CRÔNICAS

O fantasma da titia: garrafas e cuias de tacacá

Em: 03 de Dezembro de 2006 Visualizações: 10192
O fantasma da titia: garrafas e cuias de tacacá

Naquele domingo de setembro, fazia um calor infernal. A casa da rua 3, na Cohab-Am do Parque Dez, era um forno micro-ondas. A família inteira estava socada no quarto vendo televisão, em volta do único ventilador, cujo barulho dava a impressão de que ia levantar vôo. Serginho, sete anos, saiu um instantinho para ir beber água na cozinha. Voltou correndo, ofegante, com os olhos esbugalhados, gritando:

- A titia está conversando com as garrafas.

Todo mundo saiu correndo pra ver de perto. Efetivamente, lá estava a titia, com a porta da geladeira aberta, dialogando com cada uma delas. Naquele momento, segurava uma de vidro verde pelo gargalo, como se quisesse enforcá-la:

- Estou zangada! Muito zangada com você, sabia? Você fez tolices! To-li-ces! Quem mandou ficar aqui na frente, sua enxerida? Seu lugar é lá atrás. Você ainda não esfriou e tem que esperar sua vez. Troque de lugar com sua irmã. Anda!

Na medida em que falava, titia deslocava suas interlocutoras, como se fossem peças num tabuleiro de xadrez. Pegou com as duas mãos uma amarela, de plástico, pela cintura:

- Não se esconda não, sua gorduchinha. Eu já te vi. Vem pra cá pra frente, vem! Você já está no ponto, ge-la-di-nha!

Botar o quê, Belão?

A titia botou na cabeça que era a responsável pelo suprimento de água gelada para toda família. Tornou-se, por auto-nomeação, a titular da Secretaria de Recursos Hídricos. Passava o dia inteirinho enchendo com água do filtro as garrafas que eram esvaziadas. Depois, ia arrumando todas na geladeira, do seu jeito, numa certa ordem, fazendo um rodízio, colocando sempre as mais geladas na frente.

No início, todo mundo achou bom e se aproveitou. Aquele era, sem dúvida, um serviço de utilidade pública, sobretudo em período brabo de calor, numa casa cheia de crianças e adolescentes e que ainda por cima recebia muitas visitas. Mas depois a coisa tomou outro rumo, virou mania, obsessão mórbida. Titia armava um escândalo quando descobria garrafas fora do lugar. Era um foco permanente de conflitos.

Só é possível explicar o comportamento da titia, se entendemos por que é que ela ficou solteirona, no caritó. A culpa foi de dois vizinhos de infância, o Belarmino e - olha só que coincidência! - o Nelson Prodent. Os dois moleques queriam a mesma coisa. Nelson se declarava: “Raimunda, você é feia de cara, mas boa de perna”. E Belarmino, mais obsceno, vivia provocando: - “Raimundinha, deixa eu botar na tua bundinha?”. Ela, ingênua, respondia: - “Botar o quê, Belão?”.

Foi aí que vovó Marelisa compreendeu que tinha que interná-la no convento das Adoradoras do Preciosíssimo Sangue de Cristo, convencida de que sua filha era demasiado inocente pra viver em um mundo tão imoral e prevaricador. Titia vestiu o hábito e jurou os votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência. Viveu, enclausurada, 35 anos, protegida das maldades mundanas. No final da vida, já doente, alquebrada e moça velha, o convento a devolveu para a família, mas já era muito tarde para sair do caritó. Ela foi morar na casa da sobrinha Heloísa, casada com um santo, o Neném, e os seis filhos do casal.

Foi lá, leitor (a), que nós a encontramos, enchendo garrafas. Titia tentava colocar ordem num universo confuso, desordenado e caótico, antropomorfizando alguns objetos de uso doméstico, como as garrafas da geladeira, os únicos seres que a escutavam, lhe davam atenção e não a interrompiam quando falava. Um dia desapareceu de casa e os sobrinhos sairam em busca dela, foram encontrá-la no igarapé do Mindu com o ar completamente ausente.

A mão voadora

- “A titia tá ficando doida” – diagnosticou o Neném, quando descobriu que ela havia batizado cada garrafa com nome de gente. Tinha garrafas chamadas Graziela, Priscila, Bia, Zuleika, Janaína ou simplesmente Jana. Onde já se viu conversar com garrafas? O Neném decidiu, então, acabar com aquela marmotice de uma vez por todas. Jogou fora aquelas que tinham cores e tamanhos diferentes e comprou todas de plástico, iguaizinhas, para impedir sua identificação.

Ah, mas titia era danada. Sabem o que ela fez? Com o esmalte vermelho da Sandrinha, de pintar unhas, numerou cada garrafa de 1 a 11. Parecia até time de futebol. Deu nome para cada uma: Paula, Lu, Midori, Sandra, Carol, Mana, Ana Elisa, Daniela, Márcia, Zezé, Cynthia, Esther, Cláudia e assim por diante...Os sobrinhos, de pura sacanagem, apagaram os números. Titia, que não conseguia mais identificar quem era Renatinha e Natália, foi à loucura. Naquela noite, teve pesadelo. Deu um grito medonho que ecoou pela madrugada, acordando os vizinhos da rua 3:

- “Nãããão! Minha mão nãããããão!

O Neném deu um pulo da rede e correu pro quarto dela. No caminho, no corredor escuro, tropeçou no velocípede do Serginho e entrou gemendo, com a canela doída:

- Ai, ai, ai, o que foi, titia?

Titia interpretou o gemido do Neném como um gesto solidário:

- Você viu? Minha mão! Minha mão saiu voando pela janela como se fosse uma borboleta.

- Sua mão está aí, titia, colada no seu braço.

Acontece que titia havia dormido com a cabeça sobre o braço direito, que perdeu a sensibilidade e ficou formigando. Aí teve um pesadelo e sonhou que sua mão direita havia voado, batendo asas até o igarapé do Mindu, cantando como um passarinho: “Na mão direita tem uma roseira, abre a saia, mais faceira”.

No outro dia, a Heloísa, que havia estudado Psicologia com a professora Odaléa Frazão, no Instituto de Educação do Amazonas, arriscou uma interpretação do sonho. Sem marido, sem filhos, sem sequer ter tido um namorado com quem pudesse trocar um beijo, titia se considerava a mãe das garrafas. Impedida de falar com suas filhas, sentiu como se tivesse tido as mãos decepadas, que nem Fidelis Baniwa, o Joe Caripuna do Mad Maria.

Titia ainda chegou a abrir uma banca de tacacá na beira da estrada Manaus-Itacoatiara e lá as garrafas foram substituídas por cuias sempre alinhadas em ordem impecável. Logo depos, tiaia morreu de desgosto, deixando na orfandade garrafas, cuias e a sobrinhada que gostava dela apesar das sacanagens. Sua vida teria sido outra, se não tivesse sido molestada, em sua infância, por dois marmanjos ambiciosos, que só pensam em botar no dos outros. Descanse em paz, tia Raimunda!

Os moradores da rua 3 asseguram que a alma penada da titia continua vagando pela Cohab-Am do Parque Dez. Alguns chegaram a vê-la, vestida com sua batinha nordestina de florzinha, com as duas mãos nos quadris, como um açucareiro. Cuidado, que ela é capaz de vir puxar os pés dos dois assediadores. Te cuida, Belão! Te cuida, Prodent!

 

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1 Comentário(s)

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Russileli comentou:
21/03/2010
Preciso localizar uma cronica que fala de uma freira que morava no parque , somente que nao sei como localizar, tendo em vista não mais lembrar o titulo da cronica. Obrigada!
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