos’. Desfruto, consciente, o momento de alegria, pensando no poema “Os justos”, de Jorge Luis Borges. Nele, o escritor argentino trata com rara delicadeza aquelas pessoas anônimas que sem saber, no seu cotidiano, criam poesia, são felizes e salvam o mundo. Entre elas, dois moradores do subúrbio que jogam uma modesta partida de xadrez, a dona de casa atarefada, a professorinha que dá aula, o jardineiro...
        
3. Após reinventar o bairro de Aparecida, quero aprender a dançar (nos dois sentidos). Sou ruim de ginga. É uma frustração. Não aceito viver o resto da vida com o corpo engessado, incapaz de traduzir aquilo que minha alma sente com a música. Um dia, no saudoso Lá Hoje, vi Waldick Soriano cantar “Adeus, Manaus, adeus meu paraíso, minha vida”. Um caboquinho banguela deu um show, inventou passos incríveis com sua parceira, juntando coxa com coxa e mijador com mijador. Daria todos meus dentes, se os tivesse, para ficar no lugar daquele Nureyev baré. Faço isso antes de morrer.  
 
4. Namorar a negona tacacazeira que vi, adolescente, em 1962, na Praça XIV. Seu pescoço fino e alongado, de curva melodiosa, parecia desenhado por Modigliani. Lembro que era ligeiramente zarolhinha. o que realçava ainda mais sua beleza. Sou confortado, hoje, pelo filósofo alemão Walter Benjamin: “Para quem ama, rugas no rosto, manchas hepáticas, roupas gastas e um andar torto prendem muito mais duradoura e inexoravelmente que toda beleza. Porque é exatamente ali, no imperfeito, no censurável, que se aninha, rápida como uma seta, a emoção amorosa do adorador”.
 
5. Gravar um cd em parceria com Flávio Souza, autor do hino do Nacional Futebol Clube. Imito a voz do Tuta, cantor de banheiro: “Vamos à luta, lutar para vencer, se for preciso lutar até morrer”. Nem Zidane foi tão vibrante e marcial entoando a Marselhesa na Copa do Mundo: “Aux armes, citoyens!”.Desço o boulevard Saint-Michel, como um Robespierre baré, assoviando o hino guerreiro: “tua estrela azul é símbolo de glória, avante Nacional para a vitória”. Quem, antes de mim, cometeu tal proeza?  
 
6. Aprender alemão. Um dia, numa grande livraria em Frankfurt, me senti um analfabeto diante de títulos que falavam da Amazônia. Quero ler “Von Roraima zum Orinoco” (cinco tomos), de Theodor Koch-Grünberg, publicado entre 1916 e 1924, mas nunca traduzido ao português. Ele registra centenas de narrativas dos índios de Roraima. É incrível! Se Mário de Andrade não soubesse alemão, o Brasil não teria conhecido as maravilhosas histórias de Macunaíma. É. Para conhecer os índios, preciso ler em alemão.
 
7. Acordar de madrugada na aldeia dos Tuyuca, no santuário do alto rio Tiquié, ouvindo a fonte a cantar, chuá-chuá, e as águas a correr, chuê, chuê. Tomo banho de cachoeira. Quebro o jejum com mingau de banana, manicuera rala e quinhapira. No caldo apimentado, molho pedaço de beiju branco, fresquinho, tirado do forno, ainda mole, feito pela sogra do Nazareno, lá na Estação de Piscicultura do Caruru. Me farto de quinhapira até o fiofó da cotia assoviar. Fico com os beiços anestesiados pela pimenta. A cura, só com caxiri.  
 
8. Curtir Paris, de preferência no outono, quando as folhas começam a formar um tapete dourado nos bulevares. Domingo. Um modesto restaurante da rua Daguerre serve camarões da Ilha da Reunião. Passeio de mãos dadas com a princesa asteca. Quartier latin. O órgão da catedral de Notre Dame oferece canto gregoriano (dez euros). Na saída, na ilha Saint-Louis, de graça, os irmãos Amara tocam no realejo uma javah: anh, anh, anh, anh, écoute ça si c´est chouette!  Vou com minha filha tomar um sorvete de maracujá no Bertillon.
 
9. Recolher os meus passos. Atravesso Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Peru, devorando música, literatura, culinária e a paisagem de cada país! O poeta César Vallejo: “Me moriré en Paris con aguacero, un día del cual tengo ya el recuerdo”.  Chongos Altos, 4.000 m.de altura: os índios reunidos na praça de armas cantam, bailam e bebem chicha. De noite, céu estrelado, tenho a certeza de que se dou um pulo agarro uma estrela, tão perto elas estão. Tenho a sensação de que sou uma cobra do Luiz Fernando Veríssimo.   
 
10. Ganhar na loteria. Dou de presente a cada sobrinho que precisa uma casinha modesta, com um jardinzinho na frente e terreno para seguir construindo. Começo pelo ´Pão Molhado´ - coitado! – que hoje é um “sem-teto”, tem passado tão mal, que a sua cama é igual a do Foguinho: uma folha de jornal, molhada pelo orvalho que vem caindo, vem caindo lá do céu. Termino pela Sandra: – tu não estás faltando muita aula no Dom Bosco, menina? Vou contar pra Dile.
 
P.S. - Você já construiu sua lista, leitor (a)? Calma, temos tempo. Não é sangria desatada, ninguém vai tirar o pai da forca. Não é o fim do mundo, cantado pelo Paulinho Moska. Se fosse o “último dia”, o mundo se acabando, aí podia andar pelado na chuva, entrar de roupa no mar, transar sem camisinha, abrir a porta do hospício, trancar a da delegacia, dinamitar o carro e parar o trânsito. Minha lista é outra coisa. Pra mim, civilização é isso: maloca dos Tuyuca, bairro de Aparecida, Andes, Paris. É patê no tucupi. O resto é conversa fiada.

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1 Comentário(s)

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Pucú Estoriador comentou:
16/08/2021