CRÔNICAS

Na Torre das Donzelas, a resistência à ditadura

Na Torre das Donzelas, a resistência à ditadura

De pé, oh vítimas da fome! / De pé, escravos sem pão! / E gritemos

todos unidos / Viva a Internacional!” (Eugène Pottier, 1871)

Na década de 1950-60, A Voz Quermesse de Aparecida irradiava pelo bairro mais charmoso de Manaus músicas encomendadas ao Serviço de Amplificação Telegramas no Ar. O modelo era mais ou menos esse, que vai aqui atualizado para o dia de hoje:

- Para você, que nasceu em 1ª de abril de 1964 e agora, fardado e emedalhado, caxinga com a perna direita por este arraial, o Taquiprati lhe oferece a música A Internacional, cantada pelas mulheres presas na Torre das Donzelas em versão chilena dos Quilapayún”:

- El día que el triunfo alcancemos / ni esclavos ni hambrientos habrán / la tierra será el paraíso / de toda la Humanidad.    

A Internacional é sempre entoada por manifestantes no mundo inteiro em diversas línguas, como forma de protesto contra os estados nacionais que, por sua natureza, costumam ser instrumentos de guerra e opressão. O poema escrito por Eugène Pottier, em 1871, logo após o saldo de 30 mil mortos da Comuna de Paris, sonha com a solidariedade internacional do gênero humano num mundo utópico de paz, sem fome, sem patrão.

Lembrei da letra musicada em 1888 pelo belga Pierre De Geyter, durante esta Semana Ditadura e Democracia – Passado e Presente, organizada pela TV Brasil para evocar os 59 anos do golpe militar, com projeção diária de filmes e debates mediados pela imprescindível jornalista Cristina Serra. 

O dia que durou 21 anos, um dos filmes exibidos, comprova com documentos de arquivos e entrevistas a participação dos Estados Unidos no golpe de Estado denominado de “Revolução” pelos milicos. Já Tempos de Resistência analisa os movimentos de luta contra a ditadura. Mas o que atraiu quem, como eu, tem nove irmãs, foi a Torre das Donzelas (2018, 97min) debatido por João Cezar de Castro Rocha e a historiadora Heloísa Starling.

Bunker emocional

O cenário é o Presídio Tiradentes, em São Paulo, onde foram encarceradas mais de 30 mulheres na cela Torre das Donzelas. Mas esse lugar de memória foi apagado com a demolição do prédio, em 1972, para a construção do metrô. Então, a diretora Susanna Lira reergueu uma torre cenográfica com grade, cama, banheiro, escadaria e corredor, a partir de desenhos feitos no quadro de giz por algumas das ex presidiárias. É lá que elas relembram a prisão e as torturas, mas também como resistiram à barbárie.

O filme alterna a linguagem documental da história oral com cenas breves de reconstituição protagonizadas por atrizes amadoras que, como no teatro, interpretam naquele cárcere fictício as prisioneiras quando jovens.

Há momentos em que os relatos nos deixam com o coração apertado pelo grau de brutalidade e crueldade: prisões ilegais até de grávidas e de outras que amamentavam, tortura e assassinatos de mulheres indefesas cometidas por “agentes da lei” pagos pelo contribuinte. E não se tratava de um desvio de conduta de alguns criminosos, mas de uma política do Estado ditatorial.

Apesar disso, quarenta anos depois essas mulheres combativas confirmam que não se deixaram abater na prisão, de onde saíram machucadas, mas inteiras. - “Elas construíram um bunker emocional, que não as deixava sucumbir à desumanização” – escreveu a jornalista Thaís Seganfredo.

Na Torre, elas improvisam jogo de vôlei, brincam de desfile de modas, leem livros e destacam a leitura na manutenção da esperança. Cada uma ensina o que sabe às outras, cozinham e, se não me falha a memória, foi Dilma Rousseff que fez sopa de quiabo. É dela a declaração de que “a pior coisa que a cadeia pode fazer é tirar o nosso futuro”. Não tirou. Uma das presidiárias confirma: "O inimigo quer ver a gente triste e destruída". Não viu. Elas estavam conscientes de que "a alegria é uma forma de resistência ".

A flecha e a farda"

 - Essas mulheres encarceradas, que recuperaram o espírito coletivo de convivência, não foram derrotadas, na medida em que saíram da prisão fortalecidas para continuar a luta – assegura a diretora Susanna Lira, filha de um militante equatoriano “desaparecido” nos porões do DOPS. “Muita gente morreu e foi torturada para que nós pudéssemos viver hoje numa democracia. Apesar de toda a barbárie, venceu a humanidade” – ela conclui.   

As presas conduzidas ao Presídio Tiradentes, no qual algumas viveram durante até quatro anos, tiveram um período de relativa calmaria, se comparado com o anterior em que foram torturadas e violentadas. Uma delas, minha amiga Ana Burstyn Miranda, por ser carioca, chegou a ser transferida para uma cela no Forte de Copacabana, no Rio. Vinte anos depois, em 1993, pude acompanhá-la na visita ao Museu Histórico do Exército, que lá funciona. Era a primeira vez que, livre, revivia ali sua prisão. (Relato em https://www.taquiprati.com.br/cronica/1589-omar-as-forcas-amadas-e-a-maria-batefofo).  

O documentário, longe de ser panfletário e “vitimista”, prioriza a resistência e não a tortura sofrida por elas, já amplamente reconstituída na Comissão da Verdade com nomes dos torturadores e dos aparelhos de repressão.

O filme de sexta-feira (31) “A flecha e a farda” reconstrói a história da Guarda Rural Indígena treinada pela ditadura, com exibição precedida do debate “Amazônia, ontem e hoje” com Maíra Pankararu e Cecília Adão. No sábado (1º) – o Dia da Mentira - a discussão foi sobre o “bolsonarismo”, que antecedeu a exibição do filme Missão 115 dirigido por Sílvio Da-Rin.  Interessante se o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi ministro na gestão Jair Bolsonaro, tivesse sido convidado por Cristina Serra para comentar artigo de sua autoria no Estadão nesta quinta (30).

Santos Cruz, quadro da direita inteligente (existe isso sim), esculhamba com o Coiso, a quem chama de “fujão, despreparado, fanfarrão” e de “embusteiro, que destruiu a direita e o conservadorismo no Brasil, deixando um Brasil doente e em conflito permanente por conta do fanatismo político”. “Nenhum presidente da República cometeu um ato de traição desse nível contra as Forças Armadas”. Sua avaliação é a de que  “O Brasil não merece um ´imbrochável´ para brincar de motociata e jet ski”.

Amados ou não

O artigo do general silencia sobre a tortura defendida pelo Coiso. De qualquer forma, depois de ler seu artigo só nos resta retomar o Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida para enviar mais um “Telegrama no Ar”:

- Para você, que passeia neste arraial chutando o pau da barraca, as irmãs do Taquiprati lhe oferecem a melodia “Pra não dizer que eu não falei de flores”:

Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos de armas na mão, nos quartéis lhes ensinam antiga lição de morrer pela Pátria e viver sem razão”.

Os filmes e os debates da TV Brasil constituem um esforço para quebrar o incômodo silêncio e construir outras versões do discurso histórico, que buscam saldar uma dívida com o país. As novas gerações não merecem a memória silenciada, escondida e adulterada de um passado vergonhoso. Precisam se arrepiar ouvindo o canto da Internacional pelas mulheres da Torre de Donzelas, cujos nomes estão aqui registrados em ordem alfabética: 

Ana Burstyn-Miranda, Ana Maria Aratangy, Ana Mércia, Arlete Bendazzoli, Darci Miyaki, Dilma Rousseff, Dulce Maia, Elea Mercurio, Elza Lobo, Estrella Bohadana, Eva Teresa Skazufka, Fátima Setúbal, Guida Amaral, Iara Glória Prado, Ieda Akseruld Seixas, Ilda Martins da Silva, Janice Theodoro da Silva, Lenira Machado, Leana Ferreira de Ameida, Leslie Beloque, Lúcia Salvia Coelho, Maria Aparecida dos Santos, Maria Aparecida Cantal, Maria Luiza Belloque, Marlene Soccas, Nadia Leite, Nair Benedicto, Nair Yumiko Kobashi, Rioco Kayano, Rita Sipahi, Robeni Baptista da Costa, Rose Nogueira, Sirlene Bendazzoli, Telinha Pimenta, Vilma Barban. 

P.S. 1  As celebrações da semana:

Na sexta (24) homenagem in memoriam ao cineasta e diretor de teatro Djalma Limongi Batista, com exibição do videomemória de uma entrevista com Roberto Kahane, organizado em Manaus pela Manauscult e Concultura

Na quinta (30), dois eventos: 1) o sarau e recital poético no Museu da Cidade de Manaus em homenagem ao poeta Thiago de Mello, que mereceu belo artigo de sua filha Isabella e 2) o show musical “Salve, Amazônia” na Sala Nelson Pereira dos Santos em Niterói (RJ) com Zeca Torres, Célio Cruz e convidados.

Na sexta (31), dois lançamentos de livros: 1) Um em Manaus: “Chamado à Ordem” de José Seráfico, pensador e crítico, sempre fiel à luta. 2) O outro na Universidade Federal de Campina Grande: Fragmentos de Tempos Vividos de Marilza de Melo Foucher.

P.S.2 - Ver também FAZEI EM MEMÓRIA DELAS: MULHERES CONTRA A DITADURA  https://www.taquiprati.com.br/cronica/854-fazei-em-memoria-delas-mulheres-contra-a-ditadura

 

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12 Comentário(s)

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rodrigo comentou:
05/04/2023
Ditadura (e simpatizantes dela) nunca, nunca, nunca mais!!!!!!! Fiquei com muita vontade de assistir "Torre das Donzelas", Não compreendo como ainda existam pessoas que apoiam algo tão brutal, covarde e desumano como foi a ditadura militar. Uma mancha que ficou tatuada em nossa história, mas como bem diz o professor Bessa, não podemos deixar esquecer, pois as novas gerações não merecem que a memória seja silenciada, escondida e adulterada de um passado vergonhoso. Até para que barbaridades como essa nunca mais possam se repetir. .Por falar em barbárie, aproveito o espaço para prestar minha solidariedade a todos os parentes que perderam seus filhos hoje em mais triste atentando, agora em uma escola em Blumenau (SC) e oito dias atrás (28/03) tivemos outra fatalidade similar havendo o óbito de uma professora em plena sala de aula, quando exercia seu trabalho. Ainda não se tem maiores informações, mas em ambos os casos, até o momento foi notado a influência das redes sociais. No primeiro caso foi noticiado que o assassino participava de grupos no Discord ou mesmo twitter para realizar esses tristes atos e que outras pessoas com pensamentos similares aos dele incentivaram para que isso ocorresse). E nesse caso de hoje, as autoridades estão investigando a motivação para tal crueldade, além de saber como ele tinha informações sobre a escola, como planejou para entrar na mesma e verificar se ele faz parte de algum grupo na internet assim como no caso da Escola em São Paulo. Quando se mata uma criança (além de toda a covardia e crueldade embutida nessa ação), acaba se matando um filho, um, neto, um amigo, parte de uma geração, se mata o futuro de um país. Triste demais tudo isso. Temos que ter força, não nos abatermos e continuar lutando bravamente assim como as mulheres guerreiras do Torre das Donzelas. Resistir é preciso. Um abraço querido professor.
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Nicolas Alexandria comentou:
04/04/2023
Sempre desvendando máscaras sociais o primeiro de abril, @Jose Bessa
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Lúcia Hussak van Velthem comentou:
03/04/2023
Agradeço muito o seu takiprati dessa semana!. Ele tocou fundo o meu coração.. Não estive na Torre das Donzelas, mas numa torre solitária da Barão de Mesquita.. Fui presa em 1972, fiz depoimento para a Comissão da Verdade.
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Marisa De Oliveira Maltauro comentou:
03/04/2023
Necessário e obrigatório conhecer essa bárbara história de Resistência!
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Sandra Rami comentou:
03/04/2023
Ou resistimos ou seremos eliminadas.
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Ana Bursztyn-Miranda comentou:
03/04/2023
Meu amigo Bessa, Grata pela parte que me toca. Aquela entrada no Forte de Copacabana - pela frente - contigo foi inesquecível e, de alguma forma, uma espécie de reparação pelo tempo que fiquei lá presa durante a ditadura. Grata, abraços!
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Isabella Thiago de Mello comentou:
02/04/2023
A TV Cultura e a repórter Cristina Serra –como sempre- estão cumprindo o papel essencial do jornalismo. Se a verdade tem hora certa pra ser dita, não existe hora mais necessária para a série de documentários sobre o golpe civil-militar de 1964, o que fizeram e como torturaram centenas de milhares de pessoas, professores, farmacêuticos, políticos, estudantes que defendiam o socialismo, todos considerados “inimigos comunistas” e por isso, deveriam ser eliminados de forma cruel, para servir de exemplo para quem ficasse vivo. O medo e o terror como aparelho de Estado. Temos, pela frente, os quatro anos mais difíceis após a Constituição de 1988, o marco da redemocratização no Brasil. Nunca foi tão importante reabrir nossas feridas, velar pelos nossos mortos. Feridas que não cicatrizam, sempre em carne viva. Tortura nunca mais. EM TEMPO: Obrigada, Bessa, pela citação da Matéria sobre o poeta Thiago de Mello, meu querido Pai, neste Aniversário que ele faria 97 anos. Caso queiras, tu podes publicar no TAQUIPRATI o link do texto do jornal “A Crítica”. Aquele abraço apertado, da afilhada. Isabella Thiago de Mello ????
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Ana Silva comentou:
02/04/2023
Ditadura nunca mais! Belíssimo texto, Bessa. Vi Torre das Donzelas e me emocionei bastante.
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Tania Pacheco comentou:
02/04/2023
REPRODUZIDO EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL. https://racismoambiental.net.br/2023/04/02/na-torre-das-donzelas-a-resistencia-a-ditadura-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Luiz Pucú comentou:
02/04/2023
Rapá...Vi o filme na sexta-feira... chorei feito um bezerro...e a história me envolvendo quase enforcando... AXÉ BABÁ
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Valter Xeu comentou:
02/04/2023
REPUBLICADO EM PATRIA LATINA https://patrialatina.com.br/na-torre-das-donzelas-a-resistencia-a-ditadura/
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Celeste Correa comentou:
01/04/2023
Muito linda a crônica, mano ! Eu te confesso que tenho muita dificuldade de ler relatos sobre a ditadura civil/militar brasileira, sempre me emociono muito e não consigo ler ou assistir textos ou filmes referentes a este período duro e cruel. Mas eu consegui ler esse Taquiprati porque fizeste memória deste momento, evidenciando não apenas a crueldade para com as mulheres torturadas, mas, também, as diversas formas de resistência que elas encontraram para sobreviver e sair mais fortes do seu martírio. Como mulher eu me sinto orgulhosa desses relatos e me pergunto: como pode uma parcela da população brasileira ainda defender e pedir a volta da ditadura? Isso sinaliza que temos que cuidar bastante da nossa ainda frágil democracia e esta crônica cumpre bem este papel contribuindo para avivar a memória dos seus leitores porque “Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la.
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