CRÔNICAS

Expedição Priquita (I): A França dos amazonenses

Em: 31 de Maio de 1985 Visualizações: 4457
Expedição Priquita (I): A França dos amazonenses

Todas as quintas-feiras, à noite, até mesmo as moscas da Feira do Bagaço, na Compensa, em Manaus, deixam de voar para não fazer barulho. Polícia não bate, professor não protesta, jornalista não escreve, prefeito e governador não roubam, dedo-duro não delata e puxa-saco não berinha nem berinho. O que aconteceu? A epidemia de greves do ABC se alastrou pelo Amazonas? Não. Simplesmente, a cidade de Manaus, com o peito cheio de orgulho verde-amarelo, da cor do tucupi, retém a respiração, com os olhos grudados na televisão para conhecer a “Amazônia de Cousteau” transmitida pela TV Globo.

Esta enorme expectativa tem razão de ser. O oceanógrafo e ex-oficial da marinha francesa, Jacques Cousteau, durante ano e meio percorreu o rio Amazonas a bordo do Calypso, um navio-laboratório, acompanhado de várias embarcações de apoio, hidroavião, helicóptero, três caminhões, um deles anfíbio. Gastou o equivalente a Cr$ 40.000.000.000 (quarenta bilhões de cruzeiros) para mostrar ao mundo o que é que a Amazônia tem. E já que custou tanto dinheiro, a população está esperando ver um inventário completo da Amazônia profunda e verdadeira. Se com alguns tostões o cineasta Silvino Santos, em 1922, nos deu a obra-prima “No País das Amazonas”, o que podemos esperar de Cousteau com 40 bilhões?

Encontro das águas

Nós queremos ver refletida na “Amazônia de Cousteau” a nossa própria imagem, como se estivéssemos diante de um espelho. De repente, na primeira série, Manaus inteira estremece diante de uma imagem sombreada. A Amazônia entra em cena? Ainda não. Quem aparece é o comandante francês Jacques Cousteau, de perfil, com seu nariz de ave de rapina e sua cara de “cientista arrojado” na voz em off de Sérgio Chapelain, cuja emoção parece sincera:

- Veja no próximo segmento imagens de Cousteau que mostra como as águas do rio Negro não se misturam com as do Solimões.

Foi tchaca-tchaca na butchaca. Quem viu, viu. Quem não viu, perdeu. Depois de quatro minutos e 22 segundos de sabão-em-pó, blue-jeans, a caninha que desce, “olha meu estomanol, o melhor remédio do mundo”, disco da Vereda Tropical, propaganda da Fundação Roberto Marinho e uns 75 comerciais complementares, o comandante Cousteau começa, enfim, a nos mostrar um fato espantoso, já observado pelo frei Gaspar de Carvajal, em 1542, e ao longo de cinco séculos por centenas de viajantes, mas era a primeira vez mostrado por um francês numa tv brasileira.

- O rio Negro é Negro e o Solimões é amarelo como o tucupi. Mas – oh, céus – a água de um não se mistura com a do outro. Não há entre os dois, digamos assim, uma miscigenação. Impressionante!

É verdade que muitos amazonenses suspeitavam que as águas dos dois rios não se misturavam, mas nenhum de nós teve peito, a coragem e especialmente o dinheiro de Cousteau para anunciá-lo ao mundo.

Um camelô da Feira da Panair confessaria depois que aqueles 4 minutos e 22 segundos de comerciais foram os mais longos de sua vida, tal a ansiedade para ver o encontro das águas. Um trabalhador rural do Careiro, lá na CEASA, chorava copiosamente e, entre um soluço e outro, confessou:

- Eu não sabia que era assim.

Uma criança do “Projeto Meu Filho” agradecia tanta educação e a informação extra-curricular, aplaudindo o discurso do seu professor:

- Parece o Governo e a Associação dos Professores (APPAM), se encontram, mas não se misturam.

O poeta Luiz Pucu poetava:

- Vê bem, Jacques, aqui se cruzam. Este é o Negro, aquele é o Solimões. Vê bem como este contra aquele investe, como a polícia contra as manifestações.

Boto cor de rosa

Corte. Novamente a voz eternamente gripada de Chapelain promete:

- No próximo segmento, uma descoberta simplesmente SEN-SA-CIO-NAL EX-TRA-OR-DI-NÁ-RIA. O comandante Costeau filmou o balé do até então desconhecido boto cor de rosa.

Após nova tonelada de comerciais e igual espera ansiosa – plim, plim – a tela é inteiramente ocupada por quem? Pelo boto cor de rosa? Não. Quem aparece é ELE, JACQUES COUSTEAU, jurando que vai exibir ao mundo o boto cor de rosa, que ele descobriu, assim como Cabral descobriu o Brasil. Uma profunda homenagem de 3 segundos é prestada ao golfinho e ao folclore local e, evidentemente ao próprio Jacques. Só não tocaram “Foi Boto, Sinhá” do Waldemar Henrique, porque a Globo e Cousteau ainda não descobriram o maestro e compositor paraense.

Bem feito! O pescoço francês do prefeito! Bem feito para todos nós, amazônidas, que aqui moramos e nada achamos. É preciso vir um cara lá da caixa-prego para nos mostrar aquilo que faz parte do nosso cotidiano.

Raimundo, o Mundico, prático do barco Santo Afonso, 35 anos de Solimões, indo-e-vindo de Manaus a Coari, confirmou derrotado:

- Eu já vi muito boto. O tucuxi, que é pequeno, preto ou cinzento, eu já vi. O vermelho ou malhado que é maior e menos arisco, eu já vi. Mas cor de rosa, tipo bunda de neném, nunca vi não. Quer dizer, ver eu já vi muitas vezes. Mas como o “homem” só descobriu agora, eu acho que não vi não.

Qualquer pessoa comum já teria se contentado com a glória dessas duas descobertas assombrosas. Mas Cousteau não é uma pessoa normal. Depois de navegar pelos labirintos dos três poderes do Amazonas, Cousteau e a TV Globo, irmanados agora pelo mesmo ideal, baixam o sarrafo e saem filmando “cientificamente, é claro, piranhas com cáries nos dentes, lontras, ariranhas, pororocas, piracemas, pirarucus e jacarés, entronizados por eles como “reis do rio”.

Finalmente, a TV Globo foca cena enternecedora, fundamental para compreendermos a região: o encontro de pai e filho. Jacques dialoga com Jean Michel, de quem estava separado há mais de seis meses e que havia descido lá das nascentes, nos Andes, com uma fita métrica, para medir o tamanho do rio. Filho de Custeau, custôzinho é. Descobriu que o rio Nilo é menor que o Amazonas. Um coronel patriota, devoto de Santa Etelvina, propõe imediatamente que todos os manuais escolares e cartilhas ensinem nas escolas que “o rio Amazonas é o maior rio do mundo”, exatamente como o Estomanol, que entra na tela anunciando ser eficaz contra a azia e a má digestão.

Difícil foi digerir o diálogo através da rádio do Calypso, apresentado como transcendental pela TV Globo:

- Jean Michel?

- Oui, papa!

- Ça va bien?

- Oui, papa!

- Tu peux venir, mon fils. La picarétage est déjà finie.

- Oui, papa!

Sérgio Chapelain enxuga uma lágrima furtiva e proclama que a mãe de Jean Michel, mais dramática que dona Risoleta, tia do Aécio Neves, se deixa filmar pela primeira vez. Ela também chora, porque não vê o filho faz uns cinco ou seis meses. É a própria figura da Mater Dolorosa. Ela se despede do filho com a voz trêmula. Muitos espectadores não podem ver as últimas cenas da “Amazônia de Cousteau” porque ficaram com os olhos embaçados. A finada Janete Clair, se viva, teria inspiração para uma telenovela.

Expedição Priquita

A TV Globo pagou para a Fundação Jacques Cousteau uma baba para ter a exclusividade, no Brasil, da exibição das aventuras na Amazônia. Mas nós, amazonenses e paraenses, não pagamos ainda a enorme dívida com esta Expedição, pelo que ela revelou de nós.

Foi justamente pensando em dar o troco para Costeau que cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), do Museu Goeldi e das universidades locais decidiram organizar a “Expedição Priquita”, cujo objetivo é revelar a França ao mundo. A Bastilha caiu mesmo? Qual o tamanho real do rio Sena? As suas águas se misturam com a do Marne? No rio Sena tem piracema, tem pororoca? O Sena compartilha com Paris o mesmo leito?

O relatório final vai ter algo de fofoca, porque vai verificar se o Sena tem efetivamente um “caso” com Paris, como querem Flavien Monod e Guy Lafarge quando cantam que “la Seine est une amante et Paris dort dans son lit".  Estas e outras informações exóticas, insólitas e pitorescas sobre a França serão respondidas por nossos cientistas integrantes da Expedição Priquita no próximo segmento. Aguarde a Priquita II. Nossos comerciais, por favor.

 

 

 

 

 

 

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2 Comentário(s)

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Lenauro Augusto Mendonça comentou:
26/10/2021
Eita foi desse jeitão mesmo como conta a crônica, ciência feita com lágrimas e garganta seca dos telespetadores.. cheguei a ver o calypso no Porto do tropical de Manaus quando fui morar lá.
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Luiz Pucú comentou:
26/10/2021
LI PARA A TRIBO EM VOZ ALTA ENTRE RISOS E GARGALHADAS...SABE QUE TINHA ESQUECIDO A OPERAÇÃO PRIQUITA! BRAVO MESTRE!
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