"Não, senhor, não sou homem de potoca. Nesta minha velha
e cansada vida, se menti alguma vez foi só pra pescar mulher".
(Erasmo Linhares- 1934-1999)
Corria o ano de 1979. (Peralá! Era setenta e nove ou oitenta? Já faz tanto tempo! Acho que era sete nove). Numa sala do velho ICHL, professores do curso de Jornalismo da Universidade do Amazonas discutiam, em reunião formal, o planejamento do próximo ano. Solene e paternal, o então chefe do Departamento, Aguinelo Balbi, colocou a mão no meu ombro:
- Está decidido. Você, que morou em Paris, vai me fazer o relatório final.
Entregou-me uma pasta cheia de papéis. Depois, com gesto de serrote que degola pescoço, passou a mão em vai-e-vem pelo gogó, acrescentando:
- Corta tudo o que for supérfluo. Ordens do diretor.
PAPEL HIGIÊNICO
Era um trabalho de bosta que te afastava da produção acadêmica. Abri a pasta. Continha listas de equipamentos e material de consumo, reivindicados pelos colegas professores, para serem comprados pela UA. Minha tarefa era decepar da lista tudo aquilo que fosse dispensável. Este poder mágico - quem diria! - apoiava sua indiscutível legitimidade em alguns anos de vagabundagem no Quartier Latin. Morar em Paris equivalia a uma residência médica, conferindo-me a competência de um cirurgião para operar e cortar.
Entrei em ação, decifrei a linguagem da burocracia e traduzi o seu código esotérico. Aprendi que os bens fungíveis eram diferentes dos infungíveis. Um papel, por exemplo, é fungível porque se gasta com o primeiro uso. Um grampeador, ao contrário, dura mais tempo. É infungível. Afiei o meu cerol e comecei a cortar tudo o que era fungível. De saída, decapitei 500 rolos de papel higiênico solicitados pelo professor Walmirzinho que era um bom professor, mas não precisa exagerar com tantas cagadas.
Havia um projeto sério para criar a Rádio Universitária, com uma potência diurna de 1.000 watts e noturna de 0,25 watts, de autoria de Erasmo Linhares, professor concursado da UA e um dos esteios da Rádio Rio-Mar. Uma lista em anexo enumerava os equipamentos necessários ao seu funcionamento.
(Ih, falando em rádio, me lembrei do ano. Com certeza, era 1980. Não foi em julho de 1980 que o Papa visitou Manaus? Foi. Lembro muito bem, porque enquanto rolava nossa reunião, o radinho de pilha da Labibe, a secretária, não parava de tocar, na sala ao lado, "Abenção, João de Deus!").
Voltando à vaca fria: onde é mesmo que nós estávamos? Ah, na lista do Erasmo. Os nomes que continha eram todos estranhos para mim. Entendo tanto de rádio quanto o Ronaldo Tiradentes de química inorgânica (ou orgânica, tanto faz, ele não entende mesmo de porra nenhuma). Esta ignorância me impedia de saber o que era supérfluo na lista.
Tapete é luxo?
Cortar papel higiênico é fácil. A gente corta diariamente. Difícil é decidir se um transmissor modelo BTA e uma banca de mixagem - dois bichos que você não conhece - são essenciais para montar um laboratório de rádio. Depois de percorrer a longa lista, com nomes estrangeiros de equipamentos americanos, dei sorte e encontrei algo que me soava familiar e ainda por cima era indiscutivelmente supérfluo: alguns metros quadrados de tapete.
- Te peguei, Erasmo! O país enfrentando dificuldades, exigindo sacrifícios de todos, e você me vem exigir que a Universidade compre tapetes para amaciar seus pés. Isso é supérfluo. Está cortado. Ordens do Diretor.
Erasmo, que escreveu um dos mais belos contos da literatura amazonense - O Tocador de Charamela - é pessoa agradável e tranquila. Explicou-me em particular:
- O tapete é essencial. Sem ele, as pessoas que andarem dentro do estúdio de rádio, vão interferir na gravação, comprometendo a qualidade do som.
Aí, para provar o que dizia, esfregou várias vezes o sapato no chão de cimento, provocando atrito e ruídos.
Foi o ovo de Colombo, a maçã caindo na cabeça de Newton. O tapete ficou na lista. Levamos, então, o relatório final para o chefe do Departamento, Aguinelo Balbi, que manja prá cacete de leis, mas - data venia - não entende chongas de rádio. Se da lista de equipamentos constasse uma charamela, Aguinelo não desconfiaria de nada. Os seus olhos percorreram o relatório e - ops! - brilharem de emoção diante de um dos itens.
- Pelo amor de Deus! Isso é um escândalo. Tapete é luxo. Corta isso.
Erasmo, generoso, ficou calado e deixou que eu faturasse. Com o maior despudor, como se estivesse descobrindo a pólvora, fiz uma cara de sabichão que morou em Paris e pontifiquei:
- Não é luxo não. É necessidade. O tapete é para evitar ruídos, entropia.
Aí, veio o fecho de ouro. Acrescentei:
- Olha só!".
Esfreguei minha sandália no chão. O efeito foi espetacularmente convincente.
A romaria
Com o som de uma charamela ao fundo, iniciou-se então uma romaria, que ninguém sabia até onde poderia chegar. Primeiramente, Aguinelo, Erasmo e eu levamos o relatório em mãos ao diretor do ICHL, Felismino Soares Filho, especialista respeitado em administração, mas em rádio, necas de pitibiribas. Ele examinava a lista. Se lá estivesse escrito que era preciso comprar quatro megahertz de válvulas radiolétricas, ele toparia. Parou, igualmente, no único item compreensível.
- Isso não! Corta. Nem aqui, na sala da direção, tem tapete. Imagina!
Confesso que ainda tentei me exibir, mas Aguinelo pulou na frente. Com um sorriso de especialista em teoria da comunicação, disparou:
- Não me diga uma besteira dessa, diretor.
Esfregou seu sapato no chão: froc, froc, produzindo ruídos e entropias. Explicou tim-tim por tim-tim. Deu aula de feed-back. Os olhos de Felismino se iluminaram:
- Puxa! Não havia pensado nisso. Se é assim, então deixa o tapete.
O sub-reitor de graduação, na época, era o engenheiro Raimundinho Lopes. Mandou servir cafézinho para Aguinelo Balbi, o pai, Felismino Soares, o filho e para mim, o espírito-de-porco. Demorou um pouco para ver a lista, apesar do relatório estar aberto justamente na página do tapete. A reação foi sóbria, mas inflexível como a dos outros:
- A Pátria exige sacrifícios de todos os seus filhos. Tapete é luxo. Corta.
Hierarquicamente, cabia a Felismino esfregar o seu sapato no chão, fazer o froc-froc, falar de entropia e ruído, dizer "nós, que entendemos de teoria da comunicação etc e tal". Lopes ficou encantado:
- Sim senhor, disse. Vivendo e aprendendo.
Saímos todos, em passeata, para a sala do reitor Octávio (com "c") Mourão, toda atapeta, parecia até a sala do trono do Palácio do Rei da Pérsia
O reitor recebeu o relatório. Disse que estava sem tempo, depois o examinaria. Lopes insistiu para que desse pelo menos uma olhada perfunctória. Orientou a leitura do reitor, chamando a atenção dele para o projeto da Rádio Universitária. Mourão, quando bateu o olho, ficou lívido, virou o Mourão branco:
- O quêêê! As ordens do ministro são claras. Precisamos reduzir drasticamente os gastos. Não tem verba para o supérfluo. Tapete é luxo.
É claro que a vez de se exibir era do Raimundinho Lopes. Ele se exibiu. Até aí, eu vi. O que não vi, mas posso imaginar, é o reitor chegando ao Ministério da Educação, acompanhando do seu chefe de gabinete, Ivo Choskotta, assim apelidado por causa do Tomaso Buschetta. Como o MEC é todo atapetado, Choskotta leva um punhado de areia numa caixinha. Na hora do froc-froc com o sapato, ele atira um punhado de areia sob o cromo alemão do reitor. Será que Eduardo Portela, ministro da Educação, fez o froc-froc para o general Figueiredo. E o Figueiredo, diante do FMI?