Oh, pedaço de mim / Oh, metade arrancada de mim. (...)
A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu.
(Pedaço de mim. Chico Buarque).
Exmo. sr. capitão paraquedista reformado
Deputado Jair Messias Bolsonaro (PSC/RJ)
Sou Maria Garcia Meirelles, amazonense de Parintins, mãe de Thomaz Antônio da Silva Meirelles Neto, ex-secretário geral da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), preso, torturado e assassinado na prisão. Escrevo-lhe porque o senhor matou meu filho outra vez no domingo passado, em sessão da Câmara de Deputados, ao fazer uma apologia do crime exaltando seu colega de armas, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador e assassino reconhecido, responsável por 60 mortes e por mais de 500 casos de torturas cometidos no Doi-Codi entre 1970-1974.
Neste período, capitão Bolsonaro, Thomazinho combatia o golpe militar que rasgou a Constituição, derrubou o presidente eleito pelo voto popular, instituiu a censura e suprimiu as liberdades democráticas. Por isso, em 1970, foi preso e torturado no Doi-Codi. Condenado, cumpriu pena. Libertado dois anos depois, teve que se esconder. Foi aí que viajei ao Rio para encontrá-lo, na clandestinidade, levando um pouco do sabor de sua infância - uma paçoquinha que eu mesma fiz no pilão e que ele gostava tanto.
Nosso encontro foi numa noite de fevereiro de 1973 em Copacabana. Senti dor imensurável ao ver o fruto das minhas entranhas machucado, lanhado, com marcas de tortura e cicatrizes no corpo. Era um pedaço de mim que estava ferido. Provou a paçoquinha e deitou a cabeça no meu regaço, sempre calado, discreto e triste. Eu lhe fiz muito carinho, sem saber que era uma despedida. Essa foi a última vez que o vi.
A guerra suja
Meu filho voltou a ser preso em 7 de maio de 1974, quando viajava do Rio a São Paulo, conforme documentos do DOPS/SP e relatório do Ministério da Marinha assinado pelo ministro Ivan Serpa. Cinco anos depois, o nome de Thomazinho constava numa lista publicada pelo Correio da Manhã (03/08/79) com 14 presos mortos pelos serviços secretos das Forças Armadas, mas somente em 1995 ele foi considerado oficialmente desaparecido. O corpo até hoje não foi localizado.
Durante anos, não assumi o luto por meu filho, sempre com a esperança de reencontrar a quem me fez mãe. É que quando ele nasceu, eu também nasci como mãe. Admitir sua morte era, além de amputar uma parte de mim, matar minha maternidade. Meu filho era muito inteligente, doce, educado, generoso. Um príncipe. Todos gostavam dele. Eu não o esqueci nem um minuto, não podia imaginar um amanhã sem ele. Nunca soube de seu paradeiro. Levou tempo para ter a certeza de seu assassinato.
A notícia foi confirmada quatro décadas depois pelo seu colega, capitão Bolsonaro, o ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, atirador de elite, que escreveu o livro "Memória de uma Guerra Suja" para exorcizar os demônios que o atormentavam. Em entrevista a Alberto Dines, em junho de 2012, no Observatório da Imprensa, ele contou histórias de assassinatos e torturas durante a ditadura militar:
- “Hoje mais uma historia triste para esclarecer é (do) desaparecido político Thomaz Antônio da Silva Meirelles. É...recebi um chamado do coronel Perdigão e fui ao quartel da Barão de Mesquita (...) Ali o coronel Perdigão me entregou um corpo num saco preto, né, (...), quando chegou em Campos abri o saco, vi que se tratava de um homem aparentando ter mais ou menos 40 anos.E muito machucado, ele estava apenas vestido com um calção, não tinha as unhas das mãos, estavam arrancadas, o rosto bem desfigurado pelas torturas, com sinais de queimaduras...".
Viva a morte!
A brutalidade da cena agride a humanidade. Quanta dor! Não desejo esse sofrimento para ninguém, capitão Bolsonaro, nem para dona Olinda - a sua mãe, nem para Michelle - sua esposa, nem para qualquer um de seus filhos - Eduardo, Flávio, Carlos, Renan e Laura. Ninguém merece isso, nem mesmo um execrável torturador. No meio da barbárie, luto para preservar minha humanidade. Vocês tiraram duas vidas: a minha e a do meu filho. Aconselhada a pedir indenização, não o fiz. O que queria era a verdade, nada mais, saber o paradeiro do meu filho em cujo túmulo em lugar desconhecido não pude colocar uma flor ou acender uma vela.
O assassinato de Thomazinho como de tantos outros foi uma extrema covardia. Ele estava preso, desarmado, legalmente sob proteção do estado. Os assassinos, com salários pagos pelo contribuinte, envergonham o Exército nacional por praticarem um crime abjeto contra a humanidade, conforme definido pelo Direito Internacional. Como pode um ser humano se degradar tanto a ponto de torturar ou de apoiar a tortura? O senhor defendeu a tortura cometida por um coronel armado contra Dilma Roussef, uma mulher indefesa.
A sua declaração de voto, capitão Bolsonaro, revela covardia, que não me surpreende, pois o senhor é um notório agressor profissional de mulheres. Ofendeu Maria do Rosário (PT-RS) quando ela defendeu a Comissão da Verdade, insultou Benedita da Silva (PT-RJ), ameaçou a advogada indígena Joênia Wapichana, a cantora Preta Gil, a ministra Eleonora Menucucci (PT/MG), a senadora Marinor Brito (PSOL-PA) e até Marta Suplicy (PMDB/SP) quando ela defendia projeto de lei que criminaliza a homofobia. Tudo isso escancaradamente, publicamente.
Racista, homofóbico e fascista, a sua declaração em favor da tortura ecoou como o grito necrófilo e insensato de "Viva la Muerte" do general espanhol José Millán-Astray, em 12 de outubro de 1936, criticado por Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, para quem só um mutilado mental carcomido pelo ódio é capaz de gritar "morra a vida".
Capitão Bolsonaro, no Congresso do Cunha comandado por um réu no STF, o senhor votou e declarou que votava "sim" porque era a favor da tortura. Mais claro não canta um galo. Sua declaração de voto a favor da tortura me deu a certeza de que aquilo que está acontecendo no Brasil é mesmo um golpe. O Fora Dilma equivale a um Fora Thomazinho e Fora todos aqueles que combateram o outro golpe, o de 1964.
Tenho pena do senhor pela besta-fera em que se transformou. Morro de vergonha de vê-lo representando parcela do povo brasileiro no Congresso Nacional. Se viva fosse, diante de tanta afronta e de tanto escárnio, me sentiria representada pela reação do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ) e pela ação atribuída à torcida do Corinthians na montagem da foto que circulou nas redes sociais.
VER TAMBÉM:
Thomazinho - http://www.taquiprati.com.br/cronica/983-thomazinho
Cadê o Thomazinho - http://www.taquiprati.com.br/cronica/907-cade-o-thomazinho
A Paçoquinha da Dona Maria - http://www.taquiprati.com.br/cronica/840-a-pacoquinha-da-dona-maria
Carta aberta à Comissão da Verdade - http://www.taquiprati.com.br/cronica/938-carta-aberta-a-comissao-da-verdade
Maria Pucu, a militante fiel - http://www.taquiprati.com.br/cronica/924-maria-pucu-a-militante-fiel
P.S.1 - Só foi possível psicografar esta carta de dona Maria, já falecida, graças a entrevista que ela deu a Jocilene Chagas em 1995.
P.S. 2 - "Dilma não denunciou o impeachment como golpe em seu discurso na ONU" - anunciou o Jornal da Band (22/04). O apresentador Boechat fez questão de esclarecer que em nenhum momento a presidente Dilma ou qualquer outra fonte do Planalto informaram que ela assim o faria, que as fontes de tal informação eram da oposição. Mas na abertura do Jornal Nacional da Globo, minutos depois, Alexandre Garcia anuncia: "Dilma recuou e não denunciou o processo de impeachment por causa da pressão da oposição e do STF". Quer dizer, eles inventaram que ela ia falar, era uma invenção deles. Ela não falou e eles mantiveram a inverdade, dizendo que ela havia recuado. Uma mentira justificando a outra. Trata-se de desinformação e de manipulação descarada da opinião pública. As organizações Globo perderam toda compostura. Viva la Muerte!
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“Viva la Muerte!”
Anne-Marie Milon Oliveira
Um surpreendente grito é evocado por José Ribamar Bessa em sua última crônica no “Taquiprati” (Diário do Amazonas), intitulada “De Maria Meirelles para Jair Bolsonaro”, Trata-se de um grito de guerra dos Republicanos espanhóis que compunham a Frente Popular, governo legalmente eleito em pleito democrático, atacado por um golpe militar em 1936. Este Golpe, por sua vez, deu origem a um conflito fratricida de três anos, um dos mais atrozes da história, a uma Guerra Civil.
Essa guerra é vista hoje pelos historiadores como o “ensaio geral” da Segunda Guerra Mundial, pois, com o apoio de Hitler e apesar do engajamento de combatentes do mundo inteiro que foram defender a República nas Brigadas Internacionais, a Guerra Civil espanhola acabou com a vitória dos golpistas e se prolongou numa ditadura que durou 36 longos anos.
Vivi na Espanha em 1964 e 1965, conheci de perto esta ditadura que, valendo-se, entre outros, de uma visão retrograda da religião, controlava os menores detalhes da vida dos cidadãos. Lembro-me da obrigação de ir à missa para alunos e estudantes. Os militares (recrutas e profissionais) tinham que colher a assinatura do padre numa caderneta, atestando sua presença, as mulheres não podiam usar calça comprida, não podiam ficar de maiô na praia (nem se falava em biquíni!) após o banho. Toda oposição política era sancionada pelos mesmos métodos que conhecemos aqui durante 21 anos: torturas, assassinatos etc... Morreram cerca de um milhão de espanhóis, centenas de refugiados fugiram (a França que hoje se recusa a receber mais de 20 000 fugitivos da Síria acolheu quase meio milhão de republicanos espanhóis).
Dois fatos entre mil:
Os Golpistas mataram um dos maiores poetas do país, Federico Garcia Lorca, como denunciou seu amigo António Machado, outro grande poeta. Vale a pena ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=6K2BC-5mEsQ
Que fué en Granada el crimen, sabed? Pobre Granada! En Granada, en su Granada!
A aviação de Hitler (40 aviões, 30 toneladas de bombas jogadas) bombardeou durante horas uma pequena cidade de pouco mais de 6000 habitantes, Guernica, em dia de Feira, metralhando até o gado, destruindo tudo.
Picasso imortalizou a cena:
Foi diante de tanta atrocidade num conflito fratricida que fez sentido este grito de guerra:
Viva la muerte!
A raiz da atrocidade era o que vemos por aqui, embora ainda felizmente em escala menor: o ódio. Suscitado nas pessoas por uma mídia criminosa, estampado e ampliado mil vezes na internet segundo o conhecido aforismo “quem conta um conto aumenta um ponto”, ele foge a todo controle racional. Um clima de linchamento se instala que pode, mais adiante, “justificar” a tortura e o assassínio como vi estes atos justificados durante a ditadura militar (até por um bispo da Igreja Católica!).
Como Jair Bolsonaro e seus “torcedores” hoje a justificam num prenúncio alarmante.
O ódio perde todo contato com a realidade e, como na Espanha, onde irmãos chegaram a matar irmãos, mães foram dedurar filhos, ele torna tudo possível.
Qualquer semelhança com o que vivemos não é mera coincidência. Todos os golpes que derrubam as fronteiras da democracia tendem ao autoritarismo, e, havendo resistência – porque sempre há - são levados a um arbítrio cada vez mais brutal alimentado pelo ódio.
Hoje, felizmente, a Igreja Católica não se presta mais a este papel, ela não apoia o golpe em curso. Mesmo assim, um dos argumentos ainda usado pelos “pro-impeachment” é o velho e surrado “fora comunistas”, como se o “comunismo ateu” tal como era pintado pelos golpistas de 1964 ainda tivesse alguma realidade, a não ser na caricatura oferecida pela Coreia do Norte!
Mas os políticos não desistiram de se servir da religião para assentar seu poder.
Temos aqui a famosa “bancada evangélica” da qual faz parte Eduardo Cunha e que votou em 93% pelo impeachment. Quero citar, entre os muitos que deram sua parte à farsa do dia 17 de abril de 2016, o deputado Cabo Daciolo do PT do B eleito, como Eduardo Cunha, pelo Rio de Janeiro.
Como a imensa maioria dos deputados, ele não tocou no que era o centro da questão: se as “pedaladas fiscais” praticadas pela Presidenta constituíam ou não crimes de reponsabilidade, suscetíveis de justificar uma destituição.
Estas foram suas declarações ao votar:
“Glória a Deus! Senhor Presidente, todos ouviram aqui eu falar: fora Dilma! Fora Michel Temer! Fora Eduardo Cunha! Fora Rede Globo mentirosa que fica difamando pessoas! . Vocês podem ser grande aos olhos do homem, mas para Deus, vocês são pequenininhos. Em nome do Senhor Jesus, eu profetizo a queda dos senhores a partir de hoje. E venho dizer aqui, venho dizer aqui, pelos militares das Forças Armadas que estão sendo sucateado há anos. Pelos militares da segurança pública que estão morrendo todos os dias, pelos militares que estão agora em ativa e os pensionistas sem salário. Fora Pezão! fora Dorneles! Chega de corrupção! Meu voto é: SIM”. https://www.youtube.com/watch?v=PxJuCoCGEHI
Segundo a revista Época, das organizações Globo, o deputado teria mudado seu voto (inicialmente a favor do impeachment) após ter orado com Dilma e teria se comprometido a votar contra. Mas ele desmente categoricamente esta versão e, como não podemos dar crédito à imprensa global, não saberemos nunca onde está a verdade. Paciência!
Mas o que nos interessa aqui é o recurso à religião para dar um caráter definitivo ao voto que profere o deputado. É Deus que fala pela boca dele, é “em nome de Jesus” que ele fala e, mais do que isso, “profetiza”. É preciso trazer à consciência todo o peso simbólico desta declaração em que o deputado Cabo Daciolo se coloca, aos olhos de todos os brasileiros, sabendo que a imensa maioria deles são pessoas religiosas, no mesmo patamar que os profetas bíblicos.
Um poderosíssimo recurso de poder que, como todos eles, visa favorecer, reforçar a influência do político (e não, como se pretende, a de Deus!).
É que nesta perspectiva, que é a dos milhões de adeptos de religiões evangélicas, não há contestação possível da palavra do deputado. Contestar não seria mais exercer oposição política, seria cometer um sacrilégio. Entramos numa outra lógica: Deus falou e não há outra opção a não ser obedecer.
Num contexto bem diferente, o do Jihadismo muçulmano, vemos como o mesmo mecanismo, levado a um radicalismo extremo, justifica a morte (o assassinato) de todos os “diferentes”, a não ser que eles aceitem se converter. É o que está sendo praticado em várias regiões do Oriente médio e da África.
Estamos em presença de um fenômeno, talvez de uma fronteira. Embora a nossa Constituição evoque em seu preâmbulo a “proteção de Deus”, ela adota princípios de isenção e tolerância que podem ser qualificados de laicos. O laicismo é uma doutrina que prega o respeito por todas as religiões e crenças, e também pelo ateísmo, com tal que eles permaneçam na esfera privada, que não procurem impor sua lógica na lógica política. Ainda não estamos neste estágio no Brasil e podemos constatar a onipresença do fato religioso no cotidiano e na vida pública no sentido mais amplo da palavra. Mas temos também uma tradição de tolerância e até de sincretismo que é a viva representação desta tolerância.
No entanto, esta presença viva do fato religioso pode nos expor a um risco mais precisamente político: o da ascensão paulatina de uma visão teocrática que seria o exato contrário da democracia que se construiu, justamente, em oposição à visão monárquica “de direito divino”, à de um poder absoluto supostamente determinado por Deus.
A teocracia estabelece “verdades” e comportamentos que todos devem seguir. Quem desobedece se expõe não somente a punições “terrenas” que podem ir até a pena de morte, mas se expõe, sobretudo e principalmente, a um castigo divino que há de ser eterno: o inferno. A teocracia não deixa lugar para a autonomia, nela os sujeitos deixam de existir enquanto tais, governados no mais profundo deles mesmo pelo medo. É também isso que fazem as ditaduras, apoiadas ou não na religião.
Esta identidade faz com que a visão teocrática, mesmo quando animada por intenções sinceras ou até motivada pela resistência à opressão (temos ao longo de nossa história várias experiências como Canudos, Trombas, etc.) corre sempre o risco de se tornar “um pedaço de mau caminho” para a ditadura.
A democracia por sua vez tem por base a dúvida, o debate. Ela aceita o fato religioso, mas não o invoca como guia da ação, aceita da mesma forma o ateísmo. Ela acolhe a diferença, a divergência, se enriquece com elas. Não se nega a lidar com o conflito e procura enfrenta-lo dentro de regras por todos acordadas.
Então:
Deus foi citado 59 vezes na votação do dia 17 de abril. Refletindo sobre o curso que tendem a adotar os regimes oriundos de golpes, e mais ainda, aqueles supostamente avalizados por uma “vontade divina”, que reflexões isso nos suscita?