(Enviado de Paris) - De onde vem aquele biquinho que os franceses fazem quando pronunciam o som da letra "u"? Do latim não é, embora Cesar, ao conquistar o mundo, por estar em todas, se achasse o "u" do burugudu. Mas estava equivocado, pois os exércitos romanos jamais chegaram ao Amazonas, que se encontrava fortemente protegido pelas gloto-muralhas de Urucurituba. Não que fosse difícil conquistá-la militarmente. Não! Mas o general seria derrotado na hora em que, depois de escrever "De bello Urucuritubensis", fosse ler a palavra Urucurituba com o biquinho francês. Ele entortaria caras e bocas até o "u" fazer bico.
Isso se os romanos fizessem biquinho, mas o biquinho do "u", definitivamente, não pertence ao latim e, por isso, Cesar não precisava chamar urubu de meu louro. Talvez o biquinho seja herança do idioma gaulês, uma língua céltica já extinta, que deixou marcas presentes ainda hoje no francês moderno: nomes de plantas, toponímias, denominações de armas de guerra, como lança, e de alguns instrumentos agrícolas, além de traços fonéticos. O gaulês está para o francês assim como o tupi para o português. Ainda se sabe muito pouco sobre a história dessas línguas, cujas memórias foram, em grande parte, apagadas. Trata-se de um patrimônio invisível.
Por isso, achei que essa questão, tão intrigante, seria finalmente esclarecida, agora, nos dias 15 e 16 de setembro. É que o tema central da 29ª edição das Jornadas Europeias do Patrimônio, que se realizam nesta data, na França, será justamente o patrimônio escondido. No entanto, me enganei, ninguém vai discutir nem o biquinho do "u", nem qualquer substrato da língua francesa, mesmo considerando que não existe nada mais camuflado do que o patrimônio linguístico.
Acontece que a definição que os organizadores das Jornadas estão dando para patrimônio escondido encobre outras realidades, relacionadas aos tesouros patrimoniais ignorados detrás das portas, no fundo dos corredores, debaixo da terra ou até quando nossos olhos se voltam para o céu. Envolve o patrimônio arqueológico e pré-histórico de objetos enterrados, o patrimônio militar como as baionetas dos campos de batalha de Verdun ou as baterias da Normandia, as catacumbas, a rede de esgotos e o patrimônio astronômico.
Patrimônio escondido seria, então, tudo aquilo que fica longe dos olhos da nossa prática cotidiana. Além dos já citados, são mencionados os campanários das igrejas, os vitrais, os relógios, as galerias, inclusive as peças de museus que ficam guardadas nas reservas técnicas e nunca são mostradas, ou os livros antigos e as fotografias que normalmente ninguém vê. Agora, durante as Jornadas, os arquivos e bibliotecas da França abrem suas portas, para quem quiser ver o que não é exposto e nunca aparece.
A avaliação da ministra da Cultura e da Comunicação da França, Aurélie Filippetti, chama a atenção para o patrimônio no dia-a-dia, no feijão-com-arroz:
- As Jornadas Europeias do Patrimônio dão continuidade a essa bela missão que, mais do que uma lição histórica, é uma lição de vida: aprender a olhar, de outra forma, apaixonadamente, inteligentemente, o quadro da nossa vida cotidiana.
As Jornadas, criadas em 1984 no governo Mitterrand, são realizadas sempre na terceira semana de setembro. Elas renovaram a vida cultural da França, permitindo que esse país discuta questões centrais relacionadas ao patrimônio. Na Jornada do ano passado, em apenas dois dias, 12 milhões de visitantes percorreram museus, bibliotecas, arquivos, centros culturais, exposições, auditórios, debates, quase tudo com entrada gratuita.
Na próxima semana, os franceses vão até mesmo discutir o patrimônio imaterial: as formas de fazer as coisas, as técnicas, as práticas, as experiências, as profissões. Mas lamentavelmente, a língua ficou de fora como objeto desse olhar. A língua é um patrimônio tão escondido, mas tão escondido, que não foi focada nem pelo próprio patrimônio escondido. Não será ainda desta vez que o biquinho do "u" merecerá uma explicação.
Mas em outro evento na França, a língua será, pelo menos, lembrada. Logo após as Jornadas vai se realizar um seminário internacional, em Avignon, no sul da França, com pesquisadores franceses e brasileiros da Université d'Avignon e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, que estão vinculados ao Projeto Saint Hilaire.
Desse evento, sairá um livro bilíngue "Memória e Novos Patrimônios", coordenado por Cécile Tardy (França) e Vera Dodebei (Brasil) que contará, entre outros, com artigo sobre o uso da internet pelos índios no Brasil. E aí sim, haverá um pequeno espaço para as línguas indígenas e sua influência sobre o português.
O interesse dos franceses pelas línguas indígenas, especialmente por aquelas do tronco tupi, pode ser medido também através da documentação de Jean Ferdinand Denis, que viveu quinze anos no Brasil, de 1816 a 1831 e deixou muitos registros escritos que se encontram na Biblioteca Saint-Geneviève, em Paris. É essa papelada que agora estamos buscando. Quem sabe, ela poderá nos ajudar a entender um outro "u", amazônico, presente na expressão "cabuco da pupa da canua"?