“I think that I shall never see / a poem lovely as a tree /Poems are made by fools like me / but only God can make a tree. (Joyce Kilmer, 1914)
Na rua das Laranjeiras, no Rio, não há laranjeiras. Talvez até existissem no séc. XVII nas chácaras às margens do rio Carioca. Mas o nome veio mesmo da Quinta das Laranjeiras, um bairro de Lisboa também cercado por morros e árvores. Dois séculos depois, em 1880, a Companhia de Tecidos Aliança se instalou na rua General Glicério e, em nome do “progresso”, desmatou a área sem dó nem piedade. A fábrica faliu em 1938 e as vilas operárias deram lugar a edifícios. Hoje, os passarinhos saltitam sobre os fios elétricos e as árvores que, coitadinhas, resistem espremidas entre blocos de concreto e carros.
Três delas foram plantadas há alguns anos por um morador do bairro, o taxista Benedito Ribeiro Chagas, 61 anos, que trouxe de Campanha (MG), onde nasceu, um amor acentuado por roça, mato, pássaros, rios e cachoeiras. Um dia, numa corrida ao Corcovado, ele viu na Estrada das Paineiras pequenos flocos de “algodão” que bailavam ao vento num voo gracioso. Era as painas, que haviam se soltado da casca e aterrissavam, formando um tapete branco no chão. Pisando em nuvens, Bené recolheu as sementinhas de novas paineiras. Cuidou delas como a mãe cuida dos filhos.
Agradecidas pelo trato amoroso, elas germinaram. O taxista Bené escolheu, então, um lugar apropriado na rua General Glicério, para que suas raízes invasivas não agredissem os edifícios. Plantou. Duas floresceram rapidamente como seus dois filhos, Rodrigo e Mariana. Hoje, majestosas e imponentes, com espinhos no tronco para defendê-las de insetos, seus galhos hospedam ninhos de passarinhos. Talvez as árvores olhassem Bené como se ele fosse o nanatü delas.
O pai das paineiras
Nanatü é como os Ticuna do Alto Solimões (AM) chamam os seres que há milhares de anos cuidam e protegem tudo que existe na natureza. Significa “pai” ou “mãe” das árvores, dos animais, dos peixes, das águas – segundo “O livro das árvores” elaborado no Curso de Formação de Professores Ticuna. Esse livro paradidático, publicado em 1997, passou a ser usado nas aulas de educação ambiental em mais de 100 escolas bilíngues das aldeias onde estudam cerca de 10 mil alunos indígenas de seis municípios.
Na apresentação, a artista plástica Jussara Gomes Gruber explica que o livro é fruto do projeto “A natureza segundo os Ticuna” iniciado em 1987, cujo objetivo era coletar dados e elaborar desenhos sobre a flora e a fauna regionais:
- “O livro acolhe o olhar dos Ticuna sobre a natureza que os cerca e lhes serve de morada, trazendo textos e imagens que fixam suas concepções do real e do imaginário, em linguagem onde se cruzam conhecimentos práticos, valores simbólicos e inspiração poética. Não se trata de um livro de botânica, mas de uma memória das árvores, que permitem os Ticuna recordar a importância de cada uma delas na sua vida”.
Uma dessas árvores, a maior da Amazônia, é a samaumeira. No início do mundo, quando ela caiu, o seu tronco formou o rio Solimões e de seus galhos surgiram os afluentes: rios e igarapés. Acontece que essa “árvore sagrada”, que pertence à mesma família da paineira, tem pai: o Curupira, que mora em suas raízes conhecidas como sapopemas. Ele cuida dela “assim como nós cuidamos de nossos filhos e de nossas roças”. E a paineira? Se árvores no meio urbano reagem como as da floresta, o pai das paineiras é o Bené, que entre uma corrida e outra, acompanhou com desvelo e carinho o crescimento daquelas que plantou. E é aqui, no real e no imaginário, que entram Bené e Nanatü,
Taxímetro parado
Não sei se Bené conversou sobre as paineiras com os passageiros de táxi que fidelizou, moradores do bairro, jornalistas, antropólogos e linguistas do Museu Nacional com quem estabeleceu relações de amizade, entre eles Moacir Palmeira, Bruna Franchetto, Marcelo Villas Boas. Estava sempre pronto a atendê-los, de madrugada, em dias feriados, trabalhava incansavelmente sem nunca tirar folga. Isso permitiu-lhe manter, só no volante, os estudos dos filhos: Rodrigo que concluiu o mestrado em Memória Social na Unirio e Mariana que cursa Informática na Uerj.
De tudo, entendia um pouco e às vezes muito. Entrou pela primeira vez na Uerj na semana passada em companhia do filho para consertar gratuitamente o computador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas, que deixou funcionando.
Há dias, Rodrigo ministrava aula comigo à noite no Curso de Pedagogia da Unirio, no momento em que recebeu telefonema de dona Glória, sua mãe. Bené acabara de sofrer uma parada cardíaca. Morte súbita. Em casa, para não atrapalhar o tráfego. Foi sua última corrida. Sem volta. O taxímetro não marcou os quilômetros rodados nessa derradeira viagem. Na quarta (29), ele foi velado e cremado no Cemitério do Caju. A família decidiu colocar suas cinzas nas raízes das paineiras, que será sua eterna morada, da mesma forma que a sapopemba abriga o protetor da samaumeira.
Dona Glória, Rodrigo, Mariana, as duas paineiras e uma palmeira que ele cuidava ficaram sem o protetor, assim como o gato Alex, de 15 anos, com problemas renais e depressão felina, que choraminga sem entender porque Bené não aparece mais.
Ele aparece aqui nesta coluna, que estava programada para se ocupar das manifestações de quinta-feira (30) em defesa da educação, papel que em qualquer estado democrático caberia ao próprio ministro: lutar por recursos para a pasta em vez de se vangloriar dos cortes e delirar dizendo que os manifestantes foram coagidos por seus professores. Só admito que a coação é possível se Abraham Weintraub, o apedeuta, conseguir coagir um só dos meus alunos a não se manifestar em defesa da universidade. Aliás, nunca um ministro - nem mesmo o coronel Jarbas Passarinho na época da ditadura - contribuiu tanto para mobilizar estudantes como o paspalhão do Weintraub.
Vou “coagir” o Curupira a marchar na próxima manifestação com faixa contra a extinção da Estação Ecológica de Tamoios, cujas ilhas e rochedos servem de santuário e refúgio às espécies ameaçadas. Bolsonaro, multado pelo IBAMA por pescar ilegalmente na área, quer transformar a Baía de Angra em uma Cancun, onde não se pode mais sequer viver entre pássaros e árvores. Age como a besta-fera, entidade mítica do imaginário português, que atacava os bosques e aqui no Brasil desafiava o Curupira, expulsando-o, às vezes, da mata. O Curupira, defensor da floresta, não vai deixar o Bolsonaro dormir em paz. Numa adaptação da narrativa ticuna, o Curupira proclama:
- Se um dia eu faltar, fica outro no meu lugar, guardando o que resta do nosso patrimônio milenar.
Foi o que fez Bené que, finalmente, pôde cantar com o poeta peruano Javier Heraud:
“Sucede simplemente que no tengo miedo de morir entre pájaros y árboles”.