“A palavra, que carrega sabedoria, organiza o pensamento. Primeiro, nós pensamos.
Só depois é que falamos ou escrevemos”. (Manoel Moura, escritor Tukano. 2010).
O Jabuti foi, enfim, diplomado, destronando a Onça sanguinária. O título concedido pelo Supremo Tribunal da Floresta (STF) foi esse: Rei da Floresta, embora o agraciado prefira a denominação mais apropriada de Cuidador da Floresta, das árvores, dos bichos, dos rios.
Na hora em que recebeu o diploma das mãos do Tamanduá Bandeira de Melo, presidente do STF, o Jabuti-Piranga da Selva chorou, lembrando os tropeços sofridos na longa caminhada para chegar até ali. Vale a pena rever seus passos, que se cruzam com a Onça, o Marreco e a Anta.
Na floresta, como em qualquer grupo, vivem seres no qual habitam duas almas opostas em luta permanente: uma nobre, a outra vil. Às vezes predomina um lado, às vezes, outro. Onça e Marreco são indispensáveis à vida selvática, é verdade, mas na nossa história o que predominou foi a crueldade da Onça carniceira e a desonestidade do Marreco venal.
O Bairolairo
Tudo começou quando lá de fora, o Leopardo Byrolyro, Rei da Sierra Nevada Mountains, decidiu que o novo rei da floresta brasileira seria a Onça Biroliro, sua aliada subserviente. Para isso, era preciso tirar o Jabuti da jogada. O Marreco foi pago para fazer o trabalho sujo.
Com sua plumagem cinzenta, o bico e as pernas da mesma cor, o Marreco vivia num lodaçal do rio Pirapó, em Maringá. De lá, ele inventou e espalhou a mentira de que o Jabuti havia se apropriado da copa de uma árvore, construindo sua casa nos três galhos mais altos.
- Mas como isso é possível, se eu não sei subir em árvores – argumentou o Jabuti.
O Marreco fez que não ouviu e ordenou à Anta Meganha:
- Prenda o Jabuti.
Uniformizada e armada, a Anta, que é o maior mamífero da floresta, surpreendeu o Jabuti, quando ele saboreava cajás debaixo da árvore de taperebá, inebriado pelo cheiro tentador da fruta.
- Teje preso! – intimou a Anta. Usou seus 300 quilos para, com suas patas, atolar o Jabuti no barro mole, que logo secou, encarcerando-o assim na argila ressecada. Dessa forma, imobilizado o Jabuti, a cruel e medíocre Onça foi declarada Rei da Floresta (e não “rainha” para não dar uma “fraquejada”).
Diariamente, o Jabuti recebia na prisão visitas alentadoras de outros bichos, que traziam alimentos, enquanto a Onça cometia os maiores desmandos, incendiava a floresta, contaminava os rios, exterminava os peixes e construía nos galhos de árvores 156 mansões para ela e seus filhotes 01, 02, 03 e 04.
O Jabuti permaneceu encarcerado 580 dias, até a chegada da primavera, que trouxe flores, esperanças e chuvas para amolecer o barro. Lá longe, em outras latitudes, o Leopardo Byrolyro já não era mais o Rei da Sierra Nevada, o que enfraqueceu aqui a Onça Biroliro, apesar do apoio da Raposa Biro-Lira.
Cadê teu dono?
Uma vez livre, o Jabuti foi cumprir sua missão. Ouviu gritos e imprecações contra as fêmeas da floresta: “Pintou um clima”. Depois, a ameaça a uma linda gazela: “Não te estupro porque você não merece”. O Jabuti buscou saber a origem daqueles urros bestiais vindos de longe e perguntou:
- Som, cadê o teu dono?
- Não posso revelar. Essas vozes são fraudulentas nada valem, só vale o rastro impresso e auditável – respondeu o Som.
O Jabuti viu impressa no chão a marca das patas da Onça e indagou:
- Rastro, cadê o teu dono?
- Não posso falar. Sigilo de cem anos.
O Jabuti sentiu cheiro forte de bosta:
- Fedor, cadê teu dono?
A catinga da Onça Biroliro a denunciou. Ela havia comido camarão com casca, teve diarreia contraída pelo rotavírus e enxugou seu rosto com a mesma toalha com que secou o seu ratchofly, que é o nome do fiofó em “oncês”. Sua cara-de-pau fedorenta permitiu que fosse localizada.
Se fosse na Suécia, o Jabuti não poderia ter nos livrado da Onça Biroliro. A cara dos suecos, segundo uma sobrinha que morou em Estocolmo, exala aroma agradável, porque lá se usa duas toalhas diferentes, ambas de fio egípcio, uma para cada função. Mas a Onça Biroliro acha que brasileiro toma banho no esgoto e não acontece nada, ela é porca.
Foi assim que o Jabuti, diplomado Rei da Floresta para dela cuidar, derrotou a Onça Biroliro, que ainda tentou uma invasão do Capitólio tropical na porta dos quarteis, mas vai ter mesmo de se escafeder daqui a duas semanas.
Ficção ou realidade? Eterna discussão no campo da filosofia, da teoria literária, da historiografia.
- Vovô, essa história é falsa e é verdadeira. É falsa porque bicho não fala, mas agora é verdadeira porque você contou – me disse Maia, minha neta de 6 anos. E completou com um sorriso cúmplice, fazendo um “L” com o indicador e o polegar:
- Eu sei que o Jabuti não é o Jabuti.
E arrematou, fazendo arminha:
- Eu sei que a Onça não é a Onça, é o Bilolilo.
Seis aninhos apenas, ainda troca o "r" pelo "l". É muita precocidade. Por isso é que a Onça defende a "escola sem partido" e a "família sem partido", ambas matam o espírito crítico.
O referido é verdade e dou fé, eu, o La Fontaine de igarapé.
Referências:
Histórias contadas por meus alunos indígenas nos cursos interculturais de formação de professores foram misturadas aqui com outras recolhidas no séc. XIX por dois tupinólogos:
1) Couto de Magalhães: Mitologia zoológica na família tupi-guarani. As lendas do Jabuti in O Selvagem. Rio de Janeiro. Typ. da Reforma.1876. (Nova edição: São Paulo/Belo Horizonte. Edusp/Itatiaia. 1975
2) Charles Frederick Hartt: Amazonian Tortoise Myths. Rio. Typographia Acadêmica. 1875. Tradução de Luís da Câmara Cascudo: Mitos Amazônicos da Tartaruga. Recife. Arquivo Público Estadual. 1952.
O novo governo vai ter que tomar muito “chá de língua torrada do jabuti”, porque segundo o escritor e político amazonense Álvaro Maia (1893-1969) no seu romance Beiradão (Rio. 1958), esse chá acalma os nervos, amansa o gênio e ajuda em difíceis negociações.
P.S. – Tchau querida! Folha de SP nunca mais! Estou cancelando minha assinatura de mais de 25 anos, depois da demissão de Jânio de Freitas, Gregório Duvivier e 20 outros jornalistas.