1. A cidade de Eirunepé, na década de 40, era apenas uma pracinha e duas ruas que mergulhavam na escuridão, quando o motor de luz era desligado, sempre às 21:00 horas. A pracinha abrigava os três poderes: igreja, grupo escolar e delegacia de policia. Na rua da Frente, olhando para o rio Juruá, moravam os ricos: o farmacêutico, o dono da padaria, o diretor da escola. Os pobres - coitados! - se escondiam na rua de Trás, com vistas para um capinzal infestado de mucuins. Era lá, numa casa de 110 metros quadrados - uma manjedoura humilde - que morava Nininho. Ele não tinha sequer um toco para amarrar sua canoa. O valor do imóvel? Em torno de 2.800 a 3.000 dólares.
2. No início da década de 60, Manaus tinha 150 mil habitantes. Um deles era um cabocão, conhecido na Faculdade de Direito, onde estudava, como Ninão. Seu pai - honrado e trabalhador - havia migrado com a família, de Eirunepé a Manaus, em busca de melhoria de vida. Moravam ali na Joaquim Nabuco, uma rua que não era a da frente, mas também não era a de trás. A casa era boazinha, tinha 190 metros quadrados, porão, quintal e uma entradinha, que servia para estacionar a bicicleta, comprada de segunda mão. Ficava quase na esquina com a Dez de Julho. Está lá, até hoje, pra quem quiser ver. O valor do imóvel - uns 15.000 dólares - era compatível com a renda familiar.
3. Hoje, Amazonino Mendes vive em uma mansão de 2.500 metros quadrados, num terreno de três hectares, às margens do igarapé Tarumã, com quatro piscinas climatizadas, lago artificial, cascatas, jardins, quadra de esporte, pista de cooper. A casa, de quatro andares, tem cinco suites com amplas varandas, salas de jantar, de estar, de tv e cinema. Uma torre, com elevador panorâmico, conduz aos salões de jogos e de festas. Quem chega nela por estrada, estaciona o carro na garagem; se vier por ar, pousa num heliporto; de barco, atraca num cais. O seu valor, 4 milhões de dólares, é incompatível com a declaração de rendas do dono, segundo o deputado Mario Frota (PDT).
A CABEÇA DO AMAZONINO
A Caixa Econômica - jura Amazonino - emprestou 300 mil reais para construir a mansão do Tarumã. Opa! Parece que já localizamos 4% do seu valor. E o resto? Compete ao Ministério Público investigar a origem dos recursos empregados e verificar se o seu proprietário, como o juiz Nicolau, recebeu alguma herança milionária de um tio alfaiate. Nós, da platéia, perplexos, apenas perguntamos: como é que o Nininho dos mucuins construiu uma mansão escandalosamente cinematográfica? Por que o Ninão do Pecebão, que lutava contra a miséria, ostenta hoje tanto luxo?
Os deputados Eron Bezerra (PC do B) e Mario Frota, querendo saber isso, lutaram para criar uma CPI. O presidente da Assembléia Legislativa, Lupércio Ramos (Viche! Viche!), do mesmo partido do governador, o PFL (Viche! Viche!), não deixou. Apresentou uma justificativa surpreendente publicada na Folha de São Paulo:
"Sei que é um escândalo. Mas sou contra a CPI, porque a atitude de construir a casa foi do cidadão, não do governador".
Este argumento, em que pese a sua indiscutível profundidade filosófica, nos coloca dúvidas nada metafísicas. Quando Amazonino come, quem se alimenta: o governador ou o cidadão? Quando ele faz as suas - digamos assim - necessidades fisiológicas, a obra é pública ou privada? De quem é, afinal, o saco que Lupércio puxa: do cidadão ou do governador? Já que não permitem a formação de uma CPI, uma forma de responder todas essas perguntas é entrar na cabeça do Amazonino Mendes e vasculhar sua alma para saber que diabo está acontecendo lá dentro.
Esta é uma operação difícil, mas não impossível. Machado de Assis conseguiu entrar na cabeça do cônego Matias, no delicioso conto "O Cônego ou a metafísica do estilo", para saber como é que o padre escrevia os seus sermões e de que forma, lá dentro, um substantivo casava com um adjetivo. Sem a experiência e o gênio de Machado, vamos contratar um piloto, especialista no assunto, que nos servirá de guia nessa viagem.
A PISSICA ANÁLISE
O nosso piloto é Carlos Gustav Jung, psiquiatra suiço, discípulo predileto de Freud e criador de uma teoria denominada "psicologia analítica". Logo depois de publicar seu livro "Tipos Psicológicos", Jung comprou, em 1922, um terreno na margem superior do Lago de Zurique, em Bollingen. Ali, começou a construir sua casa, uma cabana primitiva tão modesta como as casas da rua de Trás, em Eirunepé, embora com uma dupla vantagem sobre elas: havia um toco, no lago de Zurique, para amarrar o seu barquinho e ele nunca foi mordido por mucuim.
Mas a construção parecia até a da igreja da Praça XIV: não terminava nunca. Durante mais de trinta anos, Jung trabalhou com suas próprias mãos, modificando a moradia original. Cada vez que sentia falta de alguma coisa, construía mais um pedaço. Pouco a pouco, a cabana modesta foi se transformando numa casa boazinha. No final, ergueu uma espécie de campanário e por isso a construção, concluída em 1955, ficou conhecida como "A Torre de Jung". Quando ele morreu em 1961, com 86 anos, deixou a casa para seus herdeiros e, para nós, algumas reflexões úteis sobre a miséria humana.
O estudo sobre a história dos símbolos foi escrito durante as reformas da casa. Jung observou as modificações em sua arquitetura, refletiu muito sobre elas e acabou descobrindo que retratavam com uma fidelidade impressionante a evolução do seu caráter e as mudanças de sua personalidade. Percebeu que qualquer casa é um documento, com muitas informações sobre o seu dono, porque reflete sonhos, fantasias, pensamentos, frustrações, desejos, ambições e conteúdos do inconsciente de quem a projeta. Uma casa define a identidade e exibe a impressão digital do seu morador. Sabedor disso, o cupincha de Freud concluiu: diz-me como é tua casa e eu te direi quem és.
Com essa perspectiva teórica, perguntamos: qual a leitura que podemos fazer do caráter de Amazonino Mendes, analisando suas diferentes casas? O que a mansão do Tarumã diz sobre a personalidade de seu morador? Leitores com menos de quarenta anos talvez não saibam que "dar pissica", em língua amazonense, significa "dar palpite". Quem dá pissica é palpiteiro enxerido. Portanto, reconheço que o que vamos fazer com ajuda de meu compadre, o pissica analista Rogélio Casado, é pura pissica análise. Te convido pois, leitor (a), a embarcar comigo nessa fascinante aventura de aterrizar no cérebro do Amazonino, mas aperta os cintos, porque existem muitos vácuos que podem provocar turbulências.
O PLAYBOY DE EIRUNEPÉ
Uma preliminar, data venia, se impõe: as duas primeiras casas não foram projetadas pelo próprio Amazonino. Como a maioria das pessoas, ele morou em casas construídas por outros. Nesse caso, importa saber como estavam arrumadas, os móveis que tinham, as reformas feitas pelo morador, enfim dados que não possuímos. De qualquer forma, elas nos interessam porque dão uma idéia da trajetória habitacional do seu inquilino.
A casa de Eirunepé, por exemplo, não deixa de ser um arquivo com raízes e lembranças. Revela que o seu humilde morador foi iniciado na difícil arte de distinguir o que era bonito do que era feio. Feio era o seu cotidiano: o capinzal, os mucuins, as ruas enlameadas e escuras, a inveja que tinha do playboy mais sofisticado de Eirunepé - o filho do dono da padaria - que usava óculos escuros, tinha um cordão de ouro e fazia três refeições por dia. Bonito era a majestade sinuosa do rio Juruá, o jardinzinho em frente à igreja, os carinhos de sua mãe, o sorriso de sua professora com seu dente de ouro, a caldeirada de bodó.
Os pissica-analistas decifraram também a casa da Joaquim Nabuco, onde havia livros, uma pequena biblioteca, um quarto de estudo e o exemplo da honradez paterna. Foi nessa casa que Ninão aprendeu a distinguir o certo do errado. Errado é o desemprego, a miséria, a fome, a exploração, o individualismo, a farinha-pouca-meu-pirão-primeiro. Certo é a generosidade, a solidariedade com os sofridos, o combate por um mundo melhor. Por isso, Ninão, simpatizante do Partido Comunista, queria mudar a sociedade, militando no movimento estudantil até ser preso com o golpe militar de 1964.
No entanto, é a mansão do Tarumã que atrai todo o peso da nossa pissica-análise. De saída, precisamos saber se ela foi concebida pelo governador ou pelo cidadão. Lamento decepcionar os puxa-sacos oficiais, mas a ciência pissica-analítica comprovou com exames laboratoriais que ambos - governador e cidadão - são comandados por um único cérebro com aproximadamente dez milhões de células. Lupércio, na ânsia de prestar serviços, ficou vesgueta, vendo dois em um.
Confesso que para ler pissica-analiticamente a mansão do Tarumã, Jung sozinho não basta. Por isso, recorremos a uma junta de neurologistas. O mais famoso deles, um japonês, identificou uma mancha escura no sistema límbico do cérebro de Amazonino, que apagou de sua memória algumas lembranças básicas. Te convido, leitor (a), a visitar a mansão do Tarumã e procurar comigo os vestígios daquilo que ele esqueceu.
Vê só! Os salões de festa e de jogos foram desenhados para olhar pro chão. O piso é todo de vidro grosso, comprado na Itália. Através dele, podemos ver o jardim interno do pavimento inferior: filodendros, alpínias, jasmim-estrela, trepadeiras, tudo importado, não tem sequer uma maria-sem-vergonha. Até as telhas vieram de fora. Aterraram o igarapé para construir um lago artificial! Num processo simbólico, Amazonino enforcou o Nininho, perdendo com isso a noção de beleza amazônica, que foi banida da mansão do Tarumã. Desdenhou os avanços da arquitetura regional, reconhecidos nacional e internacionalmente: Roger e Ana Lucia Abrahim, Roberto Moita, Severiano Porto. Qual foi sua escolha arquitetônica? O modelo da Casa da Dinda.
A CASA DO DINDO
Amazonino, emergente, confunde luxo com beleza e usa torneiras de ouro e cascatas numa sociedade em que muita gente não tem água encanada. A mansão do Tarumã pode até impressionar olhos anestesiados pelo brega-novo-rico, mas é feia, como o bunker do Pablo Escobar ou aquelas casas de narco-traficiantes e chefões da máfia mostradas pela televisão. Tem salões de jogos e de festas, mas inexiste espaço para uma biblioteca. Sua desproporção, sua desmedida, sua ilimitação constituem um hino retumbante ao grotesco. Sua megalomania provoca um desprazer ao observador mais refinado. Ela é decadente. Reúne tudo aquilo que sobrou com a ausência do belo.
Existe uma relação entre feiúra e perversidade. A condenação do feio não se baseia apenas em agrado ou desagrado aos sentidos, mas vincula-se também a aspectos morais. Quando Amazonino torturou e fuzilou o Ninão - aquele estudante que queria mudar o mundo - comprometeu a sua própria noção do certo e do errado. Por isso, ele convidou para assessorá-lo a figura sinistra do Egberto Batista, que onde pisa não nasce uma flor. Amazonino não está preocupado com o bem-estar coletivo, mas com suas próprias mordomias, o que é um crime, em se tratando de um governante que constrói uma mansão exacerbadamente rica numa sociedade exacerbadamente pobre.
Recentemente, com as chuvas, desabaram casas à beira de igarapés e outras estão seriamente ameaçadas. O coronel do Corpo de Bombeiros, responsável pela defesa civil, aconselhou seus moradores, através dos jornais, a irem morar com parentes. É aí que reside a perversidade do feio: ele é responsável pela ausência do belo. A miséria dos governados só existe por causa do luxo e da ostentação do governador. As duas coisas estão estreitamente relacionadas.
A elite da borracha foi mais sensível. Eduardo Ribeiro construiu fontes, chafarizes, repuxos, estátuas, monumentos, jardins decorativos para a população de Manaus. Amazonino construiu piscinas, lago artificial, cascatas, jardins suspensos, quadra de esportes, pistas de cooper, píer, não nas escolas, nos centros desportivos, nos espaços públicos, mas dentro de sua própria casa, para seu usufruto.
A mansão do Tarumã é um documento que deixa o Amazonino nuzinho diante da opinião pública nacional, mas sobretudo mostra as mazelas e fragilidades da sociedade amazonense. Ela nos permite compreender tudo: o desemprego, as favelas, a exclusão social, a opressão, os conflitos de classe, a babaquice de nossas elites e sua alienação diante dos problemas sociais, a violência, as políticas públicas. Amazonino está escondido e segregado num bunker para não enxergar a miséria e a injustiça que nos últimos tempos ele ajudou a produzir. Quer se vingar do playboy filho do dono da padaria de Eirunepé e fere de morte o povo amazonense. A mansão do Tarumã merecia ser transformada em museu: museu da feiúra, da exploração e da ostentação.
P. S - 1 - Não conheço o procurador-chefe do Ministério Publico Federal no Amazonas, Sérgio Lauria, mas dedico essa crônica à sua integridade e à sua coragem.
P. S. - 2 - Agradecemos os e-mail carinhosos dos leitores.
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