CRÔNICAS

Dia do Índio: sonhando com a terra que perdi

Em: 22 de Abril de 2018 Visualizações: 13713
Dia do Índio: sonhando com a terra que perdi

“Anhangá me fez sonhar com a terra que perdi”

(Heitor Villa-Lobos, O canto do pajé)

- É importante que a fala de vocês seja ouvida na cidade – diz Vincent Carelli a um líder Kaiowá enquanto dirige Martírio, premiado como o melhor filme pelo júri popular do Festival de Brasília. Ele entrevistou muitos índios em aldeias e na beira de estradas em Mato Grosso do Sul, cujas falas ecoaram, nesta quinta (19), em várias cidades nas quais o filme foi projetado. No Rio de Janeiro, somaram-se a elas vozes presenciais de outros índios, cantos do Coral Infantil Guarani da aldeia Itaxi de Paraty, rezas de Carlos Tukano, filho e neto de pajés, além de reflexões de Ará Reté (Sandra Benites).

Foi no Dia do Índio, na Capela Ecumênica da Uerj. O evento “Sementes de Cura e Ritual de Proteção aos Povos Indígenas”, promoveu encontro de culturas, religiões, gerações. O Coral da Universidade da Terceira Idade (UNATI) interagiu com as crianças guarani e entoou “O canto do pajé”, saudando Tupã, Deus do Brasil, e Anhangá, que alimentou o sonho da volta à terra indígena, coberta por manto protetor por todos os lados: o budista Emilio Mira y Lopez, o sacerdote de Candomblé Márcio de Jagun e o diácono Marcos Gayoso da Pastoral Católica da UERJ reforçaram as vozes indígenas em defesa da terra, da língua, da cultura.

Martírio e Resistência

- O filme, que registra o processo dilacerante do genocídio, documenta a resistência nas vozes de mulheres combativas e na mobilização política dos índios, mostrando a história recente, quando eles foram retirados muitas vezes de suas terras, mas voltaram sempre e nunca desistiram de retomá-las – destacou o antropólogo Rubem Almeida, que conviveu mais de 30 anos com os Kaiowá-Guarani e assegura que eles sabem distinguir os inimigos e os aliados. “O que tá pegando a gente é o capitalismo” – confirma um líder Kaiowá entrevistado no filme por Vincent.

A mesa que discutiu Martírio, aberta por Rubem Almeida, contou com dois pesquisadores do Museu do Índio. Materiais de arquivo manuscritos e de imagens usados no filme, com o registro da expropriação das terras Kaiowá desde a Guerra do Paraguai, passando por Rondon e Getúlio Vargas até hoje, foram ressaltados por Carlos Freire, enquanto massacres e torturas de índios inventariados no Relatório Figueiredo localizado no arquivo do Museu do Índio, em 2013, por Marcelo Zelic do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM), foram abordados por Elena Guimarães.

O papel da mídia foi retomado pela mesa “A representação Indígena e Negra na Educação no município do Rio de Janeiro, dez anos depois da promulgação da Lei 11.645”, mostrando o lugar da dobradinha escola e mídia no atropelamento dos direitos indígenas por fazendeiros, pecuaristas e agronegócio em aliança com poder político. Jaime Pacheco, da Secretaria de Educação, trouxe para o debate trechos do editorial de 1929 do Estadão, onde Júlio de Mesquita Filho, qual bandeirante dos tempos modernos, pontifica:

“Não é desejável a contribuição dos pretos americanos para o caldeamento de raças no Brasil. Um contingente preto nesse momento será mais nocivo que útil à obra da civilização em que estamos empenhados. Precisamos de gente para os nossos sertões, mas de gente capaz de melhorar em todos os sentidos a população do país. Não temos preconceito de cor, mas somos obrigados a confessar que os pretos não constituem fortes elementos de civilização, nem garantem à raça tipos aperfeiçoados física, mental e moralmente [...]”.

Negros e índios

O preconceito se estendia aos povos originários, seguindo Paulo de Frontin, presidente da Comissão do Quarto Centenário do Brasil, em 1900, que propõe o extermínio dos índios no seu discurso oficial de abertura das comemorações:

“O Brasil não é o índio; os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.

O papel da escola na reprodução de tais preconceitos contra negros e índios foi debatido pelos dois outros integrantes da mesa. A Guarani-Nhandewa Sandra Benites, mestre em antropologia, questionou a interculturalidade presente em escolas indígenas, mas ausente do sistema nacional de educação, que deforma a imagem dos índios. Márcio de Jagun, professor de Direito Portuário na Universidade Gama Filho e na UFRJ, autor dos livros Ori – a Cabeça como Divindade e Ewe, a Chave do Portal, discorreu, entre outros tópicos, sobre a repressão às religiões de matriz africana.

O objetivo da escola e da mídia é esse mesmo: “formar e dirigir a massa inculta, forjando a opinião pública, esteio sobre o qual se assentava [...] o destino político da nação”, confirma o bandeirante Mesquita, em outro editorial.

Sementes de cura

Um “chega pra lá” no preconceito foi dado na mesa coordenada pelo indigenista Toni Lotar. O budista Emilio Mira y Lopez, que já doou relíquias sagradas tibetanas ao Instituto dos Pretos Novos, realizou um ritual para abençoar e aliviar o sofrimento dos índios. Ele ofereceu agora essas relíquias, denominadas tsa-tsas, para serem enterradas em terras indígenas Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e na aldeia guarani Morro dos Cavalos, em Santa Catarina. Na crença budista, elas podem proteger os seres martirizados e curar o meio ambiente.

O martírio dos tempos coloniais continua até hoje nos crimes cometidos por jagunços e pistoleiros pagos pelos usurpadores de terras, passando pelo período da ditadura (1964-1985) quando pelo menos 8.350 indígenas de dez etnias foram assassinados com a cumplicidade de agentes do Estado.  Sofreram com o esbulho de suas terras, remoções forçadas, prisões, torturas, maus tratos, contágio por doenças infectocontagiosas, segundo o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” elaborado por equipe independente do Grupo de Trabalho da Comissão Nacional da Verdade, sob responsabilidade da conselheira Maria Rita Kehl.

Essa mácula para a sociedade brasileira foi abordada na fala do diácono Marcos Gayoso, participante da mesa. Ele lembrou que o papa Francisco solicitou recentemente uma reparação histórica aos índios por parte de seus algozes tanto no período colonial, como nos tempos modernos, o que significa, entre outras medidas, a restituição das terras usurpadas especialmente nos últimos 50 anos.

P.S. – O evento organizado pelo Programa de Estudos dos Povos Indígenas em parceria com o Museu do Índio, foi aberto pela diretora da Faculdade de Educação, Rosana Glat, em mesa mediada por Ana Paula da Silva (Pro-Indio) com a presença de Carlos Freire, representante do diretor do Museu do Índio/Funai José Carlos Levinho, de Jaime Pacheco da Secretária de Educação, de Renato Veras, diretor da Unati e de Telma Simoni do Programa de Estudos e Pesquisa das Religiões (Proeper). O encerramento foi feito por este locutor que vos fala, coordenador do Pro-Indio.

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9 Comentário(s)

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Fernando Soares Campos (via FB) comentou:
25/04/2018
Publicado também no http://port.pravda.ru/cplp/brasil/24-04-2018/45410-dia_indio-0/
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Eurivaldo Rocha (via FB) comentou:
23/04/2018
É uma pena que só fiquei sabendo depois. Gostaria muito de ter participado. Quero muito ver o filme Martírio.
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Marlene Ribeiro (via FB) comentou:
23/04/2018
Oi amigo Bessa! Se os EUA são hoje o maior representante do Deus Capital é porque se juntaram ingleses, franceses e vários outros grupos e atravessaram os mares para colonizar as terras originalmente de povos indígenas, que destruíram muitas etnias, o mesmo que fizeram os portugueses no Brasil e que hoje o agronegócio invade terras públicas, escorraça índios e quilombolas para plantar soja e milho que é para exportar! Tenho parte do sangue índio e negro, além de branco e meus filhos são netos de uma índia Guarani!
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Marly Cuesta comentou:
23/04/2018
Nossa, uma riqueza só,meu nobre e querido amigo Prof.José Bessa! Fico muito feliz quando leio suas tão sábias e lúcidas palavras! ..."O evento “Sementes de Cura e Ritual de Proteção aos Povos Indígenas”, promoveu encontro de culturas, religiões, gerações. .Quanta sabedoria e riqueza a nossa ancestralidade! Que continuemos nas ações em prol de nossos povos,honrando as lutas e sofrimentos de nossos antepassados, pelos presentes e pelas futuras gerações! Gratidão e luz,
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Nefer Hass comentou:
21/04/2018
Deu saudade :) Fiz um trabalho com os Kaiowa, entre 2004/2005, quando teve a morte de 11 criancas por desnutricao. Eh tao triste ver um.povo tao forte e tao sofrido, esmagados pela soja. Engracado que hoje mesmo tava vendo as fotos do tekohaw, casa de reza ???????? Bjos
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Rosana comentou:
21/04/2018
Bessa...adorei o evento...me mobilizou muito ...a presenca dos índios....o coral e aquele seu amigo índio que falou pela manhã....tão simples e tão profundo...
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Leonardo comentou:
21/04/2018
Repercutiu bem, mestre! Até por aqui em Teresópolis teve gente falando. O coral, só para dar um exemplo do que a pessoa que foi a informante emocionada, diga-se de passagem,foi muito muito legal.
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Ana Silva comentou:
21/04/2018
Lindo, necessário e oportuno evento!!!! Que os brasileiros possam assistir o filme Martírio e possam ouvir as vozes indígenas, se chocando e sensibilizando com a dor e luta dos Kaiowá, que também é de todos os indígenas no Brasil e de todos os seus aliados. Valeu, Bessa!
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Artionka Capiberibe (via FB) comentou:
21/04/2018
O José Bessa me marcou em outra publicação, uma que conta sobre um lindo evento realizado em função do "dia do Índio", mostrando o sofrimento e a luta indígena contínua e combatendo o estereótipo bobo e deletério que ronda essa data. Entrei em seu site TaquiPrati, li a publicação (que pode ser acessada aqui http://www.taquiprati.com.br/…/1392-dia-do-indio-sonhando-c…) e, uma vez lá, naveguei por outros textos da prosa tão saborosa desse incrível escritor amazonense. Em dado momento, topei com esse aqui, fui lendo e ficando tensa, histórias que envolvem prisão e tortura sempre me deixam mal, porque remetem diretamente à história da minha família e de vários amigos e amigas. Mas, no final da leitura, fiquei mesmo foi emocionada, porque me emociona ler trajetórias de vida coerentes.
Comentar em resposta a Artionka Capiberibe (via FB)