CRÔNICAS

Navegando no Rio Babel

Navegando no Rio Babel

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Ele só é retirado do guarda-roupa duas ou três vezes ao ano, em ocasiões muito solenes como casamento, formatura ou exame de fezes. Estou falando do meu paletó “abafa-banana”, filho único de mãe solteira, que há vinte anos era azul marinho, mas agora, com o passar dos tempos, virou furta-cor . Foi vestido com ele ainda cheirando à naftalina, que compareci à Câmara dos Deputados, em Brasília, nesta semana, para participar de dois eventos: uma audiência pública no auditório da Comissão da Amazônia e o lançamento, no salão nobre da Câmara, do livro “Rio Babel – a história das línguas na Amazônia”.
Conto o fato como o fato foi, mas antes abro parênteses para uma questão de princípios. Considero abominável o uso do espaço jornalístico para autopromoção ou para qualquer outro tipo de oportunismo marqueteiro. O leitor é testemunha de que os temas discutidos aqui são sempre de interesse coletivo, nunca de caráter pessoal. Nessa situação se enquadram os dois eventos citados, organizados pela deputada Vanessa Grazziotin (PC do B/Am), que transformou em notícia um livro cujo autor é, por acaso, o titular dessa coluna.
A audiência pública
A audiência, na terça-feira, dia 29, durou quase três horas. Presidida pela deputada Maria Helena (PPS/RR), contou com a presença de deputados da Comissão da Amazônia, funcionários de ministérios e de instituições que trabalham com meio-ambiente, educação e saúde indígena, representantes de ONGs e alguns pesquisadores da Universidade de Brasília. Nela, esse locutor que vos fala apresentou a trajetória das línguas da Amazônia e discutiu o papel do Estado no destino delas.
O público foi informado de que quem apelidou o Amazonas de rio Babel foi o padre Vieira, num sermão da Epifania, em 1662. Admirado com a quantidade de línguas que eram faladas aqui, o jesuíta, que viveu vários anos no Pará, disse: “Na antiga Babel houve 72 línguas; na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de 150, tão diversas entre si como a nossa e a grega ; e assim , quando lá chegamos, todos nós somos mudos , e todos eles surdos. Vede agora quanto estudo e quanto trabalho será necessário para que estes mudos falem e estes surdos ouçam”.
Nós sabemos hoje que esses “mudos” da Amazônia falavam, na realidade, mais de 700 línguas. Alguns missionários consideraram que essa diversidade linguística era “obra do Satanás”, porque impedia a propagação do Evangelho. Mas o capiroto atrapalhou, sobretudo, o funcionamento da economia colonial, porque os portugas que exploravam a mão de obra indígena precisavam de uma língua comum, que fosse compartilhada com os índios. Sem ela, os colonos não podiam mandar nem os índios obedecer.
A língua que acabou sendo escolhida para essa tarefa foi o tupinambá, da costa do Salgado. Os jesuítas observaram como os índios a falavam, descobriram as regras que seguiam e descreveram a gramática dela, difundindo-a entre outras etnias. Ela foi transformada, assim, na língua dos catecismos, das orações, dos sermões, dos cantos, da catequese e do trabalho. Subiu o rio Amazonas e o Solimões, penetrou nos seus afluentes e se expandiu por toda a região, sendo a língua majoritária até metade do século XIX, usada por portugueses, índios , negros e cabocos. Acabou se tornando a Língua Geral, hoje conhecida como Nheengatu. Foi ela – e não o português – a língua dos primeiros amazonenses.
O lançamento do livro
Depois dessa exposição, vários deputados fizeram perguntas e observações.
Carlos Abicalil (PT/MT), ex-presidente da Comissão de Educação , mostrou-se interessado em discutir o uso nas escolas indígenas das 180 línguas que continuam sendo faladas hoje no Brasil. Vanessa Grazziotin sugeriu que algumas dessas línguas fossem, em algumas áreas, ensinadas em escolas não-indígenas, para que uma parte dos brasileiros tomasse conhecimento delas. Outros parlamentares se pronunciaram, assim como o líder indígena Álvaro Tukano, que condenou a discriminação das escolas brasileiras.
No papo com os parlamentares, as políticas públicas de línguas nos últimos cinco séculos foram duramente criticadas por terem contribuído para a extinção de centenas de línguas indígenas, silenciando uma parte significativa da população. Historicamente, o Estado e a Igreja achavam que a diversidade linguística atentava contra a unidade nacional e religiosa. Só muito recentemente a Constituição Federal de 1988 assumiu que essa diversidade, longe de ser algo negativo, revelava a riqueza do patrimônio cultural imaterial do país .
Essa questão foi retomada no dia seguinte, quarta-feira, dia 30, durante o lançamento do livro Rio Babel, em solenidade aberta com discurso da deputada Vanessa Grazziotin. Falaram ainda outros parlamentares e, finalmente, o autor do livro, que disse estar entusiasmado com a rara oportunidade de poder discutir políticas de línguas com quem legislava, e não apenas dentro dos muros da universidade como um exercício acadêmico. Chamou a atenção para o fato de que as línguas indígenas constituem um arquivo vivo da memória e dos saberes tradicionais.
Durante a sessão de autógrafos, a música regional foi interpretada por Tony Medeiros e Zezinho Correia, que vieram a Brasília especialmente para isso. Compareceram deputados de diferentes partidos e de vários estados, entre os quais uma expressiva representação da bancada do Rio de Janeiro: Fernando Gabeira (PV), Jandira Feghali (PCdoB), e parlamentares do PMDB como Josias Quental, José Divino e Leonardo Picciani, entre outros.  Vale a pena registrar nomes, alguns com tradição de luta, outras nem tanto, pela esperança de que possam participar mais ativamente na definição de políticas favoráveis às línguas minoritárias.
A bancada da Amazônia também se fez presente. Do Acre: Nilson Mourão (PT), Perpétua Almeida (PCdoB) e Zico Bronzeado (PT). De Rondônia: Anselmo Abreu (PT), Eduardo Valverde (PT) e Natan Donadon (PMDB). Do Amapá: Janete Capiberibe (PSB), Armando Alves (PL) e Gervásio Oliveira (PDT). De Roraima: Maria Helena Rodrigues (PPS), Rodolfo Pereira (PDT) e Suely Campos (PP). Do Amazonas: Vanessa Grazziotin e Humberto Michilles. Do Pará, Ann Pontes (PMDB) e Zé Geraldo (PT). Deputados de outros estados estiveram no lançamento, entre outros , João Castelo (PSDB/MA), Maria do Rosário (PT/RS), que é atual vice-presidente da Comissão de Educação, Ana Guerra (PT/MG) e Daniel Almeida (PCdoB/BA).
Prometo aos leitores que essa coluna só tornará a comentar atividades do seu titular no dia em que o “abafa-banana” for retirado outra vez do guarda roupa.
 
P.S – A sobrevivência das línguas indígenas de Roraima depende da garantia de terra aos índios. O Governo Lula completa hoje 823 dias, sem haver ainda homologado a demarcação da Terra Indígena Raposa / Serra do Sol.
P.S 2 - Com a primeira edição esgotada, foi feita posteriormente, em 2011, uma segunda edição. O livro foi selecionado para divulgação na Feira de Frankfurt de 2014 da qual a EdUERJ participará, com destaque, no stand das editoras universitárias brasileiras.

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