CRÔNICAS

Beco de Boston: Tio Sam, Desaguão e Dasaguinha

Em: 11 de Outubro de 2015 Visualizações: 24391
Beco de Boston: Tio Sam, Desaguão e Dasaguinha

"Toutes choses sont dites déjà; mais comme personne n’écoute, il faut toujours recommencer" (André Gide - Le Traité du Narcisse).

Ninguém o chamava pelo seu sonoro nome de batismo: Rodolfo Dias. Para todos os efeitos era o Dasaguão, apelido proveniente do Departamento Das Águas, onde labutava como encanador na Estação do Bombeamento, lá na Ponta do Ismael. Morava em Aparecida, bairro de Manaus no qual se vive um tempo mítico. Já disse, mas como ninguém me escuta, repito: tudo o que acontece e ainda vai acontecer no planeta já ocorreu nas quinze ruas ou nos treze becos do bairro, como o que agora te conto, que pode ajudar a entender a atual violência nos Estados Unidos.

O filho primogênito do encanador - o Dasaguinha - era menino problemático, encrenqueiro, brigava diariamente, vivia todo esfulepado, cheio de cicatrizes adquiridas nas guerras travadas nas trincheiras dos becos. Foi expulso em 1955 do Grupo Escolar Cônego Azevedo porque aos oito anos, com uma baladeira, atirou um arrebite quebrando a cabeça do Geraldo Pimbinha, que desmaiou, mas foi socorrido a tempo no SAMDU que ficava ali na Joaquim Nabuco. Dona Desidéria, sua mãe, magérrima e anoréxica, ficou horrorizada:

- Não sei de onde esse menino tirou tanta agressividade - disse a mãe em depoimento à Polícia, no velho Casarão da Mal. Deodoro. 

Description: http://www.taquiprati.com.br/images/Ponta%20ismael%281%29.jpg

Ela não sabia? Santa Desidéria! Não relacionou o comportamento do filho com o do pai, que dias antes, com uma chave inglesa, causara lesão grave no Fernando Gogó. Desaguão era devoto da cachacinha produzida no Beco da Bosta (o que motivou a mudança do nome daquela artéria - artéria é ótimo - para Beco da Indústria). Quando ficava de porre - e ficava um dia sim e o outro também -  virava uma fera. Deixava de ser o cidadão cordial e prestativo que consertava torneiras dos vizinhos. Cheio do chá, esquecia canos, tubos, redes hidráulicas e saía pra porrada com Deus e o mundo.

O xerife

Eis o que eu queria dizer. O Bairro de Aparecida é um retrato da sociedade americana, com uma diferença. Seus 6.996 moradores vivem em 2.222 casas, mas nenhum deles pode comprar armas legalmente, ao contrário da pacata cidadezinha de White Pine, no Tennessee, cujos 2.196 habitantes guardam armas nos 828 domicílios aonde residem. No sábado (3/10), a população diminuiu. Um menino de 11 anos matou a tiros a vizinha de 8 anos, McKayla Dyer porque ela não o deixou brincar com seu cachorro de estimação. Alienado e perplexo, o xerife W. McCoig declarou:

- O menino é normal, não tem qualquer problema mental. Espero que nunca mais ocorra esse tipo de violência.

Espera sentado, porque vai ocorrer. Está ocorrendo. Todos os dias. O menino é normal, a sociedade onde ele vive é que não é. O assassinato de uma criança por outra chocou o mundo, mas não é fato isolado. Recentemente foram vários massacres. Christopher, 26 anos, matou nove pessoas numa escola de Oregon. Dylann Roof, 21 anos, assassinou outras nove numa igreja na Carolina do Sul. Adam Lanza, 20 anos, invadiu uma escola primária em Sandy Hook, disparou mais de 100 tiros e matou 28 pessoas, entre as quais 20 crianças entre seis e sete anos de idade. Depois deu um tiro nos miolos.

Os números registrados no site do Mass Shooting Tracker são alucinantes. Nos últimos mil dias, nos Estados Unidos, foram 994 ataques como esses, que mataram 1.260 pessoas e feriram mais de três mil, numa assustadora banalização da morte. É tão rotineiro que a mídia já não dá qualquer destaque como os tiroteios em várias universidades nesta sexta-feira (9/10). Na Nothern Arizona  University, Steven Jones, 18 anos, matou um colega e feriu três; em Houston, o campus da Texas Southern University foi interditado, após tiroteio que deixou um morto e um ferido.  Tiroteios em Denver, no Colorado e em Gret Falls, Montana. Tudo isso nessa sexta.

- É uma situação muito triste que ninguém pode explicar - disse o xerife do Tennessee.

Pode sim, dona Desidéria! Basta relacionar o fato de Tennessee com outro ocorrido no próprio sábado (3/10), na mesma hora, na cidade de Kunduz, no Afeganistão, quando ataque aéreo americano bombardeou um hospital mantido pela ONG humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), matou 22 pessoas e feriu 37: médicos, enfermeiras e pacientes, entre os quais três crianças.

- A decisão do ataque aéreo foi nossa, da cadeia de comando americano, mas atingiu o hospital por um erro. Lamento profundamente a perda de vidas inocentes. Nunca atacaríamos intencionalmente uma instalação médica protegida - declarou o general John F. Campbell, comandante das tropas da OTAN no Afeganistão. Ele jura que vai fazer uma "investigação exaustiva, objetiva e transparente" e blá-blá-blá.

O fipilhopó

Traduzindo na língua do "p", o general é um fipilhopó da putapá. Premeditou o ataque. Achava que havia talibãs malocados no hospital e decidiu demoli-lo com bombas, "o que é um crime de guerra e exige investigação independente", declarou a médica Joanne Liu, presidente da MSF, que tem razões para suspeitar da versão do general.

A mídia impressa publicou as duas notícias separadamente como se não tivessem qualquer ligação entre si. Um leitor atento, ao relacioná-las, pode descobrir que uma explica a outra. O general Campbell, que pratica terrorismo de Estado, é um Desaguão? A Pátria dá mau exemplo ao Desaguinha do Tennessee? Parece que o cidadão comum acaba se espelhando na máquina de matar montada pelo complexo industrial-militar.

Description: http://www.taquiprati.com.br/images/white%20pine%20welcome%281%29.jpgO  presidente Obama confessou sua impotência diante da Associação Nacional de Rifles (NRA), que controla a bancada da bala no Congresso, tem quase 5 milhões de membros pagantes e impede qualquer regulamento de posse e uso de armas nos Estados Unidos. Se o Geraldo Pimbinha fosse Gerald Little Cock, em vez de um arrebite de baladeira, teria pegado um tiro nos cornos. Welcome to city of White Pine.

- Cada vez mais os que governam são idiotas, ladrões. A única coisa entre eles e a loucura somos nós. Por isso é tão importante ser jornalista - declarou a Folha de SP o repórter americano Seymour Hersh, de 78 anos, que veio ao Brasil participar de um evento - o Festival Piauí Globo News de Jornalismo no Colégio Dante Alighieri, em São Paulo, realizado sábado (10) e domingo (11). Foi ele que revelou em 1969 o massacre de My Lai, no Vietnã, uma cidadezinha demolida pelo Exército dos EUA, o que levou minha geração às ruas em passeatas de protesto.

As escolas do mundo inteiro deviam levar para sala de aula o testemunho desse jornalista, reforçado pelo pensamento do físico Albert Einstein, que não via qualquer diferença entrar matar na guerra e cometer um homicídio em tempos de paz, ambos igualmente abomináveis.

A guerra, qualquer guerra, representa a barbárie, a selvageria, a incapacidade de resolver os problemas através do "diálogo que é a mais criativa e civilizada invenção do ser humano, mais importante do que a bomba atômica", segundo Jorge Luis Borges.. Dasaguinha é filho de Dasaguão? Abra o olho dona Desideria! Fique esperto xerife W. McCoig!

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13 Comentário(s)

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Fernanda Garcia Camargo comentou:
21/10/2015
Ah, Bessa! Palavras de sabre, manobras no interior do coração. Que triste ter de ouvir isso com as crianças. Eta mundo!
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Ana comentou:
12/10/2015
Sem palavras. Difícil refletir essa questão tão inerente à humanidade. A guerra. A ira. Essa eterna necessidade do homem de matar. Deve ser uma questão fácil para quem pratica. Mas, impossível, muito difícil para quem a abomina. Como julgar um ato tão abominável pra uns e tão evidente, talvez necessário para outros. Tento me colocar no lugar deles, e... Fiquei tão triste quando um amigo que respeito muito me disse, há anos, que o homem só faz, só pratica, aquilo que gosta. Fiquei assustada e perguntei - Até matar? E ele disse: - sim, o homem só faz aquilo que gosta. De lá pra cá, fiquei mais 'madura' e passei a olhar o mundo com outros olhos. E quando alguém me diz que é contra as touradas da Espanha, a minha resposta é a seguinte: - Como um povo que lutou tão recentemente e foi capaz de matar tantos índios na América, vai conseguir liberar tanto sentimento de violência? Se existe o fator hereditário, a genética com certeza registra as guerras dos antepassados nas mentes futuras. E aí, digo,como não liberar ao menos num touro, tanta violência??? Por que tantos adeptos ao Hitler???? É muito difícil compreender o que passa nessas mentes assassinas. Eles, talvez, nem imaginem a indignação que nos causam!!!!
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Ana comentou:
12/10/2015
Sem palavras. Difícil refletir essa questão tão inerente à humanidade. A guerra. A ira. Essa eterna necessidade do homem de matar. Deve ser uma questão fácil para quem pratica. Mas, impossível, muito difícil para quem a abomina. Como julgar um ato tão abominável pra uns e tão evidente, talvez necessário para outros. Tento me colocar no lugar deles, e... Fiquei tão triste quando um amigo que respeito muito me disse, há anos, que o homem só faz, só pratica, aquilo que gosta. Fiquei assustada e perguntei - Até matar? E ele disse: - sim, o homem só faz aquilo que gosta. De lá pra cá, fiquei mais 'madura' e passei a olhar o mundo com outros olhos. E quando alguém me diz que é contra as touradas da Espanha, a minha resposta é a seguinte: - Como um povo que lutou tão recentemente e foi capaz de matar tantos índios na América, vai conseguir liberar tanto sentimento de violência? Se existe o fator hereditário, a genética com certeza registra as guerras dos antepassados nas mentes futuras. E aí, digo,como não liberar ao menos num touro, tanta violência??? Por que tantos adeptos ao Hitler???? É muito difícil compreender o que passa nessas mentes assassinas. Eles, talvez, nem imaginem a indignação que nos causam!!!!
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Ana Stanislaw comentou:
11/10/2015
É, Bessa!!! Não devemos perder as esperanças, mas fica difícil acreditar neste mundo tão violento. Chacinas, assaltos, ações de milicianos.... tantas coisas acontecendo!!! Aqui no Brasil, as propostas de alterações no Estatuto do Desarmamento representam retrocessos e pouco, ou quase nada, está sendo discutido. Inclusive, cogita-se ampliar o número de pessoas com portes de armas. Em tempos de petrolão e escândalos de corrupções pipocando por todos os lados, precisamos também ficar de olho na Câmara dos deputados, no Senado e tentar, pelo menos, pressionar os nossos representantes; exigir deles mais responsabilidade na aprovação e mudanças de certas leis. Afinal, o lobby das industrias de armas é muito forte. Obrigada por mais essa crônica maravilhosa, que nos permite diversas reflexões sobre variados aspectos da nossa sociedade, do mundo.
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Marina Herrero (via FB) comentou:
11/10/2015
NÃO VAI DORMIR SEM LER ESTA CRÔNICA DO José Bessa
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Silvestre Silveira (via FB) comentou:
11/10/2015
Sobre a crônica de hoje , digo que só reforça o que eu sempre imaginei : Os EUA nunca foram exemplo nenhum de nação e a segunda cosa é que só as futuras gerações só irão reproduzir aquilo que seus ancestrais ( governos e o modelo de sociedade ) estão deixando como exemplo
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Marina Herrero (via FB) comentou:
11/10/2015
Resposta difícil, hein? Talvez uma boa resposta seja: temos que rever o rumo da humanidade
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Silvestre Silveira (via FB) comentou:
11/10/2015
Foi a primeira coisa que fiz hoje bem cedinho , a crônica Taqui pra ti no café da manhã. Meu filho de 12 anos ,vem me minha direção e diz : --- Pai qual o assunto de hoje?
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André comentou:
10/10/2015
La violence est enracinée en tout homme; c'est peut-être parce que, d'une part, nous sommes constitués de tissu et d'organes vivants qui travaillent en réseau, et que, d'autre part, nous vivons dans des réseaux trophiques (c'est à dire des ensembles de chaînes alimentaires reliées entre elles au sein d'un écosystème et par lesquelles l'énergie et la biomasse circulent souvent sur le mode prédateur/proie. Le micro et le macro sont en relation d'auto-similitude comme les objets fractals découverts par Mandelbrot. On ne nait pas non-violent, on peut le devenir.Tout individu, toute organisation (classe), tout état nait violent (c'est la loi des réseaux trophiques) et animé par une seule loi, la proscription "tu ne dois pas disparaître, tu ne dois pas mourir". La non-violence est l'invention qui a fait sortir l'humanité de la barbarie pour entrer dans la non-violence en inventant la prescription "tu ne tueras pas" ou ses variantes "aimez vous les uns les autres". La non-violence s'apprend et s'enseigne. Comme des techniques pour empêcher l'individu ou les organisations de passer à l'acte et de commettre l'irréparable. On y parvient en développant chez l'individu sa capacité d'empathie, et en développant dans les organisations la force de l'éthique sociale
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Cyrino comentou:
10/10/2015
Pois é, Babá, esses americanos ainda vão pagar com muitas vidas até rever suas políticas entupidas em vários campos, em especial no "direito" a se armar, embora a discussão sobre esse assunto já esteja posta por aqui e já se vislumbra possíveis saídas, ainda que a longo prazo. Há estados que possuem um rigor bem maior sobre aquisição e uso de armas, mas outros bem mais permissivos, como aqui no Texas. Eu tenho os meus receios porque como sabes tenho duas filhas que vivem aqui, uma inclusive americana e três netas é um neto. Acompanho o cuidado das milhas filhas com a educação das netas e sei que ê muito grande. Mas sinceramente, do ponto de vista da segurança pessoal e da probabilidade de insegurança acho (e espero) que aqui elas estão muito mais seguras do que no nosso querido Brasil, onde as estatísticas de homicídios são talvez de guerras. É porque teu artigo tem como escopo denunciar esse tipo de violência do Tio Sam é contrário senso poupou nossa violençia ai, e ainda foi pouco, mas quando venho visitar minhas crias ando sem medo por aqui. Qualquer comparação é um equívoco de análises e como não comento para analisar, partilho apenas um sentimento contraditório de medo e segurança simultaneamente. Elas dizem que se sentem seguras, para mim eu o que importa. Gostaria de ver um artigo teu sobre a nossa violência, pois poder certo ajudaria a gente olhar mais pra gente. Bjs
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Taquiprati comentou:
22/02/2018
Rapaz, tenho mais de 30 cronicas sobre a violência no Brasil. Remeto a uma delas que acabou sendo a mais lida: http://www.taquiprati.com.br/cronica/911-alo-alo-realengo
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Sandra Figueira comentou:
10/10/2015
Olá Bessa, achei que traçou excelente teia entre os homicídios nos EUA com a permissividade de qualquer cidadão poder adquirir armas é a indústria bélica que é a mais rica daquele país alimentando guerras e confrontos armadas em milhares de pontos do planeta, de forma oficial e através do tráfico de armas que está em primeiro lugar entre os tráficos ilícitos, seguido do tráfico de entorpecentes, de pedras preciosas e de pessoas. Faço torcida para que a forte "bancada da bala" em nosso pais jamais consiga ser vitoriosa sobre essa questão, para não passarmos também a contabilizar friamente esse tipo de crime.
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Hans Alfred Trein comentou:
10/10/2015
Caro Bessa, muito instrutiva a relação que você faz entre o global e o local. Alguns têm expressado isso: o pensamento e a análise dos fatos sempre deve ser 'glocal'. Muito oportuna a lembrança de que a violência macro é causa das violências micro, o que não desculpa as violências micro, mas as coloca dentro de um contexto mais complexo. E é esse contexto que deve ser alterado e não apenas a pontinha do iceberg punida. Gosto muito de suas crônicas. Leio todas, embora nem sempre comente. Obrigado! Abraço, Hans
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