A última vez que nossos caminhos se cruzaram foi em 1958, no curso de datilografia da Escola São José, ali na Luiz Antony, quando aprendíamos a catar milho com Carmela Faraco. Com sua cara angustiada, Walter parecia ter saído da tela ´O grito', de Edvard Munch. Parece absurdo, mas hoje me lembro muito bem dele cada vez que assisto um capítulo de ‘América'. Ai, então, me pergunto: será que ainda está vivo? Se estiver, sei que completou 58 anos, porque nós dois somos da mesma idade .
Há meio século, Walter morava ao lado da minha casa, parede com parede, no beco da Bosta. Sua existência me permitiu entender, sem discutir, o mistério da Santíssima Trindade. Ele era o exemplo vivo de que era possível existir três pessoas em uma só, como era repetido nas aulas de catecismo. Walter era um em três. Havia, primeiro, o meu vizinho, que era castigado pela mãe:
- Valter, traz a palmatória.
Depois, havia o aluno do Grupo Escolar Cônego Azevedo, que era punido pela professora que vá lá saber o porquê odiava o "W" e o "V", se amarrando num "U":
- Ualter, vem ajoelhar no milho.
Finalmente, havia o ‘Choro', que levava porrada coletiva da molecada do bairro:
- Sabacu nele!.
As pessoas eram três, bem distintas, mas a natureza delas era uma só: saco de pancadas. Valter chorava em casa, Ualter gemia na escola, e o ‘Choro' soluçava na rua, de onde, aliás, ganhou o apelido apropriado, porque chorava de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Minto, ele não chorava, ele era a própria encarnação do choro. De seus olhos, inchados de tanto pranto, jorrava uma pororoca de lágrimas. Era o Choro em figura de gente.
Ninguém sabe – exceto o escritor Hemingway - por quem os sinos dobram, mas a gente sabia porque o ‘Choro' chorava. Sua mãe, dona Adrozila, o esbofeteava com a mesma freqüência e a mesma naturalidade com que bebia um copo d' água. Mas não se limitava à pancadaria tradicional. Diariamente aplicava surras descomunais no filho indefeso, inventando novas formas de espancá-lo e torturá-lo. Usava diferentes instrumentos para bater: palmatória, cinturão, pedaço de pau, chicote, fio elétrico, ferro de engomar. Um dia, amassou uma panela na cabeça do desgraçado, porque ele mijou na rede.
Sol de América
O seu Tracajá, vizinho do outro lado, foi cimentar o tanque no fundo do quintal, e esqueceu em cima do muro uma carteira de cigarros Astória, aquela toda amarelinha. O ‘Choro' decidiu experimentar umas tragadas. Dona Adrozila deu o flagrante e esfregou pimenta malagueta na boca da criança, cujos lábios incharam. Ficou beiçudo. Além da pimenta, foi queimado muitas vezes com ovo quente cozido:
- Pra aprender a não falar nome feio - ela dizia em sua cruzada contra o palavrão . Se fosse hoje, o procurador Públio Caio metia Adrozila na cadeia. Cada vez que era covardemente martirizado e açoitado, o ‘Choro' berrava como um cabrito que estava sendo degolado e esquartejado. O corpo dele, marcado por cicatrizes, exibia as marcas da violência. Era crucificado e descia aos infernos várias vezes por dia. O beco todo se comovia, ouvindo seus lamentos:
- Ai, mãeginha, eu não faxo mais, mãeginha.
A bruxa Adrozila batia ainda mais forte, exigindo:
- Engole o choro. Engole o choro.
O ‘Choro', moído de porrada, acabou sendo engolido pela crueldade sádica da mãe. Tornou-se um menino amedrontado. Sua cara era a imagem da dor, do sofrimento, da melancolia, como ‘O Grito ' de Munch, com aquela boca aberta em forma oval, as duas mãos tapando os ouvidos, a cabeça de quem fez quimioterapia e a expressão de horror nos olhos. Não dá pra perdoar a fipilhapó daputapá da dona Adrozila. Eis ai aonde eu queria chegar. Não dá também para perdoar a Sol, personagem da novela ‘América', por uma razão aparentemente boba: ela é ligeiramente estrábica, como dona Adrosila, que torturava o ‘Choro'. Deu pra entender ?
Pode parecer irracional, mas tal semelhança física com a Débora Secco me incomoda tanto que acabei me dispersando porque nem era sobre a Sol, nem sobre dona Adrozila que eu ia escrever mas sobre um jornal editado no Rio em 1967.
Sol do Brasil
O SOL, jornal diário editado no Rio de Janeiro em 1967, em plena ditadura, circulou, no início, como encarte do Jornal dos Sports, e depois de forma independente. Foi um jornal-escola que fez oposição ao regime militar e inovou a linguagem, a pauta, a temática, a diagramação e até mesmo a organização editorial.
Nesta semana, dentro da programação do FEST/ RIO, foi exibido no Cine Odeon o documentário “Caminhando contra o vento ”, dirigido por Teté Moraes e Martha Alencar, contando a história do SOL, que ficou mais conhecido ainda através da música Alegria Alegria, de Caetano Veloso:
- O SOL nas bancas de revistas, me enche de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia ...
Dedé Gadelha, então namorada de Caetano, estava entre os alunos-repórteres do novo jornal-escola.
O documentário tenta reconstruir aquela época – década de 60 – entrevistando Gil, Caetano, Chico Buarque, Gabeira, Vladimir Palmeira, Arnaldo Jabor, Betty Faria, Ziraldo, Ana Arruda Calado, Reinaldo Jardim, Hugo Carvana e outras personalidades, reproduzindo histórias contadas por eles, algumas engraçadas, outras meio trágicas, falando de prisão e tortura .
Foram entrevistados também repórteres que fizeram o jornal, entre os quais este que digita essas mal traçadas linhas e que agora, disperso, lembra do Walter, do Valter e do Ualter.
No meu depoimento, falei que em 1968 eu queria mudar o MUNDO, mas tive que me limitar ao BRASIL, ao descobrir, no exílio, que o mundo era "ancho e ajeno". Retornando ao Brasil, vi que 8.516.000 km2 era um espaço ainda enoooooorme. Limitei, então, modestamente, o sonho ao estado onde nasci. Se conseguisse mudar o Amazonas, já estava de bom tamanho. Mas lá, também era muita água, não dava para ir com tanta sede ao pote, a pororoca ia me engolir. Reduzi, então, o sonho à Universidade, onde trabalho. Hoje, reconheço que não consegui sequer mudar o meu departamento. Apesar disso, tenho a doce ilusão de que posso contribuir para melhorar o mundo no dialogo com você, leitor (a), e no despretensioso trabalho em sala de aula, quando tento formar profissionais competentes, decentes, politicamente corretos, eticamente responsáveis.
Talvez a mudança do mundo não passe por gestos de grandes heroísmos, feitos épicos e tarefas grandiosas, mas por esse trabalho anônimo de formiguinha, pela resistência de ficar, pelo menos na defensiva, lutando para que o mundo não nos mude , não nos transforme em calhordas. Quanto à Sol, personagem da Débora Secco - coitada ! – entrou nessa história como Pilatos no Credo .