Entro no facebook. Abro uma janelinha que diz: "Pesquise pessoas, locais e coisas". Coisas? Somente aquelas do coração cantadas por Raul Seixas. Locais? Dispenso todos. As pessoas sim, essas me interessam. Digito, então, o nome de uma amiga querida: Vera Sastre. Aparecem quatro pessoas com esse nome. Qual delas é a que procuro? Vou clicando um por um para ver.
A primeira Vera, decididamente, não é. Parece que essa é argentina, traz acoplado outro sobrenome: Vera Sastre Quesada. O perfil exibe a foto de uma loura, com uma máquina fotográfica e uma frase em espanhol que provocaria risos na minha amiga: "el corazón también se cansa de esperar, de callar y de intentar".
A foto da segunda Vera, que além de Sastre é Gallegos, mostra uma mulher, de vestido vermelho, deitada num sofá cama, com a perna cruzada e uns sapatos prateados, que não fazem o estilo daquela que procuro.
Dou sorte no terceiro clique. Encontro, enfim, a Vera vera, a Vera verdadeira. É ela, não tenho dúvidas, sobretudo quando vejo a indicação sobre o seu livro preferido: "Fora Paulo Coelho". É a cara da Vera. Mas o facebook desconfia de mim e, em outra janela que abre, insiste com uma pergunta impertinente:
- Você conhece Vera?
Quem? A Verinha Porra-Louca? É claro que conheço desde o século passado, quando o Facebook nem havia nascido. Trabalhamos juntos no jornal O SOL. O "Porra Louca" acabou incorporado à sua identidade, pelo menos entre os amigos, porque desde aquela época, ela exercitava com prazer seu direito de criticar, sem qualquer autocensura. Era absolutamente espontânea, aberta, alegre, irreverente. Dizia tudo o que pensava com invejável liberdade. Nesse contexto, o "Porra Louca" era uma manifestação de carinho e de admiração de todos nós.
O facebook parece admitir que eu possa conhecê-la, mas na sugestão que a seguir me dá, faz uma ressalva - a gente nunca sabe - com um "se" no condicional:
- Se você conhece Vera, envie uma solicitação de amizade ou uma mensagem...
A amizade
O que o facebook não compreende é que não adianta, é inútil enviar qualquer mensagem, porque não haverá mais resposta. Vera Sastre, a nossa Vera, a Verinha Porra Louca, foi embora, na última quinta-feira, deixando no Facebook 165 amigos, dois gatos na foto de capa - um negro e outro marronzinho - e uma série de textos deliciosos no arquivo "A Cozinha de Notícias". Deixou também muitas saudades, além de sua filha Cândida e do documentário O Sol - Caminhando contra o vento, dirigido por Tetê Moraes e Martha Alencar, no qual Verinha foi personagem.
Não fui ao sepultamento no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, porque só tomei conhecimento de sua morte à noite, voltando da universidade, quando li a notícia publicada no Globo sob o título: OBITUÁRIO. VERA SASTRE, JORNALISTA DO 'SOL' E DA BOEMIA DO LEBLON.
A notícia informa que Vera nasceu em janeiro de 1945, em Laranjeiras, no Rio, e que passou grande parte de sua vida no Leblon, onde frequentava a Cobal com outros boêmios do bairro como o jornalista Tarso de Castro, com quem trabalhou em vários projetos editoriais. Além do SOL, Verinha foi repórter do Última Hora e, depois, passou por várias redações: Tribuna da Imprensa, Manchete, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Veja, Contigo, Caras e O Globo.
Por isso, entre os seus amigos há muitos jornalistas, vários atores, músicos, gente de teatro e cinema e produtores culturais, entre os quais Ana Arruda Callado, Martha Alencar, Elaina Daher, Geísa Teixeira Melo, João Rodolfo Prado, Thereza Christina Pereira Jorge, Iná Meirelles, Celso Barata, Cláudio Jaguaribe, Léa Penteado, Sérgio Caldieri, Joyce Pascowitch, André Mota Lima, Luis Carlos Maciel, Noilton Nunes, Ana Maria Magalhães, Walcyr Carrasco, Tânia Malheiros e tantos outros.
Verinha, atacada por um câncer, trabalhou como free-lancer até quando pôde. Há menos de um ano, em novembro do ano passado, me procurou porque queria contatos em Manaus para fazer uma matéria. Ela soube, não sei por quais canais, que havia um conhecido empresário no Amazonas que traficava com armas e estava metido com contrabando e outros negócios escusos. Creio que a doença não deixou que a entrevista fosse feita.
- Riba, só quero fazer uma perguntinha pra ele. Basta fazer a pergunta, lembra?
Faz a pergunta
Lembro sim. Já contei essa história em outro lugar. Resumo aqui. A Vera se referiu a uma entrevista coletiva de Nelson Rockefeller, que veio ao Rio de Janeiro para falar sobre economia e sobre as relações do Brasil com os Estados Unidos. O editor de "Problemas Brasileiros", Otto Maria Carpeaux, sugeriu que eu tentasse alguma declaração exclusiva para O SOL. Manifestei à Verinha preocupação por causa da precariedade do meu inglês. Ela me aconselhou:
- Faz a pergunta e o Rockefeller que se vire.
Dito e feito. Depois da coletiva, encarei o banqueiro americano e mandei ver no meu inglês macarrônico:
- What do you think about Vietnam War?
Se ele articulasse uma resposta densa, eu estaria perdido. Felizmente, o gringo abanou os braços dizendo algo que eu podia entender muito bem:
- No! No! No!
No dia seguinte, a manchete do SOL foi algo assim como: ROCKEFELLER SE RECUSA A FALAR SOBRE A GUERRA DO VIETNAME.
Verinha insistia que, numa entrevista, o fundamental é fazer a pergunta. Uma vez formulada, a coisa anda sozinha. Ela não teve tempo de formular a sua pergunta para o mercador de armas do Amazonas.
Estivemos juntos, pelo menos duas vezes, no cemitério. Uma delas foi para dar adeus ao poeta Félix de Athayde, que morreu em 1995, aos 63 anos. Havíamos trabalhado com ele nos jornais O Paiz e Correio da Manhã, com ele fizemos amizade, admirávamos sua poesia, ele que havia cantado a luz de Olinda, sua cidade natal, e "a Pátria que me pariu".
Na nossa geração, quando tínhamos vinte anos, todos nós éramos imortais, ninguém morria. Agora, semana sim, outra também, um amigo se despede. Se o facebook permitisse, eu faria uma pergunta para a Verinha Porra Louca, ela que se vire para responder:
- Tem certeza de que já era hora de partir, levando com você pedacinhos de todos nós? Ou será que nós, que aqui ficamos, é que estamos retardando nossa partida?