.Cultura não tem preço – afirmou com convicção inabalável o nosso querido carnavalesco Joãozinho Trinta, em entrevista ao Jornal do Brasil na porta do Teatro Amazonas. A frase, dita para justificar os gastos com a apresentação do tenor catalão Josep Carreras, pode servir de argumento contrário, voltando-se contra o seu autor como um bumerangue. Basta fazer um exercício de lógica elementar: ora, se cultura não tem preço e se Carreras é cultura, como é que o Governo do Amazonas estabeleceu um preço de aproximadamente R$ 1.000.000,00 (hum milhão de reais) para uma única apresentação? Tivesse razão Joãozinho Trinta, Carreras devia cantar de graça. Ou não?
Na realidade, cultura tem preço sim e muito alto. Que o digam os gicheiros que financiam a Escola de Samba Viradouro ou os que entraram no Teatro Amazonas comprando ingresso, o que parece não ter sido o caso do Joãozinho Trinta. No entanto, a sua frase pode ter outra leitura, mais benévola. Talvez o carnavalesco queria dizer é que o Governo e a sociedade não devem “economizar” recursos para as atividades culturais, pagando o que for preciso para incentivá-las.
Correto. Em geral, os Governos – tanto o federal como o estadual – consideram a cultura como adorno, como algo supérfluo, não prioritário. Basta olhar o inexpressivo orçamento do respectivo ministério e das correspondentes secretaria estaduais.
Existe uma tendência oficial para achar que o pão é vital, mas que a poesia é supérflua, quando na realidade o ser humano necessita da arte, sem a qual não sobrevive. Nem só de pão vive o homem. Nem só de poesia também. Vive dos dois.
Quando questionamos o cachê exorbitante de Carreras, pago pelo Governo Amazonino Mendes, não estamos nos pronunciando contra os investimentos na área cultural, mas discutindo os critérios e as prioridades nos gastos. Um milhão de reais para Carreira se apresenta em uma noite e nenhum centavo durante todo o ano à produção cultural local equivale a considerar o tenor como se ele fosse “a cultura”, desprezando todo o resto, inclusive as manifestações populares e eruditas da própria Amazônia.
Isso ficou evidente quando o governador Amazonino debochou do “Carrapeta”, manifestando uma espécie de vergonha em assumir a sua identidade coletiva amazônica.
Se os empresários do CIEAM e os funcionários comissionados contratados pelo governador são tão apaixonados assim pela música lírica e pela ópera e se reconhecem o seu valor a ponto de gastarem a fortuna de um milhão de reais em uma só noite, por que então não estimularam a produção local? Cláudio Santoro, um dos maiores músicos brasileiros, foi obrigado a sair do Amazonas para poder continuar cultivando sua arte. Nem sequer o Coral João Gomes Júnior, dirigido pelo competente maestro Nivaldo Santiago, mereceu um olhar condescendente da elite manauara.
Não podemos esquecer que a escola é cultura, salário de professor é cultura, esgoto, água encanada, salário de médico e lazer refletem a cultura de um povo. O argumento de Joãozinho Trinta de que a cultura não tem preço só teria sentido se tais necessidades básicas estivessem satisfeitas e se houvesse um empenho correspondente para estimular a arte, a cultura e a ciência que muitos criadores anônimos teimam em promover, por conta própria, no Amazonas.
Suspeitamos que o espetáculo de qualidade de José Carreras não foi concebido para estimular as manifestações artísticas e culturais do Amazonas, mas simplesmente para incensar a vaidade provinciana, alimentar interesses politiqueiros e passar uma mão de verniz sobre certa elite manauara, que desta forma pode “brilhar” com um falso ar cosmopolita, tentando assim negar a sua caboclitude. Considerando as manifestações de protesto em frente ao Teatro, parece que o tiro saiu pela culatra. Ainda bem! Louvado seja Deus!
P.S. - Ver também carta a Pepe Carreras: http://taquiprati.com.br/cronica/430-carta-a-pepe-carreras-o-cache-do-teatro-amazonas