Tira, bota, deixa o Zambelê ficar.
Como é que os escravos de Jó fugiram lá da Jordânia e vieram jogar o caxangá aqui no Brasil? Por que os portugueses “comem” as vogais que os brasileiros articulam? De onde vem esse “r” caipira “forrrrte” da atriz Vera Holtz e do Zé Dirrrrceu? Se as línguas indígenas e africanas não estivessem tão escondidas, nada disso seria mistério. A produção da invisibilidade linguística foi justamente o tema da mesa-redonda coordenada por Maria Gorete Neto (UFMG), com a participação de Yeda Castro (UFBA), Sônia Queiroz (UFMG) e este locutor que vos fala (UERJ-UNIRIO).
É que os saberes tradicionais indígenas e afro-brasileiros foram inseridos, pela primeira vez, na programação científica da Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cuja 69ª edição realizada do 16 ao 22 de julho reuniu no campus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mais de 10 mil pessoas, incluindo índios, pesquisadores de todo o país e até estrangeiros. Nas três últimas edições o tema fez parte da programação paralela, mas só agora a chamada SBPC Afro e Indígena encontra oficialmente seu espaço no maior evento científico do país.
Embora seja ainda uma iniciativa tímida que precisa ser ampliada, os sábios e mestres indígenas e afro-brasileiros começam a ser reconhecidos agora como legítimos produtores de conhecimento que são, o que permitiu aprofundar o diálogo da ciência com o conhecimento tradicional em conferências, mesas-redondas, palestras, minicursos, pôsteres, lançamentos de livros e exposições. A programação geral da SBPC contemplou todas as áreas do conhecimento numa festa grandiosa do saber, da tecnologia, da arte e da cultura, que incluiu ainda shows de música, espetáculos, performances, teatro, dança, instalações e o diabo a quatro.
Línguas escondidas
Por falar em diabo, a mesa-redonda aqui resenhada abordou a língua, que como Deus, está em todas as partes, mas ninguém vê de tão naturalizada que é. No caso das línguas indígenas e africanas, a invisibilidade funciona de forma ainda mais dramática como resultado de um projeto de uniformização que busca eliminar todo tipo de diversidade, especialmente a glotodiversidade, através de uma política deliberada de silenciamento, com consequências dramáticas para a identidade e a vida de seus falantes.
As línguas africanas faladas no Brasil foram apresentadas por Yeda Pessoa de Castro, luso-afro-baiana, professora aposentada da UFBA e fundadora do Núcleo de Estudos Africanos e Afrobrasileiros da UNEB. Etnolinguista com mestrado na Nigéria e doutorado no Zaire, ela fez trabalho de campo na Bahia e em três países da África. Pesquisou no mestrado o ioruba em Ibadan (Nigéria) e escreveu vários livros, entre os quais “Falares Africanos na Bahia – Um vocabulário afro-brasileiro”, onde destaca a contribuição banto para a formação do português no Brasil.
Embora o nosso país concentre a maior população de descendência negra fora da África, os cientistas brasileiros não deram a devida atenção às línguas e religiões africanas, o que Silvio Romero, no final do séc. XIX, considerou “uma vergonha”. Mais de sete décadas depois, a situação não havia mudado substancialmente. Serafim da Silva Neto, em sua Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil (1963), jurava que “no português brasileiro não houve, positivamente, influência de línguas africanas ou ameríndias”, descartando assim os aportes dessas línguas em contato.
- Há aporte linguístico – nos diz Yeda – quando um falar A, no caso o português, integra uma unidade ou um traço linguístico que existia antes numa fala B (as línguas africanas e indígenas) e que A não possuía. Depois de séculos de contato, essas línguas faladas nas aldeias indígenas, nos quilombos, nas senzalas, nas plantações e minas e até como línguas litúrgicas em núcleos urbanos, deixaram marcas no português do Brasil. Mas esses aportes estão invisíveis aos brasileiros, houve um apagamento muitas vezes tendencioso, como se fossem máculas na língua que hoje falamos.
Jogando o caxangá
É o caso dos Escravos de Jó. Sinceramente, quem em sã consciência acredita que eles fugiriam de lá para vir jogar caxangá no Brasil? Imagina! Eles tinham mesmo era que ficar cuidando do rebanho de sete mil ovelhas, três mil camelos, mil bois e quinhentas jumentas, segundo o Livro de Jó. Portanto, não foram seus escravos que deixaram o Zambelê ficar. Foram os escravos de “injó” ou “unzó” que em banto significa “da casa”, escravos domésticos – nos ensina Yeda, da mesma forma que valongo, em umbundo, significa “desembarcado” no cais que conserva seu nome no Rio de Janeiro.
Tem mais. Existem pistas indicativas das razões pelas quais o nosso português conserva as vogais afastando-se do português lusitano, que as suprime, dando lugar a grupos de consoantes, dificultando às vezes a comunicação. A linguista Yone Leite, já falecida, nos contou que queria contemplar o mar em Algarve e perguntou na portaria do hotel se havia um quarto ‘de frente’. – Aqui todos os quartos são iguais, não tem nenhum d ͥ fr ´nte’ – respondeu o recepcionista, engolindo as vogais.
Yeda Castro credita essa nossa forma de falar às línguas banto, que não têm uma sílaba fechada por consoante e mantém a vogal como o seu núcleo. Por isso, o nosso português é vocalizado, colocamos vogais até mesmo onde elas não existem. Ritmo para nós é cadenciado por três sílabas: “rítimo”, da mesma forma que pneu e advogado, que recebem acréscimo de um “e” ou de um “i”. Neimar faz “gous”, Cristiano Ronaldo “golos”.
Os aportes das línguas indígenas ao português também não foram completamente inventariados. Telêmaco Borba recolheu, em 1878, dados sobre a língua oti falada então em Botucatu (SP). Essa língua do tronco Jê possui sons que as línguas Tupi não têm, como o “r” retroflexo. E seus falantes levaram esse traço para o português, quando adquiriram a nova língua, que deu no “r” caipira. Já no interior do Amazonas, no rio Madeira, há o processo de “alçamento” de vogais, visível em casos como “pupa da canua”, o que também é atribuído ao substrato de língua indígena.
Clitóris peccata
Com raras exceções, as universidades brasileiras mantém distanciamento das línguas negro-africanas no Brasil e das línguas indígenas, que só eventualmente merecem atenção em reuniões acadêmicas. Yeda exemplificou com a comemoração dos 100 anos de abolição da escravatura, em 1988, que reuniu em São Paulo especialistas de várias partes do mundo, inclusive da África. “Nele não houve um só momento para discutir a questão das línguas africanas, que costumam ser chamadas de “dialetos” com uma conotação depreciativa implícita”.
Processo similar ocorre com as línguas ameríndias que são tratadas como “gírias”, às vezes por seus próprios falantes – completa esse locutor que vos fala. São línguas condenadas a usar o elevador de serviço, sem direito ao elevador social. Exemplos recentes foram lembrados, com a recusa de intérpretes na Assembleia Legislativa (MS) que proibiu um líder terena, vítima de deboche de três deputados, de falar em sua língua ou de uma juíza federal que se recusou a ouvir uma testemunha em língua guarani no júri dos assassinos do cacique Marco Veron.
Diante disso, é necessário agora tornar visíveis essas línguas, tema da terceira palestrante, Sônia Queiroz, que pesquisou a presença banto na tradição oral de Minas Gerais, e publicou o livro “Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga”. Sua intervenção apontou para a necessidade de reavaliar o impacto das línguas indígenas e africanas sobre o português do Brasil, na linha defendida por Yeda Castro de buscar mecanismos para implantar cursos de capacitação docente em programas de iniciação científica e de pesquisa.
Hoje, no Brasil, são faladas ainda 274 línguas indígenas conforme o último censo do IBGE ou 180, segundo critérios dos linguistas. Quanto aos falares africanos, já modificados com a interferência do português e até mesmo do latim, são usados como “língua de santo” nas liturgias e nos ritos, nos lugares sagrados onde se desenvolvem as cerimônias de culto. “Nesse contexto, a língua deve ser entendida mais como expressão simbólica do que como competência linguística” – exemplifica Yeda com a ladainha em latim, na qual “Regina Profetarum” é invocada como “Regina bofetarum”.
Numa cerimônia no Pelourinho, Yeda testemunhou um canto inicialmente com léxico africano numa roda de santo para uma feijoada de Ogum. Quando terminou, acompanhados de um tambor, todos cantaram a ladainha em latim para Santo Antônio, escondido num cantinho do altar, com aquelas flores azuis e brancas de papel crepom. O trecho “Agnus Dei qui tollis peccata mundi” foi cantado como “Agnus dê clitóris peccata mundi”. “O que importa é a competência simbólica, o momento em que deve ser entoada a reza e não seu significado literal” – concluiu Yeda. Miserere nobis.
P.S. – Yeda Castro esbanjou humor, simpatia e tanta sabedoria acumulada em 80 anos, que não sobrou espaço para resenhar as outras duas intervenções aqui apenas mencionadas. Ouvi-la foi o melhor presente para quem aniversariava naquele 18 de julho. Além disso, ela é tão fofa que fez o auditório cantar “Escravo de Jó”, incluindo os estudantes indígenas da UFMG (FIEI) ali presentes. Longa vida para Yeda Castro.