"Y el tiempo corre (...). El que va se lleva su memoria, su modo de ser rio,
de ser aire, de ser adiós y nunca". Rosário Castellanos (1925-1974), México.
- Lembra do Agenor? Pois é, Antônia, a mulher dele, levou com ela seu jeito de ser adeus, mas deixou memória escrita. A missa de um mês foi nesta quarta (5) na igreja Nossa Senhora da Conceição, em Salvador (BA).
Quem me deu a triste notícia foi o médico Emilio Mira y Lopez. Recordarmos então que, há 55 anos, numa passeata contra a ditadura, ele, Agenor e eu fugíamos da polícia em desabalada correria pela rua Santa Luzia, que leva o nome – quanta coincidência! – da santa protetora dos olhos. Foi ali que meus óculos caíram e teriam sido estilhaçados, se Emilio e Agenor não tivessem retornado no meio de bombas de gás lacrimogêneo para salvá-los das patas dos meganhas. Pude, assim, ver o mundo outra vez com esses olhos míopes que a terra há de comer.
Eternamente grato, essa história acabou me ligando indiretamente à Antônia, com quem nunca convivi. No entanto, quando a gente conhece a trajetória de vida de uma pessoa e descobre tantas afinidades, ela se torna amiga de infância. Foi o que aconteceu. Depois de ler fragmentos de suas “Memórias” e de seus “Diários”, ousei usar o apelido carinhoso de Tonha com o qual os amigos chamavam Antônia dos Santos, nascida na Vila de Belém de Cachoeira (BA), em 1948, no dia de Santo Antônio, quando começou a viajar pelo rio da vida.
O rio Tonha
- Minha ancestralidade negra deve-se provavelmente a grupos de escravizados e à descendência indígena de grupos étnicos que viveram no Recôncavo – ela diz. Filha de Julieta, dona de casa e do carpinteiro Paulo, foi com ele que aprendeu que “somos trabalhadores, somos negros, mas somos iguais a qualquer um”, como dizia entre uma cachimbada e outra, sentado à tardinha numa espreguiçadeira confeccionada por ele. Iguais em direitos à cidadania, diferentes em manifestações culturais.
Paulo morreu num incêndio trágico em Santo Amaro, em 1958, do qual dona Julieta, dada como morta, escapou milagrosamente, depois de seis meses de tratamento das queimaduras em todo o corpo. Cozinheira de mão cheia, perguntava a quem provava os seus quitutes baianos:
- Tá bom, meu filho?
Diante de qualquer resposta, dizia com dose de humor:
- Se quiser melhor, vá comer na casa de seu pai.
Na memória de Tonha ficou a imagem da mãe, viúva aos 41 anos, que sustentou a família de quatro filhos, lavando roupa de veranistas e fabricando charutos para a Suerdick com o tabaco da lavoura local. Dona Julieta deu seu apoio quando, apenas com o curso primário, aos 15 anos, sua filha alfabetizava adultos na sala de visitas de sua casa orientada pelo programa radiofônico do Movimento de Educação de Base (MEB). O golpe militar de 1964 calou a rádio e extinguiu o MEB.
Aí a consciência política despertou e se ampliou com a chegada à Cachoeira de uma equipe da Juventude Agrária Católica (JAC), que a selecionou para fazer um curso de enfermagem e de parteira com estágios em Feira de Santana. O rio Tonha, caudaloso, seguiu seu curso da nascente rumo à foz:
- “Participei de muitos eventos locais, regionais e nacionais, buscando formas eficientes de atingir o povo. Tornei-me coordenadora nacional da JAC e fui aprendendo mais sobre as causas das desigualdades sociais (as raciais e de gênero não eram tratadas)”.
Sendo ar
Ela e a amiga Dalva se deslocaram para Cabaceiras do Paraguaçu e por cerca de dois anos, embaladas pelos movimentos de 1968, trabalharam e sonharam com a revolução. Numa casinha alugada pela JAC, montaram “consultório” para orientar mulheres grávidas, realizando partos naturais em casas humildes, com luz de candeeiro, fogão à lenha no terreiro, onde ferviam água para a higiene. Longe dali um estudante da PUC/RJ recolhia óculos numa passeata, sem imaginar que era esperado por uma até então desconhecida, aluna do Curso de Madureza por correspondência.
Tonha respirou novos ares ao mudar de mala e cuia para Salvador, onde trabalhou como atendente de enfermagem no Hospital Santa Isabel. Alugou casa perto da av. Barros Reis para ela e a mãe. Conhecida por sua experiência na JAC, aceitou convite para integrar a equipe de educação do CEAS – Centro de Estudos e Ação Social criado pelos jesuítas. Lá, em agosto de 1974, foi apresentada a alguns estudantes universitários cariocas que, por motivos políticos, haviam migrado para Salvador. Entre eles, Agenor, Jaques Wagner e Bete com a filhinha Mariana.
Por indicação de Tonha, os cariocas foram morar no bairro de Fazenda Grande. Quando ela tomava o ônibus no Largo do Tanque, sempre encontrava Agenor. Ônibus vai, ônibus vem, começaram a namorar em abril de 1975 e casaram nove meses depois. Tonha, agora Antônia Garcia, dava aulas sobre direitos trabalhistas na Escola Profissional Suburbana (Essub) da casa paroquial, Agenor ministrava cursos de eletricidade e Jaques Wagner, eleito muitos anos depois governador da Bahia, de encanador industrial.
Sua memória
Antônia militou em inúmeros movimentos sociais e passou por diferentes organizações, algumas das quais fundou, envolvida na luta por escolas do bairro, creches comunitárias, postos de saúde, terra, moradia. Atuou na Associação de Mulheres de Plataforma (AMPLA), na Federação das Associações de Bairro de Salvador (FABS), na Confederação das Associações de Moradores (CONAM), na Associação de Cooperação Comunitária para Áreas Problemas de Salvador (ACCAP), no Centro da Mulher Suburbana (CEM). Estava na fundação do PT e foi a primeira presidente do diretório municipal de Salvador.
Nos estertores da ditadura, aos 36 anos e com três filhos – Gabriela (1976), Marcio (1978) e Luís Carlos (1980) - Antônia entrou na academia para refletir sobre suas experiências. Sua monografia no curso de Ciências Sociais na UFBA – Rompendo as amarras: o movimento de mulheres na periferia de Salvador – foi publicada em Madri:
- “Verifiquei que a produção marxista sobre a cidade não deu conta de outras dimensões da opressão social, tais como gênero e raça. Contudo, os movimentos sociais que emergiriam no maio de 1968 produziram uma série de questões novas dentro e fora do marxismo, levando a pensar que o conflito capital e trabalho não estava apenas nas relações de produção”.
A dissertação de mestrado em Geografia também foi editada: “As mulheres da Cidade d’Oxum: Relações de Gênero, Raça e Classe: a Organização Espacial do Movimento de Bairro de Salvador” (EDUFBA,1992). Mas não parou aí. Defendeu tese de doutorado em Planejamento Urbano e Regional no IPPUR/UFRJ, comparando as “Desigualdades Raciais e Segregação Urbana em Antigas Capitais: Salvador Cidade d'Oxum e Rio de Janeiro, Cidade d’Ogum”, que se tornou obra de referência ao ser publicada com apoio da FAPERJ (Garamond 2009).
Sendo adeus
A participação em inúmeras bancas de várias universidades (UFBA, UFF, UFPA, UNIFACs, Católica de Salvador) constituíram um reconhecimento do seu valor como intelectual. Fez o Pós-Doutorado (UFBA 2008-2010) na época em que teve o diagnóstico do primeiro câncer na mama, com indicação para cirurgia, numa luta que durou 14 anos. Radioterapia, hormonioterapia, quimioterapia serviram para mostrar a ela “as limitações de uma medicina subordinada aos interesses do capital com clínicas luxuosas e tratamentos caríssimos que não resolvem”.
Em agosto de 2020, Antônia se mudou para Lauro de Freitas para ficar mais pertos dos netos: Henrique (2001), Liz e Davi (2009), Raul (2014) e Luna (2017), mantendo uma vida normal até junho de 2021, quando foi internada.
- “Espero viver o suficiente para ver Raul e Luna crescerem mais, ver meu país superar o neofascismo, retomando a esperança de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais fraterna” - escreveu ela em seu Diário.
Raul e Luna certamente verão o Brasil superar o neofascismo e crescerão com as memórias da avó, a parteira que fez nascer tantas crianças pobres, a alfabetizadora que levou letras aos iletrados, a educadora dos direitos do trabalhador, a militante incansável que participou de tantas lutas na Cidade d´Oxum, a intelectual que sistematizou em livros e artigos suas experiências. Salve, Tonha! Graças aos meus óculos, posso te ver.