CRÔNICAS

As empregadas domésticas: a última crônica?

Em: 27 de Agosto de 2023 Visualizações: 4320
As empregadas domésticas: a última crônica?

“Estou sem assunto. Lanço, então, um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”. (Fernando Sabino. A Última Crônica. 1963)

Parece até parábola do Evangelho com ensinamentos sobre a vida. Ou história contada em Nheengatu pelos indígenas do Alto Rio Negro, na qual o Jabuti sabido exerce sua doce vingança. Essa aconteceu mesmo e foi relatada oralmente na Academia da Terceira Idade (ATI), no momento em que se alastra pelo Brasil a violência crescente, física e simbólica, contra empregadas domésticas. Se me permitem, descrevo antes o cenário e o contexto, no qual rolam muitas histórias narradas, enquanto as pessoas se exercitam.

Há cerca de dez anos, este velhinho que vos fala frequenta uma ATI em Icaraí para praticar gratuitamente exercícios físicos nos equipamentos instalados pela Prefeitura de Niterói. Lá convivi com vários grupos, em diferentes horários. Com o tempo, a gente acaba sabendo os nomes das pessoas, o perfil profissional e aspectos da vida privada de cada uma delas ou pelo menos das mais falantes.

O primeiro grupo é de quem acorda de madrugada: as domésticas na faixa dos 40-50 anos, residentes em São Gonçalo e morros adjacentes. No horário seguinte, os aposentados: militares e outros profissionais. Mais tarde, o turno subsequente é de quem não costuma madrugar: as madames.  A escala não é tão esquemática assim, algumas vezes antes de uma turma se pirulitar, alguém do outro time chega mais cedo ou alguém sai mais tarde e há uma mistureba devida a tais infiltrações. 

Inicialmente, frequentei o horário dos aposentados, com um ou outro milico até simpático e amável. Mas em 2018, na eleição presidencial, não suportei o papo da maioria fanática e obtusa. Mudei de turno. Subi, então, para o grupo das patroas, que também propagavam em voz alta as fake news em defesa do Mito, intercaladas com relatos esnobes de viagens à Europa incapazes de apreciar as diferenças culturais vistas com um olhar etnocêntrico e xenófobo. Elas entram nos países, porém os países não entram nelas. Então, eu entrava calado e saía mudo para evitar estresse. Mesmo assim não aguentei. Desci para o turno das empregadas, mas veio a Covid-19 e a ATI se esvaziou.

A sala e a cozinha

No pós-covid e especialmente após a eleição de Lula, patroas e milicos se escafederam e o ambiente ficou menos tenso. As empregadas domésticas tomaram conta do pedaço e as conversas passaram a rolar mais livremente. Eu ficava na minha, meditabundo, sem me manifestar. Apenas um “bom dia” formal na entrada para cumprir tabela. Só desmeditabundei quando comentaram o caso da babá agredida em Manaus pela mulher de um policial, em imagens que viralizaram divulgadas nos telejornais.

Foi aí que ouvi a história exemplar que agora conto, narrada por Lena aos usuários da ATI sobre o tratamento dispensado à sua amiga Liza, empregada em apartamento na Praia de Icaraí com vista para o mar. Ela chegava diariamente às 7h00, com pontualidade britânica, para evitar que a patroa de 60 e tantos anos, que nunca lhe pagava as horas extras, descontasse o atraso.

Liza era faxineira, lavadeira, passadeira e cozinheira, além de prestar assistência ao patrão demente com Alzheimer e de servir de babá dos netos - contou Lena, a narradora, enquanto se exercitava no simulador de caminhada, balançando pra frente e pra trás. Ela completou: - O salário da minha amiga era miserável, mas pelo menos o contrato incluía o direito ao café da manhã e ao almoço.

Que café! Um senhor café! Na mesa da sala, vários tipos de pães quentinhos, baguetes, queijos, bolo caseiro, ovos mexidos, panquecas, granola, café, chá, leite, suco de frutas, geleia e mel. Isso para a família. Para a empregada, desterrada na cozinha, só café preto com pão velho e dormido. E o almoço?

Voltamos aos nossos estúdios. É com você, Lena, que sabe contar histórias. Como era o almoço?

O desenlace fatal

Um senhor almoço! - garantiu Lena. A família degustava os deliciosos quitutes feitos pela empregada. Um dia, Liza preparou um filé mignon de cor rosada com alho, pincelado de mostarda e um feijão gostoso, cujo tempero podia figurar no show gastronômico do chef de cuisine Claude Troisgros. Serviu tudo na mesa da sala. Mas na cozinha, o seu pratinho trivial era diferente.  

Aqui a narradora Lena parou de balançar no simulador de caminhada e sua voz tremeu de indignação para revelar que a patroa proibiu Liza de saborear a mesma comida da família. A megera tirou da geladeira um feijão congelado, amassado quinze dias antes na peneira para dar o caldo ao neto. Era só palha. Disponibilizou ainda uma salsicha ultra processada, sebenta e gordurosa, com aditivos, nitritos e nitratos.

Liza não comeu aquela porcaria e disse à patroa que a partir daquela data traria a comida de sua casa. Foi advertida que o salário continuaria o mesmo. No dia seguinte, trouxe efetivamente marmita com filé mignon, puré de batata e uma supimpa salada de alface, tomate-cereja, palmito de pupunha e manga. De sobremesa, uma maçã gala vermelha. Dona Lucinda – esse é o nome da patroa – intrigada, não acreditou no que viu:

- Você trouxe isso de casa?

Por via das dúvidas conferiu os filés na geladeira e contou as maçãs. Não deu falta de nada. Estava tudo em ordem.

Aí quem esnobou foi Liza, cujo marido acabara de arrumar um emprego como vigilante numa construção e ela pôde, assim, fazer aquela extravagância uma única vez. Mentiu:

- Em casa comemos sempre assim.

Foi então que ocorreu o desenlace fatal.

A alma lavada   

No dia seguinte, dona Lucinda desperta às 9h00 e encontra a mesa da sala vazia. Nada de Liza. Telefona e cobra com voz autoritária:

- Liza, são 9h00 horas, o que aconteceu?

- Aconteceu que o seu telefonema me acordou – mentiu Liza outra vez, com voz fingidamente sonolenta.

- Você está dormindo até agora? Vou descontar do teu salário?  Venha já para cá – ordenou Lucinda, que esqueceu o 13 de maio de 1888. Mas Liza lembrava da data:

- Não vou hoje, nem amanhã, nem nunca mais. Fique com o meu salário, porque agora a senhora é que vai ter de cozinhar.

Nunca fariseus e fariseias receberam um tapa assim com luva de pelica - disse naquele tempo um Mestre a seus discípulos. Em verdade em verdade vos digo, nem Cafarnaum, nem Jericó testemunharam ajuste de contas tão justiceiro e com “tanta classe” como esse ocorrido em Icaraí.

Quando Lena, a narradora, terminou o seu relato, não me contive, rompi meu silêncio obsequioso e gritei:

- Essa história lavou minha alma.

Contei a ela que vejo em cada empregada doméstica uma senhora de nome Elisa – olha a coincidência – que trabalhou no turno da noite, varrendo as salas e recolhendo o lixo no Grupo Escolar Cônego Azevedo, no bairro de Aparecida, em Manaus, mãe de 13 filhos, entre os quais esse velhinho que vos fala.  

No final do relato de Lena, participamos de uma espécie de dabacuri, o ritual indígena que celebra a fartura de comida e a união das pessoas. Lizete, uma das frequentadoras da ATI, trouxe no ônibus várias pencas de banana plantadas no quintal de sua casa. Generosa, nos convidou a comer banana prata e banana ouro.

Valeu a pena seguir o conselho de Fernando Sabino. Ele tinha de escrever sua crônica para o jornal e estava sem assunto. Foi tomar café no balcão de um botequim, quando viu um casal de negros comprar a fatia de bolo mais barata e colocar nela três velinhas. Discretamente, o casal cantou baixinho o parabéns para a filha, uma negrinha linda que aniversariava. O pai, no início constrangido, viu o olhar cúmplice do cronista e logo se abriu num sorriso.

- Assim, eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso – escreveu Sabino.

Espero que essa crônica sobre empregadas domésticas, que não é a última, reforce aquela gargalhada gostosa que tomou conta da ATI, zoando a dona Lucinda. Doce vingança de Jabuti.

P.S. Ver também sobre o mesmo tema cronica de abril de 2018: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1391-papo-de-velho-%E2%80%9Cai-meu-deus-so-jesus-na-causa%E2%80%9D

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14 Comentário(s)

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rodrigo comentou:
06/09/2023
Que linda história professor, adorei o tapa com luva de pelica que a senhora Liza deu na Lucinda. Muito bom adorei! Um abraço querido professor
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Antônio Carlos Borges Cunha comentou:
30/08/2023
Bela crônica! Intrigado com a foto que ilustra seu texto, fiz uma busca na imagem e encontrei o vídeo (de onde ela foi retirada) baseado na crônica do Veríssimo. Vale conferir. https://youtu.be/h3ETqQ3zSU8?si=_s1YvyXzZtolIOFY
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Fernando Andrade comentou:
28/08/2023
Lendo este texto do professor Ribamar Bessa, imediatamente me veio a mente um fato revoltante promovido pela síndica do Conjunto Tocantins, segunda etapa. O condomínio mandou cortar parte Jambeiro que fica numa pequena praça e cuja sombra servia de abrigo para moradoras de rua. A síndica é policial civil. É muita perversidade
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Eudimar Nem comentou:
28/08/2023
Que bela crônica Babá. Essas mulheres guerreiras merecem todo o nosso respeito. Parabéns a todas as empregadas domésticas.
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Celeste Correa comentou:
27/08/2023
Mano, uma vez eu li uma crônica da Martha Medeiros cujo o título é" O papel higiênico da empregada, onde ela narra que precisou usar o banheiro na casa de uma amiga e como estava ocupado, teve que recorrer ao "banheiro da empregada". E ficou chocada porque viu que o papel higiênico era áspero e muito ruim. Percebeu que essas diferença do papel dos outros banheiros, na verdade, é para segmentar as castas, é uma relação de poder autoritário e classista. É surreal ver que essas pessoas agem com a mesma crueldade dos que viviam na "casa grande". Esse episódio ocorrido em Manaus traduz isso. Eu achei muito legal essa tua crônica denunciando essa crueldade , para que essa pessoa agredida covardemente, se sinta acolhida, sinta que não está sozinha. E fico muito feliz por perceber que, para além das nossas origens, a tua capacidade crítica, e a tua disponibilidadede ouvir o outro, com a sabedoria de quem acredita que tem muito a aprender a partir das suas estórias de vida, tudo isso fortalece o teu compromisso de botar a boca no trombone quando acontecem atrocidades como essa. Acho que preciso também frequentar as academias "dos velhinhos" como diz o meu neto, o Manu.rs. Ela fortalece a saúde física, mas também o espírito.
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Tania Pacheco comentou:
27/08/2023
Publicada em COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2023/08/27/as-empregadas-domesticas-a-ultima-cronica-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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João Bina comentou:
27/08/2023
Taí a importância de meditabundar. Ver a beleza e a fartura à sua volta. Linda crônica Professor! Abs
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Hans Alfred Trein comentou:
27/08/2023
Que bela crônica, caro Bessa! É mesmo de lavar a alma! Como a ditadura militar, também o escravagismo brasileiro nunca foi superado, tanto na justiça reparadora, como também na cabeça de um montão Lucindas e latifundiários escravagistas. Quem quiser conhecê-los e -las, só precisa acompanhar as redes de patriotários que ainda teimam em seguir o mito jóia fraudulento, contra todo o senso mínimo de democracia e política pública de qualidade. Viva a Lisa e todas as empregadas que ela representa! Abraços, Hans.
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Eduardo Henrique da Costa Tornaghi comentou:
27/08/2023
Lindo, meu caro. De lavar a alma. Obrigado
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MCarlota Rosa comentou:
26/08/2023
Há um canal no Youtube , "Humdiarista", voltado para a profissionalização desse segmento e se bate contra ser "faxineira, lavadeira, passadeira e cozinheira, além de prestar assistência ao patrão demente com Alzheimer e de servir de babá dos netos" porque isso significa ter horário de entrada, mas não de saída, direito a desconto, mas não a extra --- enfim, a inexistência de direitos do Trabalho. Um dos vídeos pelo menos focaliza a questão das refeições. Essa situação narrada pela Lena parece ser o comum.
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Eneida Simões comentou:
26/08/2023
Todos tem seu valor na sociedade. Chega dessa hierarquização que segue no cotidiano. Gratidão querido Prof. Bessa!
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Farney Tourinho De Souza Omágua Kambeba comentou:
26/08/2023
Lamentavelmente... Por isso, em Manaus, os Bolsonarentos Triunfaram! Mas o Interior, Resolveu Dizer Não, na última Eleição!
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Ana Silva comentou:
26/08/2023
Lavou a alma. Excelente!!!!
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Sebastião Vital de Mendonça comentou:
26/08/2023
Lembrei da empregadinha de minha sogra: "a gente amansa patroa passando o bife no suvaco". D Zulita assustada perguntou : já fizeste isso comigo? Ela respondeu, não, a senhora é maneira!
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