(Diário do Amazonas, 12 de maio) Foram vidas bastante diferentes e até opostas, uma de origem basca, a outra galega, mas com um ponto em comum: o sangue ibérico e a paixão de viver, de lutar, de resistir. Por isso, a militante antifascista Dolores Ibárruri (1895-1989) falecida em Madri aos 96 anos, ficou conhecida durante a Guerra Civil Espanhola como “La Pasionaria”, pseudônimo que usou em artigo para o jornal operário El minero vizcaíno. Vania Novoa Tadros, igualmente hiperbólica em seus afetos e convicções, morreu na tarde do sábado (9), aos 69 anos, mas “não foi vítima da Covid-19” – informou seu genro Jorge Pinho, procurador-geral do Estado. Ela enfrentava problemas respiratórios crônicos.
Convivemos nos anos 1980 em sala de aula, no Curso de Graduação em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) do qual eu era professor. Vânia era a última da lista de chamada organizada em ordem alfabética, mas uma das primeiras no domínio da disciplina História do Amazonas. Trazia de casa curiosidade e interesse pelo tema, alimentado – ela dizia - pelo empresário José Roberto Tadros, seu esposo, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Depois de formada, já como professora concursada da UFAM, se especializou em Demografia Amazônica, num curso no qual ministrei um módulo.
Lembro de haver dado uma aula apoiado em dois autores, ambos da escola demográfica de Berkeley, Califórnia, que não haviam sido traduzidos ao português: William Denevan, que inovou os métodos de cálculo da população indígena da Amazônia no séc. XVI e Woodrow Borah, que discute o impacto demográfico da invasão europeia no continente americano. Eu tinha cópias xerox feitas no Musée de L’Homme, em Paris, já gastas e ilegíveis. Vânia mandou buscar os livros nos Estados Unidos e dividiu os textos com os colegas, com quem, generosa, compartilhava sempre a biblioteca familiar.
História da Imprensa
Com os alunos ainda na graduação, formamos um grupo de pesquisa que incursionou por vários campos da História do Amazonas. Um deles foi resultado da continuidade que demos ao fichamento feito anteriormente na hemeroteca do IGHA por alunos de Comunicação Social. Durante as férias de janeiro e fevereiro, na casa de dona Tereza, mãe da Vânia, e com apoio dos arquivos de Geraldo de Macedo Pinheiro, cinco alunos de história reorganizaram as fichas, o que nos permitiu publicar, em 1987, pela Editora Ana Cássia, do Batará, o livro “Cem anos de Imprensa do Amazonas (1851-1951)”, com posterior reedição feita pelo saudoso Umberto Calderaro.
Eu havia encontrado no Instituto de História Social (IISG) de Amsterdam, um exemplar do jornal A Lucta Social, “orgam operário livre”, criado em Manaus pelo gráfico Tércio Miranda no final do chamado ciclo da borracha. Por isso, fui convidado pelo diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, Élson de Melo, para ir lá falar sobre a história da imprensa operária. Propus a Vânia Tadros e a Geraldo Sá Peixoto participarmos de uma mesa. Ambos aceitaram.
Casada com um empresário que presidia a Fecomércio-Am e dirigia órgãos da classe patronal, Vânia, sempre presente nas colunas sociais, foi bem recebida pelos metalúrgicos, para quem falou sobre a primeira comemoração do 1º de maio pelos trabalhadores do Amazonas, ocorrida em 1914, na praça São Sebastião. Discorreu ainda sobre os jornais, que depois mereceram uma edição fac-similada organizada por Luiza Ugarte e Luis Balkar. Vânia deu seu recado com muita competência.
Amazônia colonial
Outro campo de pesquisa resultou no livro “A Amazônia Colonial (1616-1798), organizado por mim, no qual Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, que dirigiu o Museu Amazônico, teve papel primordial. Vânia aparece como uma das coautoras. Ela fez o meio de campo na transferência do acervo documental da empresa J.G. de Araújo para o mesmo Museu, do qual foi diretora da Divisão de Pesquisa e Documentação Histórica.
Leitora assídua da coluna Taquiprati, quando não concordava com o que eu escrevia, mandava comentários desaforados, em caixa alta, que eram publicados. Todos. As divergências aumentaram durante o impeachment de Dilma, que na minha visão era um golpe comandado por Eduardo Cunha, depois preso por corrupção. No entanto, quando ela concordava, sabia fazer elogios rasgados, como na carta enviada quando fui ameaçado por um cidadão local que se dizia proprietário de uma rua. (ver http://taquiprati.com.br/cronica/66-cartas-de-manaus-e-paris-v)
Essa era Vânia, una pasionária, que agora nos deixou. Ex-aluna, colega, amiga dos amigos, implacável com os adversários, mas sempre honesta, dizendo sem rodeios o que pensava. Colocou paixão em tudo o que fez. Foi embora, mas permanece sua contribuição para a História do Amazonas num trabalho de equipe com a qual sempre soube interagir. “Vai ser difícil viver com a ausência dela” – escreveu o filho David Tadros, expressando o sentimento familiar e dos amigos. O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, decretou luto oficial de três dias por conta do número de mortes registradas pela Covid-19 e em meio às condolências feitas na sessão da Câmara Municipal de Manaus, foi citada e homenageada a professora Vânia Tadros.
Ao esposo, filhos e netos, fica aqui a nossa solidariedade nesse momento de dor e de perda pela sua partida para a Yvy Marae’y – a Terra sem Mal dos Guarani, onde nos reencontraremos, quando então eu poderei insistir:
- Foi golpe sim. Bem que eu te falei!
Suspeito que a resposta da minha querida amiga, que apreciava o contraditório, será aquela risada com a qual será sempre lembrada.