Escrevo de Soure, na ilha do Marajó. Vim convidado pela pajé Zeneida Lima de Araújo, de 73 anos, bisneta de Coemitanga, um xamã da etnia Sacaca.Com ela, vou escrever um livro sobre a pajelança cabocla do Marajó. Ela já é autora de um livro autobiográfico – O Mundo Místico dos Caruanas – editado em 1993, que conta sua trajetória de vida e recupera as narrativas míticas dos índios do Marajó, com os saberes sobre a floresta e sobre a medicina indígena.
Dona Zeneida, ao longo de sua vida, conviveu com alguns etnógrafos internacionalmente conhecidos como o francês Pierre Verger, que chegou ao Brasil nos anos 1950 na qualidade de fotógrafo e seu colega Roger Bastide, autor de vários estudos sobre a cultura brasileira. Bastide entrevistou dona Zeneida, registrando informações para escrever um livro inacabado sobre o mundo da encantaria marajoara. Os dois, junto com o etnógrafo Manuel Nunes Pereira, em suas obras se referem com respeito à pajé, com quem mantiveram rica correspondência. Algumas cartas desses três pesquisadores fazem parte dos arquivos de dona Zeneida.
Bisneta de pajé indígena, mas filha de um fazendeiro, advogado e político de renome no Pará, dona Zeneida sofreu discriminação de sua própria família, quando descobriram que ela era portadora de alguns talentos especiais. “Tenho 12 irmãos, mas durante muito tempo não mantive contato com minha família. Eles me desprezaram, por aquilo que eu representava na pajelança cabocla”, ela confessa.
Apesar da oposição, dona Zeneida foi iniciada na pajelança pelo mestre Mundico, que estava familiarizado com as energias viventes sob as águas, os encantados de água doce, chamados de caruanas e os de água salgada, conhecidos como caruás. Para Nunes Pereira, os caruanas constituem “uma manifestação impressionante das forças vivas da natureza. Eles são os senhores das águas do nosso planeta”. De acordo com a tradição marajoara, a fonte onde são gerados esses mistérios chama-se Patu Anu.
Em seu livro, prefaciado pela escritora Raquel de Queiroz, dona Zeneida apresenta a narrativa de criação do mundo, que vem dos índios Sacaca, e lhe foi contada pelo mestre Mundico. “No princípio, o mundo era só água. Um dia, o Grande Girador – criador do mundo – trouxe Auí e seu povo e mandou que construíssem sete cidades. Todos viveriam felizes desde que não olhassem para o fundo das águas, sob pena de serem tragados. E foi o que aconteceu como castigo pela desobediência cometida. A cabeça de Auí foi partida em três e deu origem aos reinos mineral, animal e vegetal. A terra que estava no fundo das águas veio à superfície e o Girador tornou a povoar as cidades, É justamente essa energia ligada ao encanto das águas que é usada no processo de cura”.
Seu poder de cura já havia sido anunciado pelo bisavô indígena. “Ele dizia para meu avô que o herdeiro da pajelança viria através de um filho dele”. Desde os onze anos, dona Zeneida já sabia fazer remédios extraídos da floresta, de ervas e plantas, de caranguejos e besouros. “As receitas simplesmente me vinham à cabeça como hoje me vêm as músicas que componho e as poesias que escrevo”, diz, acrescentando que também muito aprendeu com mestre Mundico, que lhe ensinou os segredos da natureza. A partir das águas, ela mobiliza as energias da natureza, no sentido da cura física, mental e espiritual.
“Vejo a energia da pessoa e, através dela, sei se está doente e até qual o mal que está sentido. Dependendo do caso, uso remédios do reino animal, vegetal ou mineral”. Com um chá de folhas de mamoeiro e água de poço, dona Zeneida curou de vez uma inflamação do cólon – uma colite – do seu filho Marcelo, que já havia sido desenganado pela medicina. No entanto, ela adverte: “Um pajé não é Deus. Certas curas não estão ao nosso alcance. É fundamental ter esta consciência até para, muitas vezes, aconselhar a procurar um médico. Eu não melhoro a vida de ninguém. A própria pessoa é que precisa encontrar a força para se erguer. Apenas transfiro energia para que isso aconteça”.
O livro escrito por dona Zeneida acabou caindo nas mãos da Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis, que o escolheu como tema para o carnaval de 1998: “Pará, o mundo místico dos Caruanas nas águas do Patu-Anu”, com samba enredo cantado pelo Neguinho da Beija-Flor. Ela não queria, inicialmente, participar do desfile, mas acabou convencida com os argumentos de que o carnaval serviria para divulgar sua luta em defesa da natureza e da cultura da pajelança cabocla do Marajó. Nessa época, a mídia abriu espaço para ela e seus saberes, com matérias publicadas na grande imprensa, como o Jornal do Brasil, assinadas pelas jornalista Lena Frias e Juliana Caetano e várias revistas de circulação nacional. Mereceu um espaço nobre no `Globo Repórter`e um programa especial da Globosat.
“O homem está destruindo tudo, acabando com o planeta. Se continuar assim, vamos todos terminar numa grande solidão”. Ela criou uma organização não governamental, com a finalidade de defender o meio-ambiente e de educar as crianças de Soure, mantendo uma escola conveniada onde 320 crianças estudam em tempo integral. Com isso, recebeu apoio de diferentes instituições nacionais e internacionais como a UNESCO, a FAO, a Universidade Federal do Pará, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Petrobrás, através da Gerência Setorial Norte de Segurança, Meio-ambiente e Saúde da Petrobrás.
O coordenador de Projetos da Gerência da Petrobrás, Igor Melo e a Consultora na área de Saúde, Nazareth Solino estão apoiando também a realização das Jornadas de Cultura do Marajó, realizada anualmente pela ONG Caruanas. Já ocorreram três jornadas e em setembro acontecerá a IV Jornada com a presença de Alcindo Werá, pajé guarani da aldeia de Biguaçu (SC). A terceira jornada contou com a participação da cineasta Tizuka Yamazaki, que está fazendo um filme sobre a vida de dona Zeneida. A IV Jornada contará com a participação do músico Egberto Gismonti, que já gravou mais de cem músicas cantadas por dona Zeneida, algumas delas cantadas em língua geral, herdada dos índios, mas a maioria de sua própria autoria.
Essa é dona Zeneida, a pajé cabocla do Marajó, cuja vida foi dedicada ao processo de cura, pelo qual não cobra um centavo, e à defesa da floresta, das águas, dos direitos das crianças, presentes em doze livros que escreveu centrados na educação ambiental.