“A palavra do índio, primeiro narrador desse país, tem que ser ouvida.
Sua palavra cura mágoa, tristeza, saudade, raiva e até dor de cabeça”.
(Manoel Moura Tukano. 2010)
A palavra indígena cicatriza a dor pela eliminação do Brasil na Copa do Mundo? Não sei, mas ela nos dá lições de política e nos permite avaliar se é correto o voto de parlamentares do time do Lula a favor da reeleição do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, fiel aliado de Bolsonaro. Tal escolha só será em fevereiro, mas desde agora a questão está na ordem do dia, debatida até mesmo com Papai Noel em plena festa natalina.
Aavaliação de que Lira não precisa dos votos de centro-esquerda para se reeleger levou a federação partidária do PT, PV e PC do B, junto com o PSB, a oficializar, por isso mesmo, seu apoio a um novo mandado de dois anos, em nome da manutenção de uma boa relação com o Comando da Casa e da garantia de governabilidade. “Se ele vai mesmo ganhar, que ganhe com nosso voto”. O desastre de apresentar candidato próprio contra Eduardo Cunha serviu de lição.
Já o PSOL, incluindo a bancada do cocar, não aceita a reeleição como fato consumado. Em nota oficial, manifestou que o presidente da Casa deve ter compromisso com as liberdades democráticas e com as pautas sociais e que é preciso construir uma nova correlação de forças. Por isso, votará contra o empresário e pecuarista Arthur Lira que, nos últimos dois anos, impediu a fiscalização pela Câmara das ações criminosas do Coiso que, em troca, lhe cedeu o controle do orçamento secreto. Lira não é flor que se cheire.
Quem tem razão? Quando fico confuso, quase sempre fico, busco a palavra dos povos originários da mesma forma que o crente recorre à Bíblia
Cabo-de-guerra
Dessa forma, encontrei uma narrativa indígena recolhida por Couto de Magalhães, quando presidiu a Província do Pará (1864-1866). E em 2010, no 12º Salão do Livro para Crianças e Jovens, no Rio, o tukano Manoel Moura, líder do movimento indígena, me contou outra versão, que aqui atualizo do meu jeito. Foi assim.
O Jabuti-piranga, aquele de escamas vermelhas nas patas e na cabeça, foi beber água no lago. Lá viu o Jacaré-açu nadando de costa por causa das piranhas. Do alto de seus cinco metros e 600 quilos, exibiu, ameaçador, seus dentes caninos e vociferou:
- Eu vou te comer.
- Por que tanta maldade, Excelência.
– Por que estou com fome e sou mais forte.
– Sua fome, eu respeito, Excelência. Mas duvido que seja mais forte – desafiou o Jabuti, propondo um ‘cabo-de-guerra’ para decidir seu destino. Iria buscar um cipó no meio do mato e traria uma ponta para o Jacaré puxar de dentro d´água. Ele, Jabuti, da terra firme, puxaria a outra extremidade.
- Eu puxo de lá, o Excelentíssimo puxa daqui. Quem arrastar o outro, ganha.
Dito isso, cantou um trecho do poema de Evaristo da Veiga: “Longe vá temor servil. Ou ficar o Jabuti livre ou morrer como imbecil!”.
O Jacaré matutou, ruminou e conjeturou:
- Pobre quelônio! Para quem está se afogando, jacaré é tronco.
Lembrou a Operação Taturana da qual se havia livrado e disse:
- Vai. Vai buscar o cipó.
O Jabuti foi e, enquanto procurava o cipó, aproveitou para comer pelas trilhas da floresta: capim, botões de flores e alguns insetos.
Maquiavel de casco
Foi aí que surgiu a Onça Pintada, pesando 100 quilos e medindo 2 metros. Suas mandíbulas lhe permitiam cravar os dentes pontiagudos no crânio do Jabuti e furar o seu casco. Fez arminha com suas garras afiadas e esbravejou:
- Eu vou te devorar, talkey?
O Jabuti engrenou o mesmo papo que tivera com o Jacaré:
- Por que, Excelência? Por que me tratar como inimigo?
- Acabou, porra! Vou te comer porque tenho bom preparo físico e só não te estupro porque você não merece.
- Mas assim eu vou morrer.
- E daí, porra, eu não sou coveiro. Todo mundo um dia vai morrer. E se adoecer e tomar remédio, vai virar jacaré. Chega de frescura. Não adianta chorar: “Ai, ai, meu Deus, não consigo respirar” – debochou a Onça.
Humildemente, o Jabuti explorou a vaidade da Onça e lhe propôs um “cabo- de-guerra”, para que ela pudesse exibir sua força física:
- Vou beber água, deixo uma ponta do cipó aqui e levo a outra ponta do cipó para o lago. Quando eu gritar “Já”, puxo o cipó de lá e você puxa daqui.
Cutucada assim com vara curta, a Onça debochou da pretensão, mas topou. “Esse patriotário se ferrou” – refletiu, saboreando antecipadamente o sarapatel. O Jabuti levou então a outra ponta do cipó até a lagoa, colocou na boca do Jacaré, se afastou, gritou “Já” e escafedeu-se. Saiu de fininho e deixou as duas feras brigando cada uma sonhando em comer carne de tartaruga folheada a ouro, ambas derrotadas.
Moral da história: quando teus inimigos são mais fortes do que tu, joga um contra o outro, em vez de bater de frente contra eles.
Maquiavel se deliciaria com essa narrativa da literatura indígena, que reflete alto grau de civilização, porque – diz Couto de Magalhães - só um povo altamente civilizado usa a inteligência para vencer a força. Ouviu bem, Vladimir Putin? O Jabuti, animal feio, fraco, lento, derrota o jacaré, a onça, a anta sem disparar um tiro e ganha até corrida com o veado.
Notícias indicam que parlamentares do PL (vixe vixe) da base-raiz do Coiso já começaram a brigar com Lira, por eles considerado traidor desde que, espertamente, parabenizou Lula pela vitória e se pronunciou contra tentativas golpistas. “Hay gobierno? Soy a favor” – esse é o seu lema. Num jantar da sigla, Lira foi hostilizado e atacado aos gritos por manifestantes.
Até onde vai essa briga? A reeleição de Lira está mesmo garantida? A base de Governo Lula poderia ter maioria de votos no Congresso? É possível construir uma nova correlação de forças? Aguardem os próximos passos do Jabuti.
P.S. 1– Na quarta (8), no evento “Proíndio: três décadas de aliança com os povos originários”, uma roda de conversa sobre o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, que coordenei antes de me aposentar, fez um histórico das atividades de pesquisa, ensino e extensão.
Depois, uma surpresa agradável: projetaram num telão depoimentos de indígenas, antropólogos do Brasil, Equador, Peru, Chile e México, ex-alunos, colegas da UERJ e da UNIRIO, amigos e familiares, que me fizeram sentir como no Arquivo Confidencial do Faustão. Meu ego voou para a estratosfera. Agradeço as palavras carinhosas de cada um, com quem me comunicarei em particular. Foi uma despedida supimpa e tocante. Felizmente, aprendi a chorar pra dentro para não pagar mico.
P.S. 2 – Alguns livros a serem aqui resenhados em 2023:
i) “MARIA YEDDA FORMADORA DE GENTE” de Ana Arruda Callado, uma biografia da historiadora Maria Yedda Linhares, lançado nesta quarta (7) numa conversa da autora com o historiador Francisco Carlos e este locutor que vos fala, autor da orelha do livro.
ii) “DA ROÇA Á REITORIA” autobiografia de Ivo Barbieri organizada por Paulo Filgueiras que, com perguntas certeiras, arranca confidências e reconstrói a trajetória de vida do ex-reitor da UERJ. Lançado recentemente na Casa de Leitura Dirce Côrtes Riedel da UERJ.
iii) FRAGMENTOS DE TEMPOS VIVIDOS de Marilza de Mello Foucher, a ser lançado em várias cidades do Brasil em março e abril. O título podia ser “Da canoa ao metrô”, a canoa é de Boca do Acre, onde a autora nasceu e o metrô é de Paris, onde ela vive há mais de 40 ANOS.
iv) ITAIPU MON AMOUR de Luiz Pucú, poeta amazonense, autor de vários livros, esse é dedicado às garotas e mulheres libertárias. Niteroiense de coração, ele faz aqui uma declaração de amor à cidade e à Região Oceânica. Trata da questão ambiental, da especulação imobiliária, do feminicídio, da velhice e do amor.
v) MORTE CERTA de Dau Bastos tem por cenário a zona canavieira de Alagoas, com fazendeiros falidos e reflexões sobre o machismo, o preconceito e a propriedade privada. O autor nasceu em Maceió e é professor de literatura brasileira na UFRJ.
vi) A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas de André Gardel, professor de literatura e artes cênicas da UNIRIO, que segue os rastros de Ulisses em sua viagem pelo rio Amazonas realizada há 3.200 anos e faz dialogar as mitologias grega e indígena.
vii) Segredos do Putumayo – o Diário da Amazônia de Roger Casement, organizado por Mariana Bolfarine e Laura Izarra a partir do filme de Aurélio Michilles sobre o colonialismo branco, os massacres de povos originários e crimes hediondos que escandalizaram o mundo.