CRÔNICAS

Manazinha e a vingança das formigas

Em: 21 de Janeiro de 2024 Visualizações: 3445
Manazinha e a vingança das formigas

“Pisa maneiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro!" (Juvenal Lopes e Dilson Dória. 1967).

Este seria o título do documentário do cineasta Djalma Limongi Batista que, se vivo fosse, filmaria a história protagonizada por sua irmã Edith, repleta de cenas tragicômicas de embates com formigas. Nós, que o admiramos, psicografamos o roteiro post-mortem e incluímos Regina Duarte no elenco, não como atriz, que ela deixou de ser, se algum dia foi, mas como dublê da Manazinha.

Tudo começou com uma mensagem de voz enviada pela minha amiga Edith, precedida de incontida e sonora gargalhada:

- Menino, há vinte dias dei uma de Manazinha, não adiantou ter eu conhecido quase o mundo todo e convivido com os amigos super descolados do Djalma, a Manazinha baixou em mim. Sabe o que é Manazinha? (mais risos).

Abro aqui um parêntese, antes de detalhar o roteiro, para seguir o conselho da mãe da socióloga Angelina Peralva, dona Nádia, que sempre impetrava um habeas-corpus narrativo com convincente justificativa da conversa fiada, espontânea e prazerosa, no preâmbulo de suas histórias:   

- Vou jogar conversa fora, enquanto o arroz termina de cozinhar.

O Amazonês

Jogo, então, conversa fora para advertir que “Manazinha” não nomeia aqui laços de parentesco entre irmãos, nada a ver com a “norma padrão” ou a dita “norma culta” da língua portuguesa, cujo prescritivismo exacerbado desconsidera a “norma manazinha”, que reflete a variante do português falado no Amazonas.

Em Amazonês, Manazinha tem duplo sentido, dependendo do contexto. Pode manifestar carinho e afeto a qualquer pessoa independente do parentesco. Um amazonense sensível diria à Marielle Franco:

– Manazinha, admiro tua coragem, gosto muito de ti.

Ou pode também ter o sentido de ingênua, lesa, otária, usada para chamar a atenção de alguém que fez merda:

- Só mesmo uma manazinha como tu para votar em dois Coisos: no Bozo, que sufocou Manaus na epidemia de Covid e debochou da gente e no Wilson Amazon Cream Cracker, que comprou ventilador em adega de vinho e bolachas de R$ 38 milhões para a merenda escolar.

Pronto. O arroz agora já cozinhou. Agora, preciso apagar o fogo e me concentrar no enredo. Passo a palavra à Edith, que não se sente morando em lugar nenhum, porque vive na ponte aérea São Paulo-Amazonas. Nos seus longos retornos a Manaus, se hospeda com suas duas irmãs ali na rua Ramos Ferreira, ao lado do Instituto de Educação (IEA), “na casa do meu coração”, que guarda lembranças da infância. Aconteceu agora no último dia do ano:  

- Menino, enquanto eu dormia a sesta, ouvi sons imprecisos e inquietantes na biblioteca do papai, ainda hoje conservada. Levantei e fui ver: um cordão de formigas sedentas de leitura farfalhavam nas prateleiras dos livros.

A Casa Tomada

Edith correu para a cozinha, outro cordão de formigas subia pelo fogão, pela geladeira e pela pia, sassaricando, requebrando a bunda e movendo as antenas. Seguiu o cordão e se assustou: lá no jardim havia muitos formigueiros de boca aberta, com colônias de formigas pretas e marrons que, num trabalho incessante, carregavam folhas para o ninho, exibindo antenas e mandíbulas em suas cabeças.

Com uma pá, Edith cutucou um canteiro de flores e observou que as formigas se movimentavam em subterrâneos, através de um sistema de túneis, que fariam inveja ao Hamas na Faixa de Gaza. Um tamanduá ali encheria a pança com o banquetaço. As outras dependências da casa – ela descobriu - estavam também infestadas:

- Meu Deus do céu. Parece que estou dentro do conto fantástico “La Casa Tomada” do Júlio Cortázar – pensou, mas em vez de fazer como os personagens de Irene e seu irmão, que no final, com medo, fugiram da residência e jogaram a chave no ralo da calçada, a caboquinha guerreira decidiu sair pra porrada contra o exército de inimigas.

Não foi decisão fácil. Na infância, a nossa heroína tinha simpatia por formigas devido à fábula de La Fontaine A Cigarra e a Formiga, contada pelo velho Djalma. As formigas são retratadas lá como virtuosas, trabalhadoras, com organização social própria, capazes de agir como agentes biológicos no controle de pragas e na aeração do solo. É um crime matar alguém com tais qualidades. Mas Mark Twain mostra o outro lado, que elimina qualquer sentimento de culpa. 

A saúva no Brasil

No seu livro “Um vagabundo no estrangeiro”, o escritor americano acha “um exagero falar de inteligência das formigas e de seus exércitos disciplinados, como se elas fossem capazes até mesmo de discutir religião”. Bem-humorado, ele garante que elas são “mentirosas, hipócritas e fingem que trabalham só para enganar os naturalistas e os biólogos, que anotam tudo em seus cadernos de notas. Basta o pesquisador virar as costas que elas, ociosas, vão assitir disfarçadamente o show das cigarras”.   

Edith confessou ter começado a suspeitar que formigas danificam colheitas no campo e invadem edifícios nas cidades, ao escutar a marchinha de carnaval de Alvarenga e Ranchinho: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, composta a partir de uma frase do viajante francês do séc. XIX, Auguste Saint- Hilaire.

Quando acompanhou de perto o trabalho de seu irmão e viu como artistas e cineastas ralam, ficou claro para ela a caretice das formigas que sacanearam a arte da cigarra. Entendeu que quem canta e faz cinema ou teatro, está trabalhando, como fez em sua vida inteira o genial Teixeira de Manaus, falecido nesta quinta (18), depois de nos alegrar nos beiradões do Amazonas com seu sax e sua flauta:

- Abra a sua porta, deixe meu sax entrar. 

Essa lembrança fortaleceu sua decisão. Escolheu as armas:

- Vou jogar água fervendo nos formigueiros.

A guerra

Dito e feito. Foi para o jardim com uma panela de água fervendo. Mas na hora em que se abaixou para despejar o seu conteúdo, uma formiga zarolha, maior do que uma saúva, com cara de “falsa tucandeira” ou “tocandira” dos rituais dos Sateré-Mawé, enfiou o ferrão no calcanhar dela, que estava de sandália. Foi uma picada dolorosa. Devolvemos a palavra a Edith:

- Aí a água quente caiu na minha mão e queimou feio. Joguei a panela longe, mas a água fervente voltou e caiu no meu rosto, pegou minha testa, meu couro cabeludo e triscou meu olho, foi a vingança das formigas. Menino, foi uma dor enorme, com a cara em brasa tive de correr pro Pronto Socorro, a sorte é que o Hospital Público 28 de agosto, tem um setor de queimadura, me lambuzaram toda com pomada, antibiótico, soro gelado o tempo todo.

Ela concluiu:

- Baixou a Manazinha aqui, foi leseira mesmo, subestimei a agressividade do inimigo. Enfim, estou quase boa, o problema é que persiste ainda a sequela no couro cabeludo. Resultado: a Caboquinha aqui não pode sair de casa pra nada, nem botar a cara na janela (rs), sequer pra ver como está o formigueiro.

Formigas tem exército, fazem parte do crime organizado e atentam contra a democracia. Estavam acampadas em frente aos quartéis de Brasília. Bem que o Xandão podia acertar o passo delas e de quem as financiou. No passado, elas expulsaram os moradores da cidade de Velho Airão, de Tefé e de Eirunepé.

A cigarra do coco

Se Djalma Batista estivesse entre nós, esse poderia ser mais um dos 16 roteiros de filmes que ele deixou prontinhos, entre eles “Rio Máximo das Amazonas” e “O Silêncio dos sinos”, além de um filme inédito sobre a vida de Walmor Chagas. A irmã, que agora leva suas cinzas para jogar no Encontro das Águas, será a atriz principal deste 17º documentário por nós psicografado.  

No entanto, na cena perigosa e arriscada, Edith será substituída por Regina Duarte, sua dublê. A formiga zarolha vai dar a ferrada no mocotó da fazendeira e pecuarista, ex-namoradinha do Brasil e ex-secretária de Cultura do Governo Coiso. Afinal, ela já está mesmo queimada, desde que cantou a música da ditadura: “Prá frente Brasil” na entrevista à jornalista Daniela Lima e bateu continência para o Coiso.

O nosso documentário terminará com os indígenas da APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil - cantando o toré “Pisa Ligeiro” imortalizado pelo cantor Jacinto Silva (1933-2001), a “cigarra do coco” A coreografia será aquela da APIB que, para salvar a Cultura em coma, ocupou o extinto MinC na gestão de Regina Duarte.

Referências:

  1. Depoimento oral de Edith Limongi Batista, ampliado com floreio do Taquiprati.
  2. Carlos A. Faraco: Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo. Parábola Editorial, 2008
  3. Julio Cortázar: La Casa Tomada in Bestiário. Buenos Aires. Editorial Sudamericana. 1951
  4.  Mark Twain: Un vagabundo en el extranjero (traduzido do inglês A Tramp Abroad (1880). Amazon Digital Services. 2021.
  5. Taquiprati: Formigas de Eirunepé: General Dissica. https://www.taquiprati.com.br/cronica/220-formigas-de-eirunepe-general-dissica   23/10/2005
  6. Taquiprati: Nas ruínas do Velho Airão, memórias do Amazonas. https://www.taquiprati.com.br/cronica/1692-nas-ruinas-de-velho-airao-memorias-do-amazonas 07/05/2023

Comente esta crônica



Serviço integrado ao Gravatar.com para exibir sua foto (avatar).

22 Comentário(s)

Avatar
rodrigo comentou:
30/01/2024
Muito bom o roteiro, gostei kkkkk Falando em audiovisual, eu nessas férias aproveitando a o preço promocional dos cinemas, resolvi ver três filmes nacionais para apoiar nossa industria que foi tão prejudicada pelo últmo governo. Assisti: "Mamonas Assassinas" (está com mais de 800 mil espectadores), "minha irmã e eu" ( passou de 1,5 milhão de espectadores) e "Nosso Lar 2" ( que foi o filme com maior bilheteria de estreia, e o filme da tatá e da ingrid é o recordista do cinema nacional desde a pandemia, seguido logo atrás pelos Mamonas). Estou louco para assistir o filme do Betinho Professor, agora que estamos com essa retomada das produções nacionais, seria o máximo se ao menos um dos roteiros do Djalma Batista virassem filme, vou ficar aqui na torcida para a total filmes, rio filme, globo filmes ou alguma outra produtora tope o projeto. Vai ser sucesso sem dúvida! Um abraço querido professor!
Comentar em resposta a rodrigo
Avatar
Juarez Silva Jr. comentou:
26/01/2024
Gente! Que delícia o mais novo texto do icônico e afiadíssimo José Bessa . Não percam.
Comentar em resposta a Juarez Silva Jr.
Avatar
Guilherme Tristão Rocha comentou:
23/01/2024
Como a dúvida se REGINA DUARTE algum dia foi atriz?? Que baboseira é essa???
Comentar em resposta a Guilherme Tristão Rocha
Respostas:
Avatar
Taquiprati comentou:
23/01/2024
Prezado Guilherme, Veja o contexto e leia nas entrelinhas. E já pedindo desculpas pelo trocadilho infame, seja mais alegre e menos pedra
Comentar em resposta a Taquiprati
Avatar
Diana Sá Peixoto Pinheiro (Via FB) comentou:
21/01/2024
Magnífico! Adorei manuzinho. Parabéns!
Comentar em resposta a Diana Sá Peixoto Pinheiro (Via FB)
Avatar
Regina Melo comentou:
21/01/2024
Um bom argumento para abordar múltiplas facetas e perfis de manazinhas.
Comentar em resposta a Regina Melo
Avatar
Patrícia Sá Peixoto Pinheiro comentou:
21/01/2024
Para alegrar o domingo, recomendo a magnífica saga das formigas
Comentar em resposta a Patrícia Sá Peixoto Pinheiro
Avatar
Dinah Ribas Pinheiro comentou:
21/01/2024
Caríssimo Zé Bessa, levei uma facada no peito quando anunciaste o fim da tua coluna semanal. Como vamos ficar sem tuas crônicas inteligentes, apimentadas e sensíveis? "Será o Benedito" que não há outro espaço na imprensa desse imenso país Brasil que te ofereça um pouso? Algo me diz que não estaremos órfãos por muito tempo! Ainda bem que você está voltando. Pedi a todos os santos para isso acontecer.
Comentar em resposta a Dinah Ribas Pinheiro
Avatar
José Carlos Levinho comentou:
21/01/2024
Muito bom que vc continua com as suas maravilhosas crônicas. Grande abraço
Comentar em resposta a José Carlos Levinho
Avatar
Binho Marques comentou:
21/01/2024
Massa! Meu pai, que era um rígido fiscal do Banco da Borracha, ia gostar muito dessa história se fosse vivo. Os seringalistas não gostavam nem um pouco dele e o batizaram de jiquitaia (porque ele era miúdo e seus relatórios ao Banco eram super doloridos, como da minúscula formiguinha). Ela achava graça do apelido porque amava todos os bichos, mas no fundo era uma cigarra. Morreu fazendo esculturas em argila. Abração, querido professor!
Comentar em resposta a Binho Marques
Avatar
Antony Devalle comentou:
21/01/2024
Essa crônica me fez voltar a uma das mais lindas casas do meu coração (pra utilizar uma bela expressão da própria crônica). Uma amazonense muito querida que eu gostava de ouvir falando mana. Essa amazonense é a imensidão amazônica da delicadeza. Mana no melhor sentido.
Comentar em resposta a Antony Devalle
Avatar
Magela De Andrade Ranciaro comentou:
21/01/2024
Fico imaginando a Bira Batista, seríssima adentrando o Hospital 28 de Agosto com um rombo na cabeça provocado pela formiga ???? zarolha. Eu poderia estar por lá pra testemunhar isso. Poxa
Comentar em resposta a Magela De Andrade Ranciaro
Avatar
Vera Nilce Cordeiro Correa comentou:
21/01/2024
Perfeito Bessa, rsssss coitada da Edith , mais coitada ainda por ser representada pela obtusa RD rssss, ainda bem que é pra RD se ferrar
Comentar em resposta a Vera Nilce Cordeiro Correa
Avatar
Valter Xeu comentou:
21/01/2024
PUBLICADO EM PATRIA LATINA - https://patrialatina.com.br/manazinha-e-a-vinganca-das-formigas/
Comentar em resposta a Valter Xeu
Avatar
Celeste Bessa comentou:
21/01/2024
Manozinho( na forma culta), eu não conheci o Djalma e também nada sei sobre psicografia, mas achei esse roteiro genial! O ataque das formigas à Manazinha, protagonizada pela quase atriz, Regina Duarte que atacou e tentou massacrar a arte brasileira, lavou a minha alma. Eu nem entro no mérito da questão organizacional do trabalho, o importante é que a vida imitou a arte queimando e desfigurando a "namoradinha do Brasil". Djalma sempre presente! Ditadura e Regina Duarte atriz, NUNCA MAIS!!
Comentar em resposta a Celeste Bessa
Avatar
José Seráfico comentou:
21/01/2024
Pode enviar, na periodicidade que você escolher, seus sempre precisos - e também bem-humorados textos. Meu e-mail e o zapp vão no particular. Grande e fraterno abraço.
Comentar em resposta a José Seráfico
Avatar
Solange Bastos comentou:
21/01/2024
Bessa sempre saboroso, com sua leveza e argúcia! Valeu, amigo! Não desista, como suas personagens... aliás, lembrei também do Oswald de Andrade: Pouca saúde e muita saúva...
Comentar em resposta a Solange Bastos
Avatar
Andrea Sales comentou:
21/01/2024
Professor, grata por mais esta "belezura" de crônica!! Sigamos navegando neste mar da vida!
Comentar em resposta a Andrea Sales
Avatar
Ademario Souza Ribeiro comentou:
20/01/2024
Ai! Ai! Aí! Como esse cronista é tão formiga por sua escrita curiosa, buliçosa, inventiva e que sai cortando e organizando folhas (pessoas e episódios) em cordões picarescos, humorados, sutis e mui críticos - mais críticos e humorados - impossível! Manozinho Bessa tu nos faz muuuuito feliz com tuas crônicas! Dos teus cordões de crônicas formigas - quantos filmes ainda faremos?!
Comentar em resposta a Ademario Souza Ribeiro
Avatar
Selda Vale comentou:
20/01/2024
Bessa, que bom que você voltou!. O pouco de descanso deu essa crônica maravilhosa com a querida Edith, Bira para os amigos. Descansa mais um pouquinho, que você merece, para sair com mais maravilhas gostosas como esta.
Comentar em resposta a Selda Vale
Avatar
Amaro Junior comentou:
20/01/2024
Publicada no Portal Atitudes Positivas Salvam Vidas https://www.portalmuitomaispositivo.com.br/2024/01/20/manazinha-e-a-vinganca-das-formigas/
Comentar em resposta a Amaro Junior
Avatar
Francisco carlos comentou:
20/01/2024