CRÔNICAS

Presidência da Câmara: o jabuti, a onça, o jacaré

Em: 11 de Dezembro de 2022 Visualizações: 4410
Presidência da Câmara: o jabuti, a onça, o jacaré

“A palavra do índio, primeiro narrador desse país, tem que ser ouvida.

Sua palavra cura mágoa, tristeza, saudade, raiva e até dor de cabeça”.

(Manoel Moura Tukano. 2010)

A palavra indígena cicatriza a dor pela eliminação do Brasil na Copa do Mundo? Não sei, mas ela nos dá lições de política e nos permite avaliar se é correto o voto de parlamentares do time do Lula a favor da reeleição do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, fiel aliado de Bolsonaro. Tal escolha só será em fevereiro, mas desde agora a questão está na ordem do dia, debatida até mesmo com Papai Noel em plena festa natalina.   

Aavaliação de que Lira não precisa dos votos de centro-esquerda para se reeleger levou a federação partidária do PT, PV e PC do B, junto com o PSB, a oficializar, por isso mesmo, seu apoio a um novo mandado de dois anos, em nome da manutenção de uma boa relação com o Comando da Casa e da garantia de governabilidade. “Se ele vai mesmo ganhar, que ganhe com nosso voto”. O desastre de apresentar candidato próprio contra Eduardo Cunha serviu de lição.

Já o PSOL, incluindo a bancada do cocar, não aceita a reeleição como fato consumado. Em nota oficial, manifestou que o presidente da Casa deve ter compromisso com as liberdades democráticas e com as pautas sociais e que é preciso construir uma nova correlação de forças. Por isso, votará contra o empresário e pecuarista Arthur Lira que, nos últimos dois anos, impediu a fiscalização pela Câmara das ações criminosas do Coiso que, em troca, lhe cedeu o controle do orçamento secreto. Lira não é flor que se cheire.

Quem tem razão? Quando fico confuso, quase sempre fico, busco a palavra dos povos originários da mesma forma que o crente recorre à Bíblia

Cabo-de-guerra

Dessa forma, encontrei uma narrativa indígena recolhida por Couto de Magalhães, quando presidiu a Província do Pará (1864-1866). E em 2010, no 12º Salão do Livro para Crianças e Jovens, no Rio, o tukano Manoel Moura, líder do movimento indígena, me contou outra versão, que aqui atualizo do meu jeito. Foi assim.

O Jabuti-piranga, aquele de escamas vermelhas nas patas e na cabeça, foi beber água no lago. Lá viu o Jacaré-açu nadando de costa por causa das piranhas. Do alto de seus cinco metros e 600 quilos, exibiu, ameaçador, seus dentes caninos e vociferou:

- Eu vou te comer.

- Por que tanta maldade, Excelência.

– Por que estou com fome e sou mais forte.

– Sua fome, eu respeito, Excelência. Mas duvido que seja mais forte – desafiou o Jabuti, propondo um ‘cabo-de-guerra’ para decidir seu destino. Iria buscar um cipó no meio do mato e traria uma ponta para o Jacaré puxar de dentro d´água. Ele, Jabuti, da terra firme, puxaria a outra extremidade.

- Eu puxo de lá, o Excelentíssimo puxa daqui. Quem arrastar o outro, ganha.

Dito isso, cantou um trecho do poema de Evaristo da Veiga: “Longe vá temor servil. Ou ficar o Jabuti livre ou morrer como imbecil!”. 

O Jacaré matutou, ruminou e conjeturou:

- Pobre quelônio! Para quem está se afogando, jacaré é tronco.  

Lembrou a Operação Taturana da qual se havia livrado e disse:

- Vai. Vai buscar o cipó.

O Jabuti foi e, enquanto procurava o cipó, aproveitou para comer pelas trilhas da floresta: capim, botões de flores e alguns insetos.  

Maquiavel de casco

Foi aí que surgiu a Onça Pintada, pesando 100 quilos e medindo 2 metros. Suas mandíbulas lhe permitiam cravar os dentes pontiagudos no crânio do Jabuti e furar o seu casco. Fez arminha com suas garras afiadas e esbravejou:

- Eu vou te devorar, talkey?

O Jabuti engrenou o mesmo papo que tivera com o Jacaré:

- Por que, Excelência? Por que me tratar como inimigo?

- Acabou, porra! Vou te comer porque tenho bom preparo físico e só não te estupro porque você não merece.

- Mas assim eu vou morrer.

- E daí, porra, eu não sou coveiro. Todo mundo um dia vai morrer. E se adoecer e tomar remédio, vai virar jacaré.  Chega de frescura. Não adianta chorar: “Ai, ai, meu Deus, não consigo respirar” – debochou a Onça. 

Humildemente, o Jabuti explorou a vaidade da Onça e lhe propôs um “cabo- de-guerra”, para que ela pudesse exibir sua força física:

- Vou beber água, deixo uma ponta do cipó aqui e levo a outra ponta do cipó para o lago.  Quando eu gritar “Já”, puxo o cipó de lá e você puxa daqui. 

Cutucada assim com vara curta, a Onça debochou da pretensão, mas topou. “Esse patriotário se ferrou” – refletiu, saboreando antecipadamente o sarapatel. O Jabuti levou então a outra ponta do cipó até a lagoa, colocou na boca do Jacaré, se afastou, gritou “Já” e escafedeu-se. Saiu de fininho e deixou as duas feras brigando cada uma sonhando em comer carne de tartaruga folheada a ouro, ambas derrotadas.

Moral da história: quando teus inimigos são mais fortes do que tu, joga um contra o outro, em vez de bater de frente contra eles.

Maquiavel se deliciaria com essa narrativa da literatura indígena, que reflete alto grau de civilização, porque – diz Couto de Magalhães - só um povo altamente civilizado usa a inteligência para vencer a força. Ouviu bem, Vladimir Putin? O Jabuti, animal feio, fraco, lento, derrota o jacaré, a onça, a anta sem disparar um tiro e ganha até corrida com o veado.

Notícias indicam que parlamentares do PL (vixe vixe) da base-raiz do Coiso já começaram a brigar com Lira, por eles considerado traidor desde que, espertamente, parabenizou Lula pela vitória e se pronunciou contra tentativas golpistas. “Hay gobierno? Soy a favor” – esse é o seu lema. Num jantar da sigla, Lira foi hostilizado e atacado aos gritos por manifestantes.

Até onde vai essa briga? A reeleição de Lira está mesmo garantida? A base de Governo Lula poderia ter maioria de votos no Congresso? É possível construir uma nova correlação de forças? Aguardem os próximos passos do Jabuti.

P.S. 1– Na quarta (8), no evento “Proíndio: três décadas de aliança com os povos originários”, uma roda de conversa sobre o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ, que coordenei antes de me aposentar, fez um histórico das atividades de pesquisa, ensino e extensão.

Depois, uma surpresa agradável: projetaram num telão depoimentos de indígenas, antropólogos do Brasil, Equador, Peru, Chile e México, ex-alunos, colegas da UERJ e da UNIRIO, amigos e familiares, que me fizeram sentir como no Arquivo Confidencial do Faustão. Meu ego voou para a estratosfera. Agradeço as palavras carinhosas de cada um, com quem me comunicarei em particular. Foi uma despedida supimpa e tocante. Felizmente, aprendi a chorar pra dentro para não pagar mico.

P.S. 2 – Alguns livros a serem aqui resenhados em 2023:

i) “MARIA YEDDA FORMADORA DE GENTE” de Ana Arruda Callado, uma biografia da historiadora Maria Yedda Linhares, lançado nesta quarta (7) numa conversa da autora com o historiador Francisco Carlos e este locutor que vos fala, autor da orelha do livro.

ii) “DA ROÇA Á REITORIA” autobiografia de Ivo Barbieri organizada por Paulo Filgueiras que, com perguntas certeiras, arranca confidências e reconstrói a trajetória de vida do ex-reitor da UERJ. Lançado recentemente na Casa de Leitura Dirce Côrtes Riedel da UERJ.

iii) FRAGMENTOS DE TEMPOS VIVIDOS de Marilza de Mello Foucher, a ser lançado em várias cidades do Brasil em março e abril. O título podia ser “Da canoa ao metrô”, a canoa é de Boca do Acre, onde a autora nasceu e o metrô é de Paris, onde ela vive há mais de 40 ANOS.

iv) ITAIPU MON AMOUR de Luiz Pucú, poeta amazonense, autor de vários livros, esse é dedicado às garotas e mulheres libertárias. Niteroiense de coração, ele faz aqui uma declaração de amor à cidade e à Região Oceânica. Trata da questão ambiental, da especulação imobiliária, do feminicídio, da velhice e do amor.

v) MORTE CERTA de Dau Bastos tem por cenário a zona canavieira de Alagoas, com fazendeiros falidos e reflexões sobre o machismo, o preconceito e a propriedade privada. O autor nasceu em Maceió e é professor de literatura brasileira na UFRJ.

vi) A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas de André Gardel, professor de literatura e artes cênicas da UNIRIO, que segue os rastros de Ulisses em sua viagem pelo rio Amazonas realizada há 3.200 anos e faz dialogar as mitologias grega e indígena.

vii) Segredos do Putumayo – o Diário da Amazônia de Roger Casement, organizado por Mariana Bolfarine  e Laura Izarra a partir do filme de Aurélio Michilles sobre o colonialismo branco, os massacres de povos originários e crimes hediondos que escandalizaram o mundo.

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19 Comentário(s)

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Manu Rebollo comentou:
15/12/2022
Lula é galho verde. Cede mas não quebra. Adorei o conto, tem tudo a ver. Obrigado, Bessa
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Ana Suely Cabral comentou:
12/12/2022
Muito bom! Demais! : Li aqui em voz alta para meus hóspedes indigenas
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Tania Pacheco comentou:
12/12/2022
Crônica publicado em COMBATE - RACISMO AMBIENTAL - https://racismoambiental.net.br/2022/12/11/presidencia-da-camara-o-jabuti-a-onca-o-jacare/
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Andrea Matos comentou:
12/12/2022
Professor, as suas palavras sempre encantadoras a constituem a via de ressignificação do pensamento.
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Luis Balkar comentou:
12/12/2022
Bessa, fiquei muito honrado em falar um pouquinho de ti. Pena que em módicos 3 minutos foi impossível falar tudo que gostaria. Dei um jeitinho de colocar o Geraldo na minha fala, pois sei que ele te admirava realmente como a um irmão. Não há régua pra medir a relevância da tua presença em nossas vidas. Segue daqui também um abraço da Luiza, que, como eu, é sempre saudosa de ti.
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Diogo Campos comentou:
12/12/2022
Excelente história professor!!! Ela me lembrou duas coisas. A primeira é que uma vez, fazendo um filme sobre o Campeonato da Língua Paumari, em 2015 mais ou menos, Oiara Bonilla, eu e todos os Paumari presente, ouviram uma ótima versão dessa história do jabuti com o jacaré e a onça contada pelo Alberto Álvarez Guarani. Só que na versão apresentada por Alberto, enquanto a onça e o jacaré puxavam o cipó, o jabuti se mandava deixando o seguinte ensinamento: quem não fala duas línguas, é devorado por seus inimigos. A segunda coisa que me lembrou é que trabalhando na elaboração de um plano de gestão de um conjunto de terras indígenas entre o norte do Pará, o leste do Amazonas e sudeste de Roraima, os Waiwai, Hexkaryana, Katxuyana e os Waimiri-Atroari decidiram representar a união de seus territórios, com limites contíguos, como cada terra indígena sendo uma parte do casco de um jabuti, chamado de wayamu em cada uma dessas línguas. E durante as reuniões os Yana contavam histórias de jabuti no mato ressaltando características como velocidade (apesar da aparente lentidão), resiliência para passar dias sem comida nem água. Algumas lideranças chegaram a narrar situações onde encontraram jabutis na floresta com dentes de onça cravados em seu casco. Outra característica marcante é que em alguns mitos de origem desses povos eles vieram do jabuti. Enfim, só umas conexões que seu belíssimo texto me provocou aqui querido professor. Qualquer hora dessas vamos tomar um café pelas bandas do Campo de São Bento, nas margens da Roberto Silveira. Abraços saudosos Diogo
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Éder Santos comentou:
12/12/2022
Estimado e ilustre prof. Dr Bessa! Que blz de texto! Bastidores da Política, ontologia ameríndia, história e um jabuti que sabe jogar o jogo! Compartilhando.
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Luiz Pucú comentou:
12/12/2022
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Paula Bonatto comentou:
12/12/2022
E Bessa! Homenagem linda que destaca as flores que voce plantou! Sigamos em colheitas junto com nossos irmaos indigenas!
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Mara Kambeba comentou:
11/12/2022
Parabéns pela crônica,professor! O saudoso amigo Manoel Moura, com fala mansa, mas com profundo conhecimento. E o jabuti terá que buscar vários cipós. Mesmo assim, acredito que esse governo não será do PT. Além de jacaré e da onça, tem cobra, canguru, urubu, jibóia, criaturas sem escrúpulos, sem caráter, sem ética, onde pensamento estadista não existe para eles. A incoerência deve prevalecer, inclusive pela disputa de poder, e o toma lá dá cá . Estou torcendo para uma agenda algo novo, uma nova forma de comunicação com a população, que haja uma articulação de forma afirmativa, capacidade de diálogo, e união para uma contrução de uma política estadista. Um ditado popular que diz" quem não pode com ele, se alie à ele". Será? Eu acredito que tem que ser um JABUTI CARUMBÉ
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Rodrigo Martins comentou:
11/12/2022
Maravilhosa crônica professor. Já estou ansioso para as resenhas literárias de 2023 que o senhor fará, a lista está galática. E a festa do “Proíndio: três décadas de aliança com os povos originários” no auditório 91 foi um sucesso, muito emocionante, o senhor merece todas as homenagens sempre.. Um abraço querido professor
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Celeste Correia comentou:
11/12/2022
Mano, eu conheço muito pouco da política partidária e do jogo político. Muitas vezes fiquei sem entender certas alianças e o toma-lá-dá cá que eu achava absurdo e até vergonhoso. Achava estranho quando via a política pragmática se sobrepor à programática e as pessoas abrirem mão de princípios importantes para o partido, em nome da tal "governabilidade". Sempre pensei: qual o preço a pagar por certas "concessões"? Confesso que ainda não sei. Mas acho que essa narrativa indígena ajuda a clarear. Nesse jogo de apoio à reeleição do Lira para a presidência da Câmara povoada por jacarés com dentes afiadíssimos, onças e ursos, eu creio que para sobreviver o melhor é ser jabuti, agir com bastante inteligência e cautela porque o Lira não é flor que se cheire(v… A reflexão do Chico Alencar me ajudou bastante a clarear essas minhas confusões quando ele fala sobre a importância de dar sustentação ao governo Lula, mas sem abrir mão de questões programáticas fundamentais que o partido defende. Obrigada por ter compartilhado comigo, maninho.
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Delayne comentou:
11/12/2022
Que beleza de narrativa atualizada, caro professor Bessa! Vou recorrer à sua palavra como novíssimo testamento! Conta um conto e o aumenta em qualidade, potência, alimento sem agrotóxico de palavras vãs. Seu conto liga os pontos da costura e nos ajudam na cura. De quebra, ainda anuncia uma lista de resenhas que fará de alguns livros - desta, só li o do artista, amigo e professor André Gardel: inovador e surpreendente romance. Grata mais uma vez!
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Mari Weigert comentou:
11/12/2022
Beleza de análise. Também estava confusa e agora me sinto melhor. Verdade, deixar as feras que se devorem. Lembrei do Moro que pode perder o mandato acionado pelo PL.
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Valter Xeu comentou:
11/12/2022
PUBLICADO EM PATRIA LATI NA https://patrialatina.com.br/presidencia-da-camara-o-jabuti-a-onca-e-o-jacare/
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11/12/2022
Beleza! Este Bessa é bom!
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Eliane Potiguara comentou:
11/12/2022
Excelente texto, querido Bessa, como sempre. Leio sempre seus textos. Parabens. Feliz Festas.
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Sandoval Bastos comentou:
11/12/2022
Faz-se necessário arrancar os dentes do jacaré antes de apoiá-lo. Ele pode nos comer. Veja o artigo magistral do Chico Alencar (PSOL), transcrevo aqui o ponto 6:. "Defender o governo Lula - que ajudamos a eleger e queremos exitoso - contra o golpismo e o boicote não significa chancela acrítica a todas as ações de governo, nem alinhamento automático às decisões de seu núcleo partidário de sustentação (como demonstrado desde agora, no caso de não adesão à reeleição de Lira e do repúdio ao Orçamento Secreto)." Vale a pena ler o artigo inteiro. publicado no FORUM: https://revistaforum.com.br/opiniao/2022/12/10/governo-lula-tamanho-do-desafio-tamanho-papel-do-psol-por-chico-alencar-128490.html
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Ana Silva comentou:
11/12/2022
Ficou supimpa! Bom relembrar as deliciosas histórias do saudoso Manoel Moura! Viva o jabuti. Rsrs
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