O que têm em comum duas vitrines de arte indígena, uma exposta em Veneza em 2021 e a outra em Manaus, em 1997? A primeira foi na 17ª Bienal de Arquitetura, durou seis meses e se encerrou no domingo (21). A outra, aconteceu no Palácio Rio Negro e teve recorde de visitantes, entre eles dona Elisa, a genitora deste locutor que vos fala, cuja avaliação naquela ocasião já trazia embutida crítica ao atual secretário nacional da Cultura, Mário Frias. Ele declarou nunca ter ouvido falar na arquiteta Lina Bo Bardi, homenageada na Bienal e passou batido pela Oca Red – uma instalação reveladora do ato de morar dos povos indígenas do Xingu.
Dona Elisa também desconhecia Lina Bo Bardi e a arte indígena. Tudo bem, não podemos cobrar tais saberes a uma dona de casa ou a alguns eventuais leitores, que nunca desempenharam cargo comissionado no âmbito da cultura, mas é inadmissível que o representante do Brasil nesse campo ignore Lina Bo Bardi, cidadã ítalo-brasileira, criadora de dezenas de projetos reconhecidos no mundo inteiro, entre outros o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o SESC-Pompeia. A situação se agrava com a postagem de foto nas redes sociais do ignorante e truculento Mário Frias ao lado de seus assessores, portando metralhadoras para puxar o saco daquele que o nomeou para o posto. Para eles, cultura é isso.
Embora até 1997 ninguém houvesse mostrado arte indígena à dona Elisa, ela tirou lições da Exposição do Palácio Rio Negro, o que não fez Mário Frias na Bienal de Veneza, conforme se verá a seguir.
Futuros do passado
“Como viveremos juntos?” Esse foi o tema da Bienal aberta no dia 22 de maio em três espaços de Veneza, com participantes de 46 países, cada um mostrando diferentes formas de ocupar o mundo, que não se limitam à construção de edifícios e demais monstrengos. Seu curador, o arquiteto libanês Hashim Sarkis, está convencido de que outra forma de morar é possível na cidade do futuro, que nasce da partilha de espaços comuns.
- “A arquitetura pode ajudar a transformar a sociedade” – declarou ele na abertura da Bienal, quando defendeu uma arquitetura menos monumental e pediu aos participantes propostas que evidenciassem as causas dos conflitos e das desigualdades sociais em cada país.
O Brasil atendeu ao apelo e criou nas duas salas do seu pavilhão espaços denominados “Futuros do Passado” e “Futuros do presente” para discutir as metrópoles contemporâneas e as questões urbanas, incluindo a falta de moradia. Destacou as utopias em território brasileiro, desde a Terra Sem Males dos Guarani até os dias atuais. Ocupou o Pavilhão Central com a Oca Red - uma videoinstalação do cineasta Takumã Kuikuro em parceria com o designer Gringo Cardia, para mostrar como o modo de vida indígena contribui na reflexão sobre o futuro da nossa maneira de viver e de ser.
- “Esta instalação é muito importante para falar da nossa realidade, para mostrar como nós vivemos na aldeia, como preservamos e lutamos pelo meio ambiente, que está sendo atacado por fazendeiros e por esse governo do Brasil” - disse Takumã Kuikuro. Seu parceiro Gringo Cardia concorda:
- “Como arquiteto, vejo que a gente aprende com os povos da floresta essa relação de equilíbrio entre o coletivo e o entorno, o ambiente. Essa é a grande questão do século XXI: fazer a reconexão do homem, da sua casa, com o sagrado, que é a natureza em volta dele”.
Essa é também a preocupação da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu (AIKAX), cujos membros eleitos trabalham de comum acordo com lideranças tradicionais, anciãos e membros da comunidade, centrando o foco na aldeia Iptase. O projeto de documentação da Casa Xinguana inclui estudos etnolinguísticos e programas de educação local coordenados pela linguista Bruna Franchetto, além de documentação dos modos de vida contemporâneos registrados em vídeo pelo antropólogo Carlos Fausto.
Memórias da Amazônia
Quem está vagando e andando para tais questões é o titular da Secretaria de Cultura, Mario Frias, ao contrário de dona Elisa que em algum dia de abril de 1997 visitou a exposição “Memórias da Amazônia: Expressões de Identidades e Afirmação Étnica”, no Centro Cultural Palácio Rio Negro, em Manaus, em cujo jardins os Tukano e os Waimiri-Atroari construíram duas malocas, nas quais artistas de várias etnias ensinavam a fazer artesanato e pintura. Quem entrou nessas duas "catedrais" entendeu porque o premiado Severiano Porto confessou haver aprendido arquitetura com os índios na busca de soluções para habitar modernamente o espaço amazônico.
Entrei nas duas malocas com dona Elisa, percorrendo em seguida as salas do Palácio onde estavam expostas cerca de 300 peças artísticas confeccionadas pelos índios e coletadas entre 1783 e 1792 pelo cientista luso-baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua viagem filosófica, e trazidas pela Universidade de Coimbra para a exposição do Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Uma confidência: dona Elisa, igual que a maioria dos amazonenses, herdou a discriminação aos índios, nunca manifestada diante deste seu filho, talvez para não me ofender, talvez por saber que levaria o troco. Ela ouviu muitos discursos boçais sobre a “selvageria” e a “preguiça” dos povos originários, semelhantes à recente fala do general Mourão ou ao enunciado nesta quarta-feira (24) na audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, durante a discussão sobre o garimpo em território Yanomami responsável por muitas mortes. Parlamentares bolsonaristas, entre eles o Coronel Tadeu (PSL-SP vixe vixe), trataram os índios como “vagabundos”.
Por isso, a primeira vitrine impactou dona Elisa, com a mostra de cuias: umas pintadas com ramos de flores coloridas, outras ornamentadas com árvores, pássaros, frutas e figuras humanas, ainda outra decorada com um coração alado que vertia sangue, perfurado por duas flechas. Seus olhos azuis de nordestina contemplavam maravilhados bilhas, tigelas e jarras de cerâmica com motivos decorativos coloridos, vasos de argila branca com alças, cachimbo cinzelado com motivos florais, maracá pintado com faixa dourada em espiral, prancheta para aspirar paricá com cabo esculpido na forma de pescoço de um réptil, trombetas, figuras zoomorfas de cerâmica.
Nossos antepassados
Na medida em que prosseguia a visita, aumentava o deslumbramento: vasos carenados, colares com cilindro de quartzo, lança-chocalho de madeira vermelha ovalada, clavas, máscaras de entrecasca representando animais diversos da floresta, tangas de missangas, zarabatanas, sem contar a arte plumária: coifas e toucas revestidas com penas de papagaio, faixas emplumadas com penas vermelhas e amarelas de arara, pulseiras com pingentes. Todas as peças eram extraordinariamente belas. Diante de uma das últimas – uma trombeta transversal Munduruku talhada em madeira vermelha, ao lado de uma flauta sagrada dos Tukano - dona Elisa, já sem fôlego, expressou uma dúvida atroz que revelava seu pensamento:
- José (ela só me chamava assim em momentos delicados), você tem certeza que essas peças foram produzidas pelos índios?
A resposta foi dada na hora pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, então diretor do Museu Amazônico, que nos acompanhava:
- Se a senhora quiser posso lhe mostrar a documentação comprobatória.
No final da visita, seu comentário mostrou que havia aprendido a lição:
- “Meu filho, eu não sabia que os nossos antepassados eram capazes de produzir tanta beleza”.
Foi a primeira vez, em seus 80 anos de vida, que a ouvi se referir aos índios como seus “antepassados”. As peças confeccionadas por diferentes povos da Amazônia provocaram nela um sentimento de orgulho pela revelação de um passado compartilhado de refinamento, que até então desconhecia. Operaram um milagre na consciência da sua identidade regional.
Daí em diante, em suas aulas de catecismo aos sábados, na igreja de Aparecida, dona Elisa abriu espaço para dizer às crianças quem são os índios, vistos agora com outros olhos, como se ela parafraseasse o discurso do presidente do México, Lopes Mateo, na inauguração do Museu Nacional de Antropologia:
- O povo brasileiro levanta este monumento em homenagem às admiráveis culturas que floresceram na era pré-colombiana em regiões que são agora território da República. Diante do testemunho daquelas culturas, o Brasil de hoje rende tributo ao Brasil indígena, em cujo exemplo reconhece características de sua originalidade nacional.
Essa é a lição que Frias e quem o nomeou jamais aprenderão, porque não são dignos de ver nem de entender. Mas o protagonismo inédito da arte indígena contemporânea na 34ª edição da Bienal de São Paulo “Faz escuro, mas eu canto”, que termina no domingo (5), comprova – como sinalizou Jaider Esbell - que “a gente veio para ficar e que não somos modismo”.
Efetivamente, no evento de arte mais importante do Brasil, participam nove artistas indígenas. Além disso, mais de trinta deles exibiram sua produção na mostra paralela “Moquém Surari: Arte Indígena Contemporânea” no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e estão presentes ainda na Pinacoteca, no Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE) e na Plataforma TePI – Teatro e os Povos Indígenas – idealizada ´por Ailton Krenak.
P.S. - Num episódio ocorrido em julho 1981, narrado em outra crônica (ver link abaixo) visitamos com dona Elisa o Museu Hermitage na então cidade de Leningrado, hoje São Petersburgo, cujo acervo tem mais de 3 milhões de peças. Na exposição aberta ao público havia objetos da arte popular russa conhecida como Khokhloma – pintura decorativa em pratos de madeira, taças, jarras, colheres de pau e diferentes utensílios de cozinha com ornamentação floral: folhas douradas, ramos, flores, frutas, grama. As lojas turísticas vendiam mostras dessas peças. De lá, dona Elisa trouxe uma colher. Quando ela viu as cuias das índias de Santarém da coleção Alexandre Rodrigues Ferreira, estabeleceu a comparação com a Khokhloma, cujo nome ela e eu havíamos esquecido e que depois recuperei nas anotações que fiz em um caderno. (http://www.taquiprati.com.br/cronica/1333-memoria-olfativa-em-busca-do-sabonete-gessy)