"Se o mundo é um vale de lágrimas, o Haiti é,certamente, o cantinho mais irrigado desse vale"
(René Depestre. Alléluia pour une femme jardin.1981).
Eles fizeram uma longa fila e foram embarcando, um a um, no navio chamado “Sagrado Coração”, que zarpou de Tabatinga (AM) para Manaus neste sábado, 21 de janeiro. Os passageiros, na realidade, não sabiam direito de quem era aquele coração: de Jesus ou de Maria? Desconfiavam que era de Maria. Com todo o respeito ao calvário do filho, só um coração sangrado de mãe - onde sempre cabe mais um - pode abrigar mais de 400 haitianos com tantos sonhos, sofrimentos, dor, medo.
O medo dentro do barco-coração que descia o rio Solimões era “o medo da fatalidade que sempre acompanhou o Haiti”. Quem diz isso é Fred Spinoza, um amigo peruano de nascimento, chileno de coração, professor de espanhol em Tabatinga, que testemunhou a passagem dramática dos haitianos pelo Alto Solimões, ameaçados de se tornarem um boat people – refugiados que ninguém quer receber e que, sem chão onde pisar, transformam o barco em sua nova pátria e ficam, à deriva, vivendo na terceira margem do rio.
Fred, poeta como qualquer chileno ou peruano - todo chileno tem um pouco de Neruda e todo peruano de César Vallejo – me enviou trechos do Navio Negreiro de Castro Alves para ilustrar o cenário daqueles haitianos amontoados em redes armadas umas sobre as outras. No domingo passado, ele me cantou o roteiro do motor da linha: “O Sagrado Coração, que saiu ontem daqui, deve passar hoje por Fonte Boa, amanhã por Coari e chegar no Roadway, em Manaus, na terça, dia 24”. Manifestou preocupação quanto à recepção aos hermanos haitianos em Manaus.
Sangrado Coração
Manaus, nascida de um parto sangrento, é filha de um crime e de um roubo, cometidos em 1669 por militares portugueses. Tropas armadas invadiram e saquearam a aldeia dos Manaú, mataram muitos índios, escravizaram outros e usurparam suas terras. Seu comandante, Francisco da Mota Falcão, construiu ali, bem em cima do cemitério indígena, o Forte de São José do Rio Negro, usando a mão de obra de índios escravizados e, como matéria prima, o barro das urnas funerárias quebradas e violadas. Portanto, foi a pilhagem colonial que pariu Manaus.
Por isso, talvez, Manaus sabe ser impiedosa, cruel. Mas sabe também ser generosa, como mostra o outro lado de sua história. Muitas vítimas do terremoto de Lisboa, de 1755, foram acolhidas pela cidade já mestiça, que lhes deu teto, trabalho, comida. Na época da borracha, entre 1877 e 1914, mais de 500 mil nordestinos, fugindo da seca, migraram para a Amazônia, muitos deles armaram suas redes aqui. Com eles chegaram sírios, libaneses, espanhóis, judeus, árabes, palestinos, japoneses, espanhóis e nova leva pacífica de portugueses. Recentemente, a Zona Franca trouxe os sulistas.
Dessa forma, a cidade foi se construindo sobre os alicerces da diversidade, com trabalho, sangue e suor dos estrangeiros que souberam muito bem se integrar à sociedade de base índia. Era tudo gente de paz. Como o portuga José Ventura - o Comandante Ventura - que em 1961 morreu para nos salvar. Manaus não tinha como combater incêndios. Ele criou em 1952 o Corpo de Bombeiros Voluntários. Faleceu quando combatia um incêndio que consumia vorazmente a periferia da cidade, como nos lembra pesquisa histórica realizada por Roberto Mendonça.
Outro portuga que ama a cidade e ajudou a construí-la é o dono do bar da Bica, o Armando, o mais caboco de todos os portugas, que está nesse momento, aos 75 anos, numa UTI de um hospital manauara com uma infecção pulmonar. Armando e o comandante Ventura fizeram mais por Manaus do que o belicoso Francisco da Mota Falcão, Pedro Teixeira e todo o exército colonial. Jornais lusos editados nessa época no Amazonas, estudados pelo historiador Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, estão nos revelando muito sobre essa migração.
Água no feijão
Os haitianos que chegaram agora vieram também em missão de paz, de trabalho, mas foram recebidos à bala com um grito de “nós não queremos vocês aqui”. O governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), filho de imigrante palestino que se mudou para Manaus em 1968, debochou, sugerindo que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Pra puxar o saco do governador, a colunista social Mazé Mourão, que é "imortal" da Academia Amazonense de Letras, atacou os mortais haitianos, chamando-os de “abusados”. Num texto boçal, reclamou que eles estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial e “como não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada”. Preocupada exclusivamente com o quintal de sua casa, sugere: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas?”. Conclui: “Sorry, sorry e sorry, o Haiti definitivamente não é aqui”.
Que me perdoem os ouvidos pudibundos, mas esse é o lado escroto de Manaus, o lado “farinha pouca meu pirão primeiro”. A colunista social alega que “se nós não conseguimos resolver os nossos problemas, que dirá de quem chega e toma de assalto esta Manaus de Mil Contrastes”. É como se ela dissesse, em 1919, ao Comandante Ventura e às centenas de portugas que com ele vieram: “Não podemos receber vocês, porque temos muitos problemas, não temos sequer um Corpo de Bombeiros Municipais” ...E olha que nesse momento naufragava a economia da borracha, com centenas de mendigos espalhados pelas ruas da capital.
Felizmente, o outro lado, generoso e solidário, o lado “água no feijão que chegou mais um” se manifestou imediatamente. Dezenas de leitores ocuparam as redes sociais apoiando artigos que se solidarizaram com os haitianos e lhes deram as boas-vindas. Três deles merecem destaque.
Allan Gomes, com base no processo histórico da Amazônia, sustentou que “a imigração haitiana não deve ser vista como um problema, mas como parte da solução”. Da mesma forma que Manaus não podia apagar um incêndio porque carecia de bombeiros e foi salva pela migração lusa, assim também os haitianos podem contribuir para melhorar a cidade, se formos capazes de organizar e planejar a estadia deles aqui.
Alberto Jorge, coordenador geral da CARMA – Coordenação Amazônica da Religião de Matriz Africana e Ameríndia – confessa que teve ânsias de vomitar quando leu o texto de Mazé “que destila ódio e desprezo,é preconceituoso, asqueroso em todos os sentidos”. E Ismael Benigno considerou que a reação dela mais parece “um chilique da socialite Narcisa Tamborindeguy contra os pobres do que uma tentativa de entender o problema que ainda vamos ter”.
De qualquer forma, se o artigo tem algum mérito é o de desencadear um debate, permitindo revelar a xenofobia e a intolerância que trazemos dentro de todos nós, mas também a solidariedade com os refugiados. Quem sofreu o exílio, por razões políticas, econômicas ou sociais, sabe a importância dessa acolhida. É evidente que a questão é complexa, é claro que precisamos organizar uma intervenção de forma mais planejada, mas sem preconceitos, como o de um leitor de Mazé Mourão, que se referiu depreciativamente à religião dos haitianos e à magia negra.
Se a colunista social não pedir desculpas, publicamente, nós, os que ficamos chocados com seu texto - sorry, sorry, sorry - acamparemos com os haitianos no quintal da casa dela. Faremos um trabalho de magia negra para transformá-la em um ser inteligente, sensível e solidário. Se bem que suspeito não existir magia capaz de dar jeito nisso. Mas a gente tenta.
P.S.1 - O poeta haitiano René Depestre escreveu, entre outros, um belo livro – “Aleluia para uma Mulher-Jardim”, editado em português em 1988. Não tive acesso à edição brasileira, mas à edição francesa, de 1981, de onde traduzi a frase, diz: “Si le monde est une vallée de larmes, Haiti est le coin le mieux arrosé de la vallée” (pg. 40)
P.S. 2 - Meu amigo Fernando mantém um blog http://assazatroz.blogspot.com/, que reproduz o taquiprati. Aproveita o AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons para fazer umas ilustrações porretas. O leitor que nos acompanha já o conhece. Inspirado na que ele criou para esse artigo, incorporamos a que vai acima.
P.S.3 - A Universidade Federal do Amazonas resolveu mobilizar seus professores e alunos para, entre outras atividades, ensinar português aos haitianos, conforme pode ser lido nos comentários abaixo da ELISA que tiveram de ser desdobrados em 9 blocos, devido à restrição de número de caracteres. Agora, acabamos de receber um excelente artigo de um professor da UFAM, Benedito Carvalho. Para não picotá-lo, incluímos aqui no corpo da matéria,conforme já fizemos anteriormente com texto do poeta Thiago de Mello.
OS ESTABELECIDOS E OS HAITIANOS EM MANAUS
Benedito Carvalho Filho, Sociólogo, professor da UFAM
Um acontecimento recente vem sendo objeto de comentários na sociedade amazonense, como tem noticiado a imprensa local: a chegada dos haitianos para o Amazonas, que vieram em missão de paz, fugindo da miséria e da violência.
A reação não tardou. O governador do Amazonas, Omar Aziz (PSD), filho de um imigrante palestino que se mudou para Manaus em 1968, sugeriu que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Uma colunista social do local foi mais longe e atacou os haitianos, chamando-os de “abusados”. Como observou o jornalista Ribamar Bessa Freire na coluna que escreve para um jornal local, o texto da jornalista foi boçal e preconceituoso. Ela reclama que eles estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial e “como não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada”. Preocupada exclusivamente com o quintal de sua casa, sugere: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas?
No domingo, dia 29 de janeiro, o texto do jornalista amazonense, que reside no Rio de Janeiro, deu o que falar na cidade. Diversos comentários apareceram na rede virtual, alguns tecendo críticas à vinda dos haitianos, outros apoiando o direito desse novo imigrante se estabelecer na cidade. A polêmica continua.
Como sociólogo, os ossos do ofício me fez desconfiar de certas ideias que apareceram nos comentários, quer na internet, quer nas conversas informais que tenho ouvido em vários cantos, inclusive naqueles onde circulam pessoas mais informadas. Vejamos algumas:
No imaginário de muita gente é possível perceber algumas ambigüidades muito interessantes de observar. Para alguns a cidade de Manaus aparece como uma ilha de prosperidade, onde o povo está empregado, morando bem, com todos os serviços disponíveis pelo Estado. A modernidade, o progresso está associado à chegada da Zona Franca, alimentada por uma propaganda maciça feita pelos governantes e assimilada pelos amazonenses e os forasteiros que por aqui chegam.
Ela é tão forte que os empresários gostariam de perenizar o enclave, como se o capitalismo trabalhasse conforme os seus desejos; como se tivessem poder para determinar a lógica do capital cada vez mais financeirizado e volúvel.
Assim, os haitianos teriam vindo para Manaus abalar esse sossego nessa ilha de prosperidade. Ah, não só esse povo caribenho que lutou bravamente pela sua independência (o Haiti foi o primeiro estado latino-americano independente), mas os intrusos paraenses que hoje constituem uma parcela significativa da população de Manaus e são objeto de gracejos preconceituosos, principalmente os mais pobres.
A cidade, portanto, tem os seus estabelecidos e os outsiders, conforme a denominação usada pelo sociólogo Norberto Elias no livro chamado “Os Estabelecidos e os outsides”, onde ele nos mostra como os da “comunidade” (os estabelecidos), lançando mão daquilo que Alfred Schutz chamou de fundo de conhecimento à mão (a sabedoria do senso comum), encaram os que vêm de fora (os estrangeiros, sempre vistos como os que vêm sujar o pedaço.
Não era assim que os nazistas olhavam os judeus? Não foi em nome dos do pedaço que mataram milhões os não estabelecidos? Não é assim que vem sendo tratadas as populações pobres na periferia das grandes cidades brasileiras, conforme podemos perceber nos últimos acontecimentos, como a expulsão de moradores pobres de São José dos Campos, em São Paulo? O que tem sido os chamados processos de gentrificação, “revitalização do centro” senão a expulsão dos indesejados, os sujos do pedaço, os farrapos humanos, enfim os sem nada?
Quem são esses negros intrusos que estão tomando conta dos empregos nas fábricas do Distrito Industrial, que não sabem falar a nossa língua, trabalham caladinhos e até passam da hora sem cobrar nada, como esbraveja a raivosa colunista local incomodada com a chegada dos novos estranhos?
Como se os estabelecidos, os proletários que se matam trabalhando nas fábricas da Zona Franca fossem trabalhadores conscientes de seus direitos, reivindicando melhores salários e se organizando sindicalmente.
Se a colunista social lesse o livro da psicóloga Rosangela Dutra de Moraes, da Universidade Federal do Amazonas, chamado Prazer e Sofrimento com automação, onde os trabalhadores e trabalhadoras expõem as suas condições de trabalho no Distrito Industrial de Manaus, veria que não somente os haitianos passam hora trabalhando sem cobrar nada, nem são os únicos caladinhos. Se a mesma colunista procurasse ser mais jornalista e se sujeitasse menos ao fundo de conhecimento à mão, certamente não emitira um comentário tão preconceituoso como esse, onde acaba jogando trabalhador contra trabalhador.
Sua sábia sugestão está condensada nessa pergunta: “Por que os haitianos não ficam em Tabatinga ou vão povoar outros municípios do Amazonas? Ou seja, sem ouvi-los, sem compreender o que está ocorrendo, a solução é enxotar os haitianos, que além de pobres, são negros, dois ingredientes que não cola bem na imagem que essa senhora faz do pedaço (ou do pedaço que ela imagina).
O governador tem a mesma solução, indignado certamente com a permissão do governo federal em permitir a entrada dos haitianos no Brasil: que o governo federal os abrigasse em Brasília, “em apartamentos de deputados federais”, conforme matéria publicada pela Folha de São Paulo, assinada pela correspondente Kátia Brasil.
Esse que, no passado, foi um outsiders, filho de um imigrante palestino, pelo menos não fez como o prefeito, esse estabelecido, que diante de uma moradora desesperada com a possível perda de sua moradia falou um pérola que ganhou destaque nacional e internacional: que morra, morra!Alguma semelhança com a chamada solução final nazista? A nossa classe dominante local, na sua boçalidade, surpreende. Às vezes parece surreal!
A questão dos haitianos está encoberta por um problema maior, além da xenofobia manifesta. Talvez o que não se quer discutir é a nossa realidade, ou seja, as várias Manaus que os detentores do poder, político, mediático local querem esconder. Os caribenhos que estão vindo para Manaus vão fazer parte (se o estabelecidos deixarem) da cultura local.
Uma cidade que possuíum dos piores IDH (Indice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, e uma imensa população excluída dos benefícios da modernidade não tem o direito de se ufanar afastando os pobres, sejam eles nacionais ou internacionais. Aqui temos vários Haitis não resolvidos, o que nos faz recordar a pequena frase da música de Caetano: o Haiti é aqui. Só que queremos esconder esse mundo haitiano que temos dentro de nós. Foi com essa carga de preconceitos e em nome da pureza branca, de cristão civilizado, que foram dizimadas as populações indígenas, até hoje marcadas pelo preconceito por aqueles que se acham donos do pedaço. Quem ler os clássicos que estudaram a sociedade brasileira vão descobrir quais foram as populações mais exploradas de nossa história.
Temos nesse país uma classe dominante escravagista. A manifestação de seus preconceitos de vez em quando emerge não só naquilo que Freud chamava de atos falhos, mas diretamente através de gestos, comportamentos e falas, como da colunista social como do governador. A mentalidade escravagista não morreu, o conflito permanece, pois esse homem e mulher que parecem tão cordiais, no fundo, escondem um grande ódio do estranho, seja dos haitianos que estão chegando seja dos antigos estabelecidos, os índios, apeados de suas terras ao longo da história.
Bem vindos povo do Haiti e obrigado por terem iniciado a luta pela descolonização nessa imensa América Latina.