CRÔNICAS

O Jabuti e o diploma de Rei da Floresta

Em: 18 de Dezembro de 2022 Visualizações: 4721
O Jabuti e o diploma de Rei da Floresta

A palavra, que carrega sabedoria, organiza o pensamento. Primeiro, nós pensamos.

Só depois é que falamos ou escrevemos”. (Manoel Moura, escritor Tukano. 2010).

O Jabuti foi, enfim, diplomado, destronando a Onça sanguinária. O título concedido pelo Supremo Tribunal da Floresta (STF) foi esse: Rei da Floresta, embora o agraciado prefira a denominação mais apropriada de Cuidador da Floresta, das árvores, dos bichos, dos rios.

Na hora em que recebeu o diploma das mãos do Tamanduá Bandeira de Melo, presidente do STF, o Jabuti-Piranga da Selva chorou, lembrando os tropeços sofridos na longa caminhada para chegar até ali. Vale a pena rever seus passos, que se cruzam com a Onça, o Marreco e a Anta. 

Na floresta, como em qualquer grupo, vivem seres no qual habitam duas almas opostas em luta permanente: uma nobre, a outra vil. Às vezes predomina um lado, às vezes, outro. Onça e Marreco são indispensáveis à vida selvática, é verdade, mas na nossa história o que predominou foi a crueldade da Onça carniceira e a desonestidade do Marreco venal.

O Bairolairo

Tudo começou quando lá de fora, o Leopardo Byrolyro, Rei da Sierra Nevada Mountains, decidiu que o novo rei da floresta brasileira seria a Onça Biroliro, sua aliada subserviente. Para isso, era preciso tirar o Jabuti da jogada. O Marreco foi pago para fazer o trabalho sujo.

Com sua plumagem cinzenta, o bico e as pernas da mesma cor, o Marreco vivia num lodaçal do rio Pirapó, em Maringá. De lá, ele inventou e espalhou a mentira de que o Jabuti havia se apropriado da copa de uma árvore, construindo sua casa nos três galhos mais altos.

- Mas como isso é possível, se eu não sei subir em árvores – argumentou o Jabuti.

O Marreco fez que não ouviu e ordenou à Anta Meganha:

- Prenda o Jabuti.

Uniformizada e armada, a Anta, que é o maior mamífero da floresta, surpreendeu o Jabuti, quando ele saboreava cajás debaixo da árvore de taperebá, inebriado pelo cheiro tentador da fruta.

- Teje preso! – intimou a Anta. Usou seus 300 quilos para, com suas patas, atolar o Jabuti no barro mole, que logo secou, encarcerando-o assim na argila ressecada. Dessa forma, imobilizado o Jabuti, a cruel e medíocre Onça foi declarada Rei da Floresta (e não “rainha” para não dar uma “fraquejada”).

Diariamente, o Jabuti recebia na prisão visitas alentadoras de outros bichos, que traziam alimentos, enquanto a Onça cometia os maiores desmandos, incendiava a floresta, contaminava os rios, exterminava os peixes e construía nos galhos de árvores 156 mansões para ela e seus filhotes 01, 02, 03 e 04.

O Jabuti permaneceu encarcerado 580 dias, até a chegada da primavera, que trouxe flores, esperanças e chuvas para amolecer o barro. Lá longe, em outras latitudes, o Leopardo Byrolyro já não era mais o Rei da Sierra Nevada, o que enfraqueceu aqui a Onça Biroliro, apesar do apoio da Raposa Biro-Lira.

Cadê teu dono? 

Uma vez livre, o Jabuti foi cumprir sua missão. Ouviu gritos e imprecações contra as fêmeas da floresta: “Pintou um clima”. Depois, a ameaça a uma linda gazela: “Não te estupro porque você não merece”. O Jabuti buscou saber a origem daqueles urros bestiais vindos de longe e perguntou:

- Som, cadê o teu dono?

- Não posso revelar. Essas vozes são fraudulentas nada valem, só vale o rastro impresso e auditável – respondeu o Som.

O Jabuti viu impressa no chão a marca das patas da Onça e indagou:

- Rastro, cadê o teu dono?

- Não posso falar. Sigilo de cem anos.

O Jabuti sentiu cheiro forte de bosta:

- Fedor, cadê teu dono? 

A catinga da Onça Biroliro a denunciou. Ela havia comido camarão com casca, teve diarreia contraída pelo rotavírus e enxugou seu rosto com a mesma toalha com que secou o seu ratchofly, que é o nome do fiofó em “oncês”. Sua cara-de-pau fedorenta permitiu que fosse localizada.

Se fosse na Suécia, o Jabuti não poderia ter nos livrado da Onça Biroliro.  A cara dos suecos, segundo uma sobrinha que morou em Estocolmo, exala aroma agradável, porque lá se usa duas toalhas diferentes, ambas de fio egípcio, uma para cada função.  Mas a Onça Biroliro acha que brasileiro toma banho no esgoto e não acontece nada, ela é porca.

Foi assim que o Jabuti, diplomado Rei da Floresta para dela cuidar, derrotou a Onça Biroliro, que ainda tentou uma invasão do Capitólio tropical na porta dos quarteis, mas vai ter mesmo de se escafeder daqui a duas semanas.

Ficção ou realidade? Eterna discussão no campo da filosofia, da teoria literária, da historiografia.

- Vovô, essa história é falsa e é verdadeira. É falsa porque bicho não fala, mas agora é verdadeira porque você contou – me disse Maia, minha neta de 6 anos. E completou com um sorriso cúmplice, fazendo um “L” com o indicador e o polegar:

- Eu sei que o Jabuti não é o Jabuti.

E arrematou, fazendo arminha:

- Eu sei que a Onça não é a Onça, é o Bilolilo.

Seis aninhos apenas, ainda troca o "r" pelo "l".  É muita precocidade. Por isso é que a Onça defende a "escola sem partido" e a "família sem partido", ambas matam o espírito crítico.

O referido é verdade e dou fé, eu, o La Fontaine de igarapé.

Referências:

Histórias contadas por meus alunos indígenas nos cursos interculturais de formação de professores foram misturadas aqui com outras recolhidas no séc. XIX por dois tupinólogos:

1) Couto de Magalhães: Mitologia zoológica na família tupi-guarani. As lendas do Jabuti in O Selvagem.  Rio de Janeiro. Typ. da Reforma.1876. (Nova edição: São Paulo/Belo Horizonte. Edusp/Itatiaia. 1975

2) Charles Frederick Hartt: Amazonian Tortoise Myths. Rio. Typographia Acadêmica. 1875. Tradução de Luís da Câmara Cascudo: Mitos Amazônicos da Tartaruga. Recife. Arquivo Público Estadual. 1952.

O novo governo vai ter que tomar muito “chá de língua torrada do jabuti”, porque segundo o escritor e político amazonense Álvaro Maia (1893-1969) no seu romance Beiradão (Rio. 1958), esse chá acalma os nervos, amansa o gênio e ajuda em difíceis negociações.

P.S. – Tchau querida! Folha de SP nunca mais! Estou cancelando minha assinatura de mais de 25 anos, depois da demissão de Jânio de Freitas, Gregório Duvivier e 20 outros jornalistas.

 

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19 Comentário(s)

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Marlene Silva comentou:
21/12/2022
Quando ele chorou, passou um filme da sua trajetória até chegar aqui. Eu acho que a sua vida daria um filme e também um livro.
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Rodrigo Martins comentou:
21/12/2022
Excelente crônica professor como sempre e adorei as respostas da Maia rs.Vale lembrar que faltam apenas 11 dias para a posse, já estou ansioso para esse grande evento. Dia 01/01/23 a onça vai perder as pintas. Aproveito o espaço também para parabenizar o jogador Lionel Messi e toda a seleção Argentina pelo tricampeonato mundial, uma conquista que não ocorria há mais de 36 anos, após domingo esses atletas se tornaram heróis e deram para o Messi um ticket para poder entrar no hall dos craques mundiais de todos os tempos. Um abraço querido professor
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Claudio Muniz comentou:
21/12/2022
Genial prof. Com o tempo a criatividade so melhora . ????????????????????????????
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Leonardo Peixoto comentou:
20/12/2022
Bessa, que maravilhosa fábula!!! Amei tb as imagens e a sabedoria de sua neta!!! Grande abraço!!!
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Tania Pacheco comentou:
19/12/2022
PUBLICADO EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2022/12/18/o-jabuti-e-o-diploma-de-rei-da-floresta-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Nilda Alves comentou:
19/12/2022
Amigo, perfeita como sempre. Distribuindo, também como sempre, para Oropa, França e Bahia. Grande abraço e que 2023 nos traga bons acontecimentos - embora não esteja fácil EM TEMPO: jornais no Brasil, nunca mais. O jornalismo brasileiro que os donos admitem são incultos e mal formados. Triste.
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Cristina Vergnano comentou:
19/12/2022
Em tempo: genial a Maia! Nada como uma verdadeira educação e a convivência num ambiente que estimula o pensamento crítico. Se está assim aos seis, imagina quando crescer!!!
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Cristina Vergnano comentou:
19/12/2022
Bessa, como de costume, você traz uma crônica deliciosa e mordaz sobre temas, infelizmente, nada agradáveis e bem verídicos. Essa sua habilidade de recontar narrativas tradicionais dos povos originários também é fantástica; ensina muitíssimo. Parabéns e obrigada. Que venham tempos mais sábios!
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Celeste Bessa Correa comentou:
19/12/2022
Celeste Bessa Correia: Para tentar entrar na estória da Maia e do vovô, eu creio que nunca uma diplomação foi tão esperada por uma grande parte dos animais quanto a do jabuti.Ele, que enfrentou incêndios tenebrosos na sua caminhada, mostrou que tem o casco duro e resistente, né. Vamos torcer agora para que cuide bem da floresta que está muito devastada e com feras bastante perigosas que continuam sendo uma ameaça. A gente sabe que o jabuti ainda terá muitos incêndios para apagar e grandes áreas para reflorestar, mas de uma coisa nós estamos certos:com ele reinando na floresta, a nossa linda e inteligentíssima Maia poderá continuar dando vazão às suas tiradas precoces sem nenhuma ameaça ao seu espírito crítico. As suas estórias e a sua imaginação fértil são um encanto pra todos nós. Aos seis anos a danadinha já consegue entender e até utilizar recursos literários. É mesmo uma ameaça para a onça.rs
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Marcelo Perdigao comentou:
18/12/2022
Bom demais! Sem dúvida, a escola, a família e a comunidade jogam papel importante no desenvolvimento do espírito crítico.
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Valter Xeu comentou:
18/12/2022
PUBLICADO EM PATRIA LATINA: https://patrialatina.com.br/o-jabuti-e-o-diploma-de-rei-da-floresta/
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Marcia Freitas comentou:
17/12/2022
Sua neta Maia tem mais entendimento sobre a história, do que os bonecos de vodu acampados pelo biro...
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Marta Pires comentou:
17/12/2022
Demais !!! Lindo !!! professor : tomemos muito chá de língua torrada de jabuti
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Viviana comentou:
17/12/2022
Adorei a crônica, Bessa!
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Roberto E. Zwetsch comentou:
17/12/2022
Genial, Bessa. E sua neta é um doce esperto de menina. Beijo pra ela. RZ
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Vanderson Lourenço, professor guarani comentou:
17/12/2022
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Astrid Lima comentou:
17/12/2022
Enquanto lia pensava no modo como você escreve, contando estórias, o recurso indígena da tradição oral para preservar a história. E ria porque você usa esse mesmo recurso para contar a história a nós. Interrogar o rastro e o fedor são imagens interessantes. E a Maia deve ser uma menina adorável na sua inteligência genuína. Antes mesmo de ler esse teu taquiprati eu me remoía com o meu estilo labiríntico de escrever. Pensei numa conversa imaginária do tipo: - você já conversou com um indígena?”; - “Sim, e então?”; -“Então imagina o que é conversar com um ribeirinho”
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Ana Silva comentou:
17/12/2022
SENSACIONAL! Afiado como sempre. Adorei, Bessa.
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Mara Kambeba comentou:
17/12/2022
História real ! Parabéns aos alunos por essa bela narrativa! Até emocionante ao ler! E com as atrocidades que enfrentamos, em relação ao meio ambiente, territórios, segurança alimentar, saúde, educação, agora mais que nunca a luta também é pela vida agora.
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