Ives Gandra Martins, professor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME), é advogado tributarista. Adora números e odeia índios. Traz no coldre uma arma engatilhada, carregada de cifras, que dispara contra Makuxi e Wapixana, a quem imprecisa e desrespeitosamente chama – sem se preocupar com a grafia correta - de nakixi e xapixanos. Domingo passado, descarregou sua munição contra os índios de Roraima fazendo contas bizarras, em artigo na Folha de São Paulo (“11 cidades de São Paulo”).Ainda bem que acertou no alvo errado ou pelo menos grafado incorretamente.
Se elefante comesse barro e tivesse fiofó quadrado seria uma fábrica de tijolos, ensina ‘Pão Molhado’, meu sobrinho. Esse modelo de raciocínio é usado por Elves Granda, quando afirma que se tivesse a mesma densidade demográfica da cidade de São Paulo, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol abrigaria 110 milhões de brasileiros. No entanto, lá, nesse território - onze vezes maior que a capital paulista - vivem ‘apenas’ 18 mil índios, ele diz. Ou seja, o fiofó do elefante é redondo. Gendra deplora esse enorme desperdício, informando que em todo Brasil “pouco mais de 400 mil índios ocupam 107 milhões de hectares”.
Gondra está inconformado porque o elefante não é uma olaria. Multiplica 107 milhões de hectares por 10.000 m², mostrando que no Brasil os índios controlam territórios com 1.070.000.000.000 m² (um trilhão e setenta bilhões de metros quadrados). Cifras, estratosféricas e assustadoras, são manipuladas para nos convencer de que é muita terra pra pouco índio, que os índios são privilegiados e que suas terras deviam ser ocupadas por brasileiros não-índios. Repete a mesma lenga-lenga de seus artigos anteriores (“Gostaria de ser índio”–11/10/04; “876 índios”–05/05/05).
É uma tática manjada – e nem sempre honesta – usada para confundir e não para informar. Vejam só: se digo que Ovis Gundra faz 74 anos em 12 de fevereiro de 2009, forneço um dado de que ele é um garotão diante de Matusalém, morto aos 969 anos. No entanto, Gandra se torna diluviano e jurássico, muito mais velho do que o avô de Noé, se afirmo – o que é absolutamente correto – que ele já viveu 2.333.664.000 segundos.
Ir e vir
Esse homem não hesita em usar sua experiência de mais de 2 bilhões de segundos bem vividos e o seu prestígio de constitucionalista para afirmar que cerca de 185 milhões de brasileiros não podem andar livremente pelo país, exercendo o seu direito constitucional de ir e vir, porque 13% das terras – um trilhão e setenta bilhões de metros quadrados – estão nas mãos dos índios, os únicos que podem percorrer 100% do território nacional, o que lhes confere, portanto “direitos superiores aos dos brasileiros não-índios”.
Índio privilegiado? Ri-dí-cu-lo! Isso é um escárnio. Gandra quer tornar antipáticos para a sociedade brasileira os direitos indígenas garantidos pela Constituição, usando uma forma primária e troglodita de pensar, que agride nossa inteligência. O pior é que tem gente que acredita. No Painel do Leitor da Folha, Marco Nogueira escreveu: “Compartilho da preocupação de Ives Gandra (...) Creio que as informações que o autor coloca em seu artigo são verídicas”. Leitores de O Globo, referindo-se a artigo de Denis Ronsefield (Viagem à Amazônia – 22/12/08) fizeram também idênticos comentários, recomendando sua leitura aos ministros do Supremo Tribunal (STF).
Imagine só! A gente não sabe se fica indignado ou se morre de pena desses leitores, aparentemente tão babacas como a Irene Fontini, que acredita na Flora, a assassina de seu filho e de seu marido, na novela A Favorita. Na verdade, são poucos os brasileiros que conheceram uma aldeia indígena, que conviveram com índios e que leram os trabalhos de antropólogos. Eles têm suas próprias preocupações. A tendência é, portanto, confiar na autoridade dos especialistas, alguns dos quais se aproveitam dessa lacuna para manipular mentes.
Por isso, a responsabilidade de quem forma opinião é enorme. Ives Gandra, que sequer grafa corretamente os etnônimos, oculta o fato de que ninguém pode andar livremente nem por 87% e nem pelo restante 100% do território nacional, como esclarece Reinaldo Silva, jurista da Universidade Federal de Santa Catarina. E isto porque a Constituição prevê o regime de propriedade privada, garantindo o livre trânsito apenas pelos bens públicos de uso comum, como estradas e praças, e pelos bens públicos de uso especial como rodoviárias e aeroportos, o que representa menos de 10% do território brasileiro.
“Tente entrar anonimamente em áreas da Vale do Rio Doce que tem o tamanho de Portugal e depois nos conte a experiência”, sugere Marina Gurgel. Efetivamente, qualquer leitor que circular, sem autorização, nas fazendas dos clientes do escritório de advocacia Gandra Martins, pode ser preso. A grande propriedade ocupa 55% de todo o território cadastrado no Incra. Mas Gandra, defensor da propriedade privada, não coloca isso em questão, eliminando tendenciosamente a informação. Culpa os índios, cujas terras constitucionalmente não são propriedade privada e – para ele - não devem ser demarcadas. Recomenda isso aos ministros do Supremo.
Reza e jejum
Quem é, afinal, Ives Gandra? Numa linguagem rebuscada, a revista Consultor Jurídico traça seu perfil: “católico praticante, não perde missa aos domingos, reza depois das refeições e jejua na Quaresma. Leva a sério suas convicções e a doutrina da Igreja, com a mesma coerência que defende suas teses jurídicas. Assim é que, fiel ao preceito da indissolubilidade do vínculo matrimonial pregado pela Igreja, não se permite a ir ao casamento de quem se casa em segundas núpcias. A crença nos valores católicos também o levou a se filiar à Opus Dei, organização conservadora da Igreja”.
A biografia de Ives Granda informa ainda que ele está todo emedalhado. Recebeu colares, medalhas, prêmios, Ordem do Mérito Militar do Exército Brasileiro, Medalha do Pacificador, Diploma de Cidadão Araraquense, Troféu Guerreiro da Educação e oscambau a quatro. Diz ainda que ele é autor de mais de 40 livros, co-autor de 150 – um deles com Gilmar Mendes, presidente do STF - além de 800 estudos diversos. Nada, porém, que o legitime a dar pitaco sobre o destino dos índios.
Por que um homem de fé, com essa biografia, ataca os índios, de forma tão irada, simulando que está protegendo os direitos de 185 milhões de brasileiros? É que seu escritório de advocacia – Gandra Martins e Rezek - prestou serviços ao então governador de Roraima, Ottomar Pinto, representante dos arrozeiros. O sócio, Francisco Rezek, ex-ministro do Governo Collor de Mello, é quem ficou encarregado do processo. Assim, Gandra escreve para defender os interesses particulares de seus clientes.
Nas entrelinhas, ele revela que pretende influenciar os votos dos ministros do STF no julgamento ainda inconcluso de Raposa Serra do Sol, disparando mais cifras: “Pela decisão, se for confirmada no próximo ano – faltam três votos – os eminentes ministros do Supremo – que admiro há muitos anos, tendo inclusive, livros escritos com alguns deles – outorgariam, pelo precedente criado, a pouco mais de 400 mil índios, nascidos ou não no Brasil, com cultura diferente da dos outros 185 milhões de brasileiros, 107 milhões de hectares, vale dizer, 4.5 Estados de São Paulo, onde vivem hoje 42 milhões de brasileiros”.
Dessa forma, Gandra acaba ferindo um dos mandamentos do seu escritório de advocacia, redigido pomposamente com retórica balofa: “o advogado deve ter o espírito do legendário El Cid, capaz de humilhar reis e dar de beber a leprosos” (sempre, é claro, que o leproso pague a bebida). Ele faz exatamente o contrário daquilo que prega: dá de beber aos fazendeiros e humilha os índios. Felizmente, os ministros do Supremo sabem que elefante não come barro, tem fiofó redondo e não pode ser uma olaria. Os tiros disparados por Gandra contra os inexistentes nakixi e xapixanos, deixam intactos, felizmente, os Makuxi e Wapixana.
P.S. – Ah, ia me esquecendo, por questão de princípio Ives Gandra não vai assistir ao casamento de Irene Glória Menezes Fontini, uma viúva, com Tarcisio Meira Coppola, um divorciado. Nem o da Flora Patricia Pillar com o Dodi Murilo Benicio, também divorciado.