“Que importa o chapéu de palha, o traje, o rude perfil.
Ele é um homem que trabalha, ele é o filho do Brasil”.
(“Infância Brasileira”, livro didático da década de 50)
Mãe? Ninguém sabe quem era. Pai, muito menos. Ele era filho do Brasil como tantos outros cantados em quadrinha de autor cujo nome não lembro mais. De pais desconhecidos, Wilson Pinheiro de Souza nasceu por volta de 1933, sabe-se lá em que dia e mês, no Careiro (AM), distante de Manaus umas quantas horas de barco, onde aprendeu a nadar nas águas do rio Castanho. De lá foi parar no Acre, na fronteira com a Bolívia. Trabalhou em seringal e foi eleito presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, quando o conheci em abril de 1979, numa reunião com os índios Apurinã no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco.
Ele seria mencionado na abertura da minha fala no 5º Encontro dos Estados Gerais da Cultura (EGC), programado para domingo (6) sob a batuta do cineasta Silvio Tendler, organizador do movimento que pretende recriar o destroçado Ministério da Cultura. Desde julho, aos domingos, uma centena de pessoas se reúne para discutir o Brasil e suas políticas culturais. No meu dia, quando eu ia começar a falar, uma horda de bárbaros invadiu com palavrões a sala do zoom aos gritos de “mito, mito”, exibindo imagens do capitão armado.
- “Estamos incomodando, fomos reconhecidos pelo adversário, passaram recibo” – celebrou Silvio Tendler, um guerreiro da paz.
A Escola Superior da Paz foi criada pelo movimento EGC com objetivos diferentes aos da Escola Superior de Guerra e, segundo a jornalista Tânia Fusco, já conta até com um reitor, o historiador Célio Turino, que como secretário da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (2004-2010) criou o Programa Cultura Viva, responsável por mais de 2.500 Pontos de Cultura em mais de mil municípios brasileiros. A Escola da Paz defende a Doutrina de Segurança Emocional para exigir trégua nas comunidades das periferias brasileiras, contando para isso com as amadíssimas Forças Amadas.
O território indígena
Por sugestão das Forças Amadas, o 5º Encontro dos EGC foi, então, transferido para a plataforma da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde fiz um resumo da palestra sobre “O lugar dos povos indígenas na política cultural do Brasil”, devendo desenvolver o tema de forma ampla no início de outubro. Não é possível fazer uma discussão séria sobre políticas culturais, deixando os índios de fora. Mas qual é o lugar do Wilsão nessa história se ele não é indígena?
Um episódio vivido por Wilsão com os Apurinã, do qual eu participei, serviu para introduzir o tema da demarcação dos territórios indígenas e relacioná-los com a cultura. A terra indígena não é só um espaço físico, um bem material, vista pelo agronegócio e as mineradoras apenas como valor de mercado. Ela é muito mais do que isso, é um bem cultural, como ficou evidente no diálogo entre índios e trabalhadores rurais, ocorrido no dia 19 de abril de 1979, um ano e três meses antes do assassinato do Wilsão.
Foi assim. Nos anos 1970, o grileiro paranaense João Sorbile, apelidado de “Cabeça Branca”, aproveitou a longa temporada de caça dos índios Apurinã e com a conivência do Cartório de Boca do Acre (AM) loteou a terra indígena, vendendo os lotes para colonos vindos do Paraná. Quando os índios retornaram da caçada encontraram lá outros “donos”, que exibiam recibos do pagamento feito ao grileiro. Armou-se um conflito feio entre índios e posseiros.
Para lutar contra o grileiro em vez de brigar entre si, índios e posseiros se reuniram no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco, com a participação de lideranças de várias entidades, entre as quais Wilson Pinheiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia e Chico Mendes, ex-secretário do sindicato que se elegera vereador em Xapuri. Daí nasceu o Comitê Índios x Posseiros, berço do movimento “Aliança dos Povos da Floresta”.
Lugar de memória
Na ocasião, foi encenada a peça “A Grilagem do Cabeça” dirigida por Vera Froes do Grupo Testa, descrevendo toda a trama sórdida. Depois do espetáculo Wilsão manifestou durante a reunião que não entendia porque os índios não se sindicalizavam.
Numa intervenção pública perguntamos a ele:
- Você aceitaria trocar a terra onde está, em Brasileia, por uma terra fértil do mesmo tamanho aqui perto do mercado consumidor?
Wilsão respondeu:
- Quem não aceitaria? A distância de lá para cá é de mais 200 km por uma estrada intransitável cheia de lama e buracos.
A mesma pergunta foi dirigida a Manuel Apurinã ali presente. Ele disse que não trocaria nem por um terreno dez vezes maior. É que para ele a terra era um lugar de memória, um espaço sagrado, onde estavam enterrados os seus mortos, com numerosas referências às narrativas míticas. Sem ela, a cultura Apurinã se esfacelava.
Manuel cantou, então, para uma plateia silenciosa e reverente, uma canção em língua Apurinã. Embora desconhecesse a língua, Wilsão entendeu tudo, percebeu que estava diante de outra cultura, com sua forma específica de ver e lidar com a terra. Manuel disse algo assim como “não é a terra que nos pertence, somos nós que pertencemos à terra. Por isso não podemos sair de lá”. Na versão Guarani, sem tekoá (aldeia) não há tekó (cultura). É no território que eles cultivam o nhanderekó (o “nosso jeito de viver”), que dá conta das relações internas pautadas pela ética do parentesco e pelo ideal de boa convivência.
Forças Amadas
Portanto, quando o governo Bolsonaro impede a demarcação das terras indígenas, tal medida, que contraria a Constituição, golpeia culturas milenares e destrói línguas, saberes tradicionais, arte, música, literatura oral. A Funai bolsonarista editou uma instrução normativa que permite o registro de propriedades privadas sobrepostas a terras indígenas em processo de homologação, oficializando assim a grilagem. A juíza federal do Pará acaba de suspender tal excrecência,
Durante quase cinco séculos os índios perderam mais de 87% de seus territórios e com eles suas culturas, que são vitais não apenas para os povos originários, mas para o Brasil e para a humanidade. Por isso, a Constituição de 1988 repactuou: o que os povos ameríndios perderam, perdido está, mas o Estado garante daqui em diante o usufruto das terras que permaneceram ocupadas.
A atual política de um governo que nega aos índios, em plena pandemia, o acesso à água potável, mostra que esse pacto está sendo violado. A garantia da terra aos povos indígenas, como assegura a Constituição, não é apenas uma medida no campo da economia, mas faz parte da própria política cultural. É isso que, entre outras questões, os invasores da reunião não queriam que fosse dito e discutido.
Wilsão era um homem da paz. Liderou o movimento Mutirão contra a jagunçada, que levou centenas de posseiros a tomar dezenas de rifles dos pistoleiros contratados por grileiros, entregando as armas ao Exército. Wilsão foi assassinado, aos 47 anos, com um tiro pelas costas, mas parece que continua incomodando. E nós com ele. Três vivas aos Estados Gerais da Cultura, à Escola Superior da Paz e às Forças Amadas.
Obs: Créditos: fotos de Milton Guran, Nietta Monte, entre outros.
P.S. – Nesta segunda (14), às 21 hrs, a Revista Xapuri organiza a Live Solidária em homenagem à Sergio Ricardo e Thiago de Mello, mediada por Andrea Matos, com participação de Renato Aroeira e as canções imperdíveis na voz de Sabah Moraes. Será lembrado o show que Sérgio Ricardo, falecido recentemente, apresentou no Teatro Amazonas com o poeta Thiago de Melo, em cronica publicada pela revista Xapuri: - Te entrega, Corisco! - Eu não me entrego não. Não me entrego a tenente, não me entrego a capitão...