Um divertido panfleto está circulando na internet, provocando reações diversas. Pessoas bem informadas morrem de rir; militantes politizados estrebucham de raiva; patriotas ingênuos tremem de medo. O panfleto jura que a Pátria está ameaçada, mas pode ainda ser salva, se seguir o exemplo de Plácido de Castro, “o gaúcho que defendeu o Acre”. Mostra foto dele, solene, de bigodões retorcidos e anuncia: “Agora outro gaúcho, consciente e patriota, se levanta em defesa da Pátria”.
Quem ameaça a Pátria? Os índios. Quem é o novo herói que a defende? Um descendente de italianos, Paulo César Quartiero, o maior produtor de arroz da região. O panfleto apresenta sua bibliografia: fazendeiro, 55 anos, que em 1978, favorecido pela ditadura militar, migrou do Rio Grande do Sul para Roraima. Omite, no entanto, que a região é habitada há pelo menos cinco mil anos por índios Makuxi, Wapixana, Ingariko e Taurepang.
Quartiero, o forasteiro recém-chegado, não quis saber disso. Invadiu terras indígenas, ocupou-as ilegalmente, expulsou índios, derrubou árvores, poluiu igarapés, arrasou o habitat dos pássaros, plantou arroz, se elegeu prefeito de Paracaima, ficou podre de rico. Os índios reclamaram ao Judiciário, que tartarugou durante trinta anos, com recursos de advogados bem pagos, cheio de latinorum malandro. Depois de transitar por todas as instâncias, o Supremo mandou devolver a terra dos índios aos índios. Decisão irrecorrível.
A decisão, porém, não foi cumprida, porque cinco arrozeiros, embora indenizados por ‘benfeitorias’, resistem à lei. Estão armados. São perigosos. Em 2004, atacaram quatro comunidades, incendiaram 34 casas indígenas e o posto de saúde, espancaram índios, baleando um deles. Na semana passada, preso por desacato à Polícia Federal, Quartiero pagou 500 paus de fiança e foi solto. Podem anotar: ele está aprontando alguma presepada para repercutir no Dia do Índio, 19 de abril.
Esses arrozeiros fora-da-lei tentam, agora, ganhar o apoio da opinião pública para a sua causa. Mas essa é uma causa inglória. Nenhum cidadão honesto, inteligente e sensível, com sede de justiça, vai concordar com o roubo das terras indígenas. Por isso, não conseguindo apoio para a defesa de interesses pessoais escusos, eles tentam confundir a cabeça das pessoas, dizendo que estão defendendo a Pátria amada salve-salve. Só se o nome da fazenda deles for ‘Pátria’.
O panfleto dos arrozeiros conclama: “O Brasil somos todos nós. Está na hora de defender o que é nosso. Vamos resistir. Vamos vencer”. Nós quem, cara pálida? Defender o direito de Quartiero ocupar terras indígenas, destruir o meio ambiente e encher o bolso de dinheiro é “defender o que é nosso”? Ou “defender o que é nosso” é reconhecer o direito dos índios, que há séculos preservam a biodiversidade e a sociodiversidade? É bom lembrar que terras indígenas são propriedades da União. Portanto, são mais “nossas” nas mãos dos índios do que nas dos fazendeiros.
Novos Bandeirantes
A violência dos arrozeiros ocorre sob nossas barbas, em pleno século XXI, mas nos faz lembrar as bandeiras do período colonial, aquelas expedições armadas que invadiam aldeias e queimavam malocas. Os bandeirantes formavam uma espécie de Esquadrão da Morte Rural. O padre Antônio Vieira conversou com um deles, que participou da expedição de Raposo Tavares ao rio Madeira (1648-1651), onde viviam cerca de 150.000 índios. O bandeirante confessou como atuavam:
“Nós damos uma descarga cerrada de tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia. Agarramos tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas deles forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a viagem”.
O bandeirante falava como se estivesse contando uma façanha maravilhosa, uma caçada esportiva. Tratavam os índios como se fossem antas ou onças, escreveu Vieira, em 1654, lamentando a impunidade dos criminosos. Outro jesuíta, Jerônimo Rodrigues presenciou o assassinato de velhos, enfermos e crianças:
“Nenhuma pessoa, que não tenha visto com os seus próprios olhos tais horrores abomináveis, pode imaginar coisa igual. A vida inteira desses bandidos consiste em ir e vir do sertão, indo e trazendo cativos com muita crueldade, mortes, saqueios e depois vendendo-os como se fossem porcos do mato”.
O historiador Capistrano de Abreu perguntou: será que tais horrores podem ser compensados pela consideração controvertida que, graças aos bandeirantes, as terras devastadas pertencem hoje ao Brasil?
Os arrozeiros acham que sim, quando apresentam Quartiero como um novo Garibaldi. Mas Garibaldi, o guerrilheiro italiano do século XIX que se exilou no Rio Grande do Sul, lutou por uma causa coletiva, na Guerra dos Farrapos. Já as lutas e a folha corrida do ‘Garibaldi de Igarapé’ mostram um lado obscuro, que está mais para Esquadrão da Morte do que para salvador da Pátria.
Que o diga o ticuna Constantino Fupeatücü. Faz algum tempo, em viagem ao Rio de Janeiro, ele aceitou convite para dar uma aula de Etnohistória, na UERJ, no turno da noite. Falou aos alunos sobre a situação de 30.000 ticunas, do Alto Solimões (AM). No meio da aula, um apagão deixou a universidade nas trevas. As salas se esvaziaram, exceto uma. Lá, Constantino continuava falando a uma platéia atenta de estudantes.
Na escuridão, era apenas uma sombra relatando, com voz sóbria e anasalada, o episódio ocorrido em 28 de março de 1988: o massacre do igarapé do Capacete. Contou como os índios, desarmados, reunidos na aldeia, foram surpreendidos por pistoleiros que começaram a atirar sobre eles. Tentaram fugir para a floresta, mas estavam cercados. As crianças lançavam gritos de desespero. Os adultos procuraram protegê-las com seus corpos, fazendo um escudo humano em volta delas.
No meio do tiroteio, corpos começaram a cair. No final, os índios contaram: 14 mortos, 23 feridos, 10 desaparecidos, todos eles ticuna, o que repercutiu internacionalmente.
Constantino lembrou, com respiração ofegante, como foi ferido por quatro balas ainda hoje encravadas em seu corpo. Sua voz, mansa, cortava a escuridão, intercalada por pausas dolorosamente prolongadas, que criavam um silêncio eloqüente. Os estudantes de História escutavam estarrecidos: o documento que viam não era um desses manuscritos do século XVI, narrando atrocidades do colonizador português em passado longínquo, mas um relato oral que descrevia o comportamento de brasileiros de carne e osso, “patriotas” de meia-tigela, nossos contemporâneos, aqui e agora. O documento era o próprio Constantino, em cujo corpo a história havia deixado o seu registro, com sangrenta caligrafia.
Os estudantes consultaram, pela primeira vez, um documento vivo. Concluíram que era necessário incorporá-lo para repensar a história do Brasil, que glorifica os bandeirantes como “desbravadores do território nacional” e “heróis da pátria”. Esse repensar, aliás, é a condição epistemológica necessária para evitar que índios continuem sendo caçados, hoje, como antas ou onças, sob o ridículo pretexto de que se está “defendendo a Pátria”.
P.S. – Agradeço meu amigo Gilberto Moraes, engenheiro e professor da UERJ, o envio do panfleto, acompanhado de frase irônica e provocativa: “A mensagem fala por si mesma. Estou encaminhando para análise e reflexão e para não deixar dividir o Brasil”. Ele sabia que eu iria pular nas tamancas.