Viveu pouco tempo: 15 meses. Pesava apenas quatro quilos e meio, três vezes menos que uma criança de sua idade. Talvez por isso alguns jornais nem sequer mencionaram seu nome. Foi apresentada simplesmente como ‘a menina caiuá’, esquelética, marcada pela síndrome de Down. Mas ela tinha nome cristão e endereço fixo. Chamava-se Jenifer. Jenifer Duarte Gonçalves. Morava com os pais e com o irmão Igor, de quatro anos, na casa 42, da aldeia Bororó, em Dourados (MS). Na madrugada dessa quinta-feira, 24 de fevereiro, já chegou morta ao hospital da Missão Evangélica Caiuá. O laudo, assinado pelo médico, confirma: morreu de “desnutrição protéico-calórica grave”.
Ele também tinha nome. Chamava-se Rosivaldo Barbosa. Viveu oito meses mais do que Jenifer. Morava num barraco feito com pedaços de caixote de papelão, lona preta e sapé, como quase todas as famílias das aldeias de Dourados. Tinha pouco mais de seis quilos. Morreu anteontem. A causa da morte: fome e desnutrição. No seu velório, a avó chorava, inconsolável, sobre o caixão branco de madeira. Foi enterrado no fundo da aldeia.
Na mesma aldeia Bororó vivia Kelly Fernandes, um bebê de seis meses. O fato de ser sobrinha da autoridade máxima da aldeia, o capitão, Luciano Arévolo, e de morar ao lado do Posto de Saúde não impediu que cumprisse sua sina. Foi internada no Hospital da Mulher, em Dourados, onde morreu nove dias depois, no sábado, dia 19 de fevereiro. O laudo médico atestou que morreu de fome.
Uma menina kayowá, de quase quatro anos, alimentada com pão velho, açúcar e água, com o peso também muito abaixo do normal, morreu no dia 8 de fevereiro. Sua morte foi antecedida pela de um bebê de oito meses no dia 11 de janeiro em circunstâncias semelhantes. Talvez seus nomes tenham sido registrados apenas pelo jornal ‘O Progresso’, de Dourados (MS).
A CPI da fome
Neste ano, em menos de dois meses, já morreram cinco crianças kayowá por desnutrição. Em 2004, foram 15 mortes, segundo relatório da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O índice de mortalidade infantil está crescendo de maneira alarmante, apesar de ter sido criado o programa ‘Fome Zero Indígena’, em abril de 2003, pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Por isso, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, aprovada pela Câmara de Dourados, será instalada na próxima terça-feira para investigar porque a fome e a desnutrição continuam matando crianças indígenas nas aldeias do município.
Depois do Amazonas, Mato Grosso do Sul é o estado com a maior população indígena do Brasil. São 50 mil índios, dos quais 11 mil estão em Dourados. Ali, em diversas aldeias, vivem em condições precárias quase duas mil crianças guarani, kayowá e terena, com menos de cinco anos; pelo menos 300 delas estão em estado profundo de desnutrição, ameaçadas de morte, com a formação óssea, psíquica e motora comprometidas para sempre.
Por que os índios estão morrendo de fome? Se a CPI tiver uma preocupação histórica, descobrirá os relatos dos viajantes e dos missionários que mantiveram os primeiros contatos com os índios. Esses relatos registraram a abundância de alimentos, de roças coletivas, onde predominavam vários tipos de milho, entre os quais o milho branco, considerado sagrado, denominado de ‘avati moroti’, a mandioca, a caça e a pesca. Destacaram a beleza dos índios, associando-a sempre à saúde física e à farta alimentação. O que foi, então, que aconteceu para que chegassem a esse estado calamitoso de desnutrição?
No final do século XIX e início do século XX, o território tradicionalmente habitado pelos Guarani foi invadido pelos ervateiros, que intensificaram a extração e comercialização da erva-mate. A empresa Mate-Laranjeira, que detinha o monopólio de extração dos ervais, proibiu o cultivo de roça na área, montando um sistema similar ao do “barracão” nos seringais da Amazônia, explorando ao máximo a força de trabalho indígena. Depois, na ditadura de Getúlio Vargas, foi criada a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, que loteou as terras indígenas.
O caxiri na cuia
A invasão e ocupação das terras indígenas por grandes empresas, fazendeiros, agronegócio e grileiros confinou os índios a pequenas aldeias, desorganizando sua agricultura e seu modo de vida tradicional. Hoje, em Dourados, cerca de 11 mil índios estão espremidos numa pequena reserva de 3,5 mil hectares, área onde caberiam apenas 200 famílias, se fosse um assentamento da reforma agrária. Falta terra para plantar.
Mas mesmo ali, onde os índios organizados lutaram e reconquistaram parcelas de seu território, o problema persiste. Acontece que, nesse caso, eles passaram a viver em terras que antes da demarcação foram fazendas, e os fazendeiros deixaram os rios contaminados por agrotóxicos, com muito pasto e pouca área de floresta para caça, segundo informações de Odenir Pinto de Oliveira, da Funai.
Que a mortalidade infantil entre os kayowá sirva de lição para todos os índios no Brasil, especialmente para os de Roraima. Se a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol não for homologada em área contínua, as crianças Makuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona viverão brevemente situação similar de risco nutricional. O Governo Federal promete aumentar o número de cestas básicas destinadas aos índios. Isso é uma medida necessária, mas emergencial. Não resolve o problema. Os índios não querem esmola: querem recuperar suas terras, ampliando o território no qual foram confinados.
No caso de Roraima, a luta pela terra recebeu reforço de 24 músicos indígenas, que lançaram recentemente o CD ‘Caxiri na Cuia, o Forró da Maloca’, dedicado a Aldo Macuxi, assassinado em 2003 por pistoleiros. “Cantamos a vida, a natureza e as lutas por nossos direitos”, afirma o texto de abertura do encarte do CD, que tem, entre suas faixas, “Nós queremos nossa terra homologada” e “Sofrimento é demais”. A letra desta última confirma as dificuldades vividas pelos povos da Raposa-Serra do Sol ao longo de mais de 20 anos de lutas para evitar mortes como a de Jenifer, Rosivaldo, Kelly e tantas crianças cujos nomes permanecem no anonimato. (Para adquirir o CD, entre em contato com o Conselho Indígena de Roraima (95) 2245761 ou [email protected] ).
P.S. 1 - Hoje, completam 788 dias do Governo Lula, sem que tenha sido homologada a demarcação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, conforme promessa de campanha..
P.S. 2 - O bairro de Aparecida está de luto. Morreu Maria Isabel Ferreira Xavier Desterro e Silva, que morava ali na Ramos Ferreira, onde manteve durante anos a Escola de Música Ana Carolina, fundada por sua avó, dona Idalina. Formou centenas de pianistas. Merece as homenagens do bairro e da cidade de Manaus..