Existem plantas cujas flores são comestíveis: brócolis e couve-flor, por exemplo. Agora, levanta a mão aí quem já comeu flor de pupunha? A época é essa, setembro, quando as pupunheiras começam a florir. É quando dona Maria Martins Lana, índia Kubeo do Alto Rio Negro (AM) coloca balaios embaixo das palmeiras para colher as flores que caem. Ela retira as pétalas, deixando-as descansar por três dias num paneiro, pra ficar “no ponto”. Depois disso, já pode preparar uma torta de flor de pupunha.
Nascida no rio Uaupés, dona Maria, 47 anos, dona de uma receita refinada de peixe com flor de pupunha, nos aconselha:
- “No dia de preparar o peixe, lave as flores e coloque numa panela com água para cozinhar por uma hora. Depois de cozidas, deixe esfriar. Aí soque as flores no pilão. Leve a massa pilada ao fogo para cozinhar por mais uma hora. Não esqueça de temperar com sal e pimenta. Ao final, você terá uma pasta para temperar o peixe, mas que também pode ser comida pura”.
Ora, direis, comer flores! E eu vos direi, no entanto, que para comê-las é preciso ir buscá-las entre dezenas de receitas do livro ‘Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro’ (EDUA-FioCruz), lançado nessa quinta-feira, dia 24, no Museu do Índio, Rio de Janeiro, por duas pesquisadoras: a professora da Universidade Federal do Amazonas Luiza Garnelo, médica e antropóloga, e a índia baré Gilda Barreto, coordenadora da Wariró – Casa de Produtos Indígenas do Rio Negro. Fui até lá para conferir.
O livro é fruto de pesquisa realizada entre 2005 e 2007 com vinte lideranças femininas de várias etnias: Baré, Tukano, Dessana, Baniwa, Piratapuia, Kubeo. Essas mulheres, chamadas de “donas das receitas” – um termo de uso corrente nas línguas indígenas - são reconhecidas como guardiãs da sabedoria culinária. Elas nos transmitem segredos milenares de como preparar peixes, caças, beijus, mingaus, molhos, doces, bebidas, temperos e outros acompanhamentos. Tem fotos coloridas dos pratos que prepararam, entre outros a popeka, a mujeca e a quinhapira – o “prato nacional” do Alto Rio Negro.
Quinhapira e missa
A quinhapira é peixe cozido com pimenta, em cujo caldo se umedece o beiju. As formas de preparar são diversificadas, com muitas combinações: quinhapira de peixe com tucupi e caruru; de piraíba com tucupi doce e amarelo; de aracu com pimenta murupi, tucupi preto e chibé de açaí; de jacaré com taioba, manicuera, saúva e pimenta torrada, e por ai vai. Uma delícia! Quem provou uma vez, vicia e fica dependente. É o caso do missionário salesiano Norberto Hohenscherer.
Os índios contam histórias do padre Norberto, algumas delas tão picantes como a afrodisíaca pimenta jiquitaia, usada na quinhapira. Aos domingos, ele e a irmã Tereza saíam em desobriga pelo Tiquié. Em cada aldeia, antes de desembarcar, o padre indagava com voz fanhosa e sotaque gringo:
- “Tem quinhapira?”.
Se a resposta dos índios fosse um “não”, ele se vingava:
- “Então não tem missa”.
Aí, dava meia-volta no barco e se pirulitava, ia cantar em outra freguesia. Se, porém, fosse afirmativa, enchia o bucho e só depois celebrava. De sobremesa, podia até batizar, confessar e cantar o Tantum Ergo, caso o beiju fosse tenro.
Nos anos 1980, o preço da missa era a quinhapira. Que Deus perdoe o padre Norberto, mas tem quinhapira que vale mesmo uma missa. A sogra do Nazareno - o índio que dirige a Estação Piscicultura de Caruru, no rio Tiquié - preparou uma que dividi, em novembro de 2003, com o agrônomo do ISA, Pieter van der Veld, outro “viciado”. Abençoada sogra! O beiju com mistura de goma crua e goma assada não deixou que a massa ficasse liguenta. Tinha feitio de oração. Por isso, comemos ajoelhados, rezando e miando. Foi aí que compreendi o vício do padre Norberto.
Quem lê o livro, também vai compreender, mesmo sem saborear. Uma parte dele está escrito em língua Baniwa e em português, com o registro etnográfico de receitas das mulheres que moram em aldeias do rio Içana, desconhecem a cidade e não dominam a língua portuguesa. Mas o livro recupera também o saber de mulheres que, por viverem na área urbana de São Gabriel, para onde migraram ainda jovens, incorporaram técnicas e ingredientes do mundo não indígena.
Segundo Luiza Garnelo, o material coletado mostra uma sintonia entre as práticas alimentares dos índios das aldeias e das cidades. Nas cidades, eles acabaram criando “processos de urbanização do modo de vida indígena”, tendo a aldeia como principal sistema de referência. A pergunta que intriga é: por que essa culinária tão diversificada, rica e milenar nunca entrou nos restaurantes de Manaus? Sempre fiquei invocado com isso.
A chefe do chefe
A resposta é dada por Gilda Baré. Ela diz que a culinária indígena há alguns milênios vem contribuindo para a sobrevivência dos povos do Rio Negro. No entanto, até pouco tempo, as cidades tinham vergonha de consumir esse tipo de comida, considerada depreciativamente como ‘comida de índio’. O amazonense trocou uma comida saudável, gostosa, cheia de vitamina natural, assimilada com facilidade pelo corpo, por alimentos industrializados, enlatados e artificiais, envenenados com produtos químicos. É a festifude importada de Miami.
Agora, a presença dos índios nas cidades começa a mudar essa situação. As mulheres decidiram fazer o livro de receitas, porque estão preocupadas com a substituição de comidas tradicionais por alimentos caros e de baixo valor nutricional. Na luta para promover a soberania alimentar das populações locais, elas introduziram a culinária tradicional no cardápio da merenda das escolas de ensino fundamental de São Gabriel, chamando a atenção de restaurantes nacionais e internacionais.
Foi assim que uma índia baré, Josefa Andrade, conhecida como dona Brazi, de 56 anos, viajou por todo o país, ensinando seus quitutes. Em 2004, tive a sorte de ser convidado a um banquete que ela preparou para 16 jornalistas franceses na maloca da FOIRN. Eles ficaram ma-ra-vi-lha-dos, lambendo os beiços. Quelle merveille! Depois disso, em março de 2009, na semana gastronômica de São Paulo, ela foi a principal atração. O chef Alex Atala, do Restaurante D.O.M., eleito o 24º melhor restaurante do mundo pela revista inglesa The Restaurant, se curvou diante dela: - “É a chef do chef” – berrou uma revista especializada, entronizando dona Brazi definitivamente.
Outros chefs de cuisine como o franco-carioca Claude Troisgros, que vem de uma linhagem de cozinheiros, o franco-italiano Alain Poletto e Roland Villard estão promovendo a fusão da comida indígena com técnicas da gastronomia francesa. Em recente visita a uma aldeia Sateré-Mawé, Troisgros preparou um jantar francês pra dona Bacu, uma quituteira que lhe deu dicas na criação de um menu franco-indígena.]A culinária indígena está bombando. As receitas do livro citado são poemas saborosos, temperados com fantasia, imaginação e lirismo. Suas donas são mulheres maravilhosas, cujos nomes merecem terminar essa crônica: Idária, Gilda, Maria Taurina, Albertina, Bacilia, Aparecida, Mônica, Madalena, Rosa Hercília, Cecília, Verônica, Marilda Celma, Maria Lana, Deonília, Pedrina, Luiza, Cléa, Lídia e Maria dos Anjos. Que Deus vos abençoe, a vocês e a Luiza Garnelo!
Meninas, nas próximas oficinas de culinária, se precisarem de cobaia, me chamem. Tem quinhapira? Se tiver, até eu celebro uma missa tridentina. Rezo em latim: Introibo ad altare Dei, ad Deum qui laetificat juventutem meam.
P.S. –GARNELO, Luiza e BARRETO BARÉ, Gilda. Comidas Tradicionais Indigenas do Alto Rio Negro. Manaus. Coediçao EDUA/Institutito Leônidas e Maria Deane (ILMD) – Fiocruz Amazônia. 2008
Adquiri um exemplar do livro pra minha amiga Chachá, Charufe Nasser, a sultana do seringal, que também faz poesia com a culinária regional.
Edición digital nº +679 - 22 May 2017 - 23:15:
LAS DUEÑAS DE LAS RECETAS:
LA CULINÁRIA INDÍGENA
José R. Bessa Freire - Diário do Amazonas
Traducción: MARIA JOSÉ ALFARO FREIRE
Existen plantas cuyas flores son comestibles:brócolis y coliflor por ejemplo. Ahora, levante la mano quien ya comió flor de chontaduro. La época es setiembre, cuando los chontaduros, conocidos en Brasil como “pupunha”, comienzan a florecer. Entonces es cuando doña Maria Martins Lana, india Kubeo del Alto Rio Negro (AM) coloca cestos debajo de las palmeras para coger las flores que caen. Retira los pétalos, dejándolos descansar tres días en una canasta, para que quede “a punto”. Despúes, ya puede preparar um pastel de flor de chontaduro.
Nacida en el río Uaupés, doña María, 47 años, dueña de una receta refinada de pescado con flor de chontaduro, nos aconseja:
- “El día de preparar el pescado, lave las flores y colóquelas en una olla con agua para cocinar durante una hora. Una vez cocidas deje enfriar. Entonces muela las flores en el batán pilão. Lleve esa masa al fuego para cocinar por una hora. No olvidarse de aderezarla con sal y pimienta. Al final, se tendrá una pasta para aderezar el pescado, pero que también puede comerse pura”.
Bueno, direis, comer flores! Y yo les diré que para comerlas es necesario ir a buscarlas entre decenas de recetas del libro ‘Comidas Tradicionais Indígenas do Alto Rio Negro’ (EDUA-FioCruz), lanzado recentemente en el Museo del Indio, Rio de Janeiro, por dos investigadoras: la profesora de la Universidade Federal do Amazonas Luiza Garnelo, médica y antropóloga, y la india baré Gilda Barreto, coordinadora da Wariró – Casa de Productos Indígenas del Rio Negro. Fui allí para verificar.
El libro es fruto de investigación realizada entre 2005 y 2007 con veinte líderes femeninas de varias etnías: Baré, Tukano, Dessana, Baniwa, Piratapuia, Kubeo. Esas mujeres, conocidas como “dueñas de las recetas” – un término de uso corriente en las lenguas indígenas - son reconocidas como guardianas de la sabiduría culinaria. Ellas nos transmiten secretos milenares de como preparar pescados, caza, beijus, mazamorras, salsas, dulces, bebidas, aderezos y otros acompañamientos. Tiene fotos a color de los platos que preparan, entre otros la popeka, la mujeca e a quinhapira – el “plato nacional” del Alto Rio Negro.
Quinhapira y misa
Quinhapira consiste en pescado cocido con pimienta, en cuyo caldo se humedece el beiju, conocido por los índios del mundo hispânico como casabe, una espécie de pan ácimo, crujiente, delgado y circular hecho com la pasta de yuca. Las formas de prepararlo son diversificadas, con muchas combinaciones: quinhapira de pescado con tucupi y caruru; de piraíba con tucupi dulce y amarillo; de aracu con pimienta murupi, tucupi negro y chibé de açaí; de jacaré con taioba, manicuera, saúva y pimienta tostada. ¡Una delicia! Quien probó una vez, se vuelve viciado y dependiente. Como en el caso del misionero salesiano Norberto Hohenscherer.
Los indios cuentan historias del padre Norberto, algunas tan picantes como la afrodisiaca pimienta jiquitaia, usada en la quinhapira. Los domingos, él y la hermana Tereza salian de barco para rezar missa en las comunidades del río Tiquié. En cada aldea, antes de desembarcar, el padre indagaba con voz anasalada y acento gringo: - “Hay quinhapira?”. Si la respuesta de los indios era un “no”, se vengaba: - “Entonces no hay misa”. Daba media vuelta en el barco y se las picaba, iba cantar en otra parroquia. Si, al contrario, la respuesta fuera afirmativa, se llenaba la panza y después celebraba la misa. De postre, podía bautizar, confesar y cantar el Tantum Ergo, si el beiju estuviera crocante .
En los años 1980, el precio de la misa era la quinhapira. Que Dios me perdone, pero hay quinhapira que vale una misa. La suegra de Nazareno - el índio que dirige la Estación Piscicultura de Caruru, en el río Tiquié - preparó una que dividi, en noviembre de 2003, con el agrónomo Pieter van der Veld, otro “viciado”. ¡Bendita suegra! El beiju com uma mezcla de goma cruda y goma asada impide que la masa quede pegajosa. Por eso, comimos de rodillas, rezando. Fue em esse momento que comprendí el vicio del padre Norberto.
Quien lee el libro, puede llegar a comprender, aunque no saboree. Una parte está escrito en lengua Baniwa y en portugués, con el registro etnográfico de recetas de las mujeres que viven en aldeas del río Içana, no conocen la ciudad y no dominan la lengua portuguesa. El libro recupera también el saber de mujeres que por el hecho de vivir en el área urbana de São Gabriel, adonde migraron cuando eran jóvenes, incorporaron técnicas e ingredientes del mundo no indígena.
Según Luiza Garnelo, el material colectado muestra una sintonía entre las prácticas alimentares de los indios de las aldeas y la de las ciudades. En las ciudades, se acabaron criando “procesos de urbanización del modo de vida indígena”, con la aldea como principal sistema de referencia. La pregunta que intriga es: ¿por qué esa culinaria tan diversificada, rica y milenar nunca entró en los restaurantes de Manaus? Siempre eso me llamó la atención.
La jefe del chef
La respuesta es de Gilda Baré. Ella dice que la culinaria indígena hace algunos milenios está contribuyendo con la sobrevivencia de los pueblos del Rio Negro. Sin embargo, hasta hace poco tiempo, las ciudades tenían vergüenza de consumir ese tipo de comida, considerada despectivamente como ‘comida de indio’. El amazonense cambió una comida saludable, sabrosa, llena de vitamina natural, asimilada con facilidad por el cuerpo, por alimentos industrializados, enlatados y artificiales, envenenados con productos químicos. Es la fast-food importada de Miami.
Ahora, la presencia de los indios en las ciudades comienza a cambiar esa situación. Las mujeres decidieron hacer el libro de recetas, porque están preocupadas con la substituición de comidas tradicionales por alimentos caros y de bajo valor nutricional. En la lucha para promover la soberanía alimentar de las populaciones locales, introdujeron la culinaria tradicional en el cardapio de la merienda de las escuelas de enseñanza fundamental de São Gabriel, llamando la atención de restaurantes nacionales e internacionales.
Fue así que una india baré, Josefa Andrade, conocida como doña Brazi, de 56 años, viajó por todo Brasil, enseñando sus delicias. En 2004, tuve la suerte de ser convidado a un banquete que ella preparó para 16 periodistas franceses en la choza de la FOIRN. Ellos se quedaron des-lum-bra-.dos, lamiéndose los dedos. Después, en marzo de 2009, en la semana gastronómica de São Paulo, ella fue la principal atracción. El chef Alex Atala, del Restaurant D.O.M., elegido el 24º mejor restaurant del mundo por la revista inglesa The Restaurant, se curvo ante ella: - “Es la chef del chef” – berró una revista especializada, entronizando a doña Brazi definitivamente.
Otros chefs de cuisine como el franco-carioca Claude Troisgros, que viene de un linaje de cocineros, el franco-italiano Alain Poletto y Roland Villard están promoviendo la fusión de la comida indígena con técnicas de la gastronomía francesa. En una reciente visita a una aldea Sateré-Mawé, Troisgros preparó una cena francesa para doña Bacu, una sábia de la cocina, que le dio ideas para la creación de un menú franco-indígena. La culinaria indígena está de moda, em pleno proceso de expansión. Las recetas del libro citado son poemas sabrosos, aderezados con fantasía, imaginación y lirismo. Sus dueñas son mujeres maravillosas, cuyos nombres merecen terminar esta crónica: Idária, Gilda, Maria Taurina, Albertina, Bacilia, Aparecida, Mônica, Madalena, Rosa Hercília, Cecília, Verônica, Marilda, Celma, Maria Lana, Deonília, Pedrina, Luiza, Cléa, Lídia e Maria dos Anjos. ¡Que Dios las bendiga, a Uds y a Luiza Garnelo!
Chicas, en los próximos talleres de culinaria, si por acaso necesitan un cobaya, llámenme. ¿Hay quinhapira? En caso afirmativo, puedo celebrar una misa tridentina. Rezo en latín: Introibo ad altare Dei, ad Deum qui laetificat juventutem meam.
P.S. –GARNELO, Luiza e BARRETO BARÉ, Gilda. Comidas Tradicionais Indigenas do Alto Rio Negro. Manaus. Coediçao EDUA/Instituto Leônidas e Maria Deane (ILMD) – Fiocruz Amazônia. 2008
http://elorejiverde.com/buen-vivir/2663-las-duenas-de-las-recetas - EL OREJIVERDE