No apagar das luzes de 2011, a Câmara dos Deputados aprovou a Lei da Palmada, que proíbe os pais ou responsáveis de aplicarem castigos físicos nos filhos, o que vai alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O assunto, muito polêmico, tomou conta da mídia e das redes sociais. Discutiu-se a interferência do Estado no espaço familiar. Na ocasião, pensei até em dar também os meus pitacos sobre o uso de castigos corporais no processo educativo, mas decidi esperar que a poeira baixasse.
A poeira está baixando. A mãe desse locutor que vos fala usou, na educação dos seus treze filhos, a surra, o que não constitui um exemplo a seguir, embora não tenha deixado - creio - sequelas e traumas. Um amigo meu, americano, economista, ficou horrorizado quando eu lhe contei que, por ser danado e briguento, peguei muita porrada em casa. Depois que conheceu minha mãe, ele filosofou, generalizando talvez apressadamente:
- Mãe brasileira pode dar palmada, porque esse não é o único contacto físico que tem com os filhos, ela dá também carinho, o que não é o caso da mãe americana.
Acho que podia ser interessante a gente se perguntar de onde surgiu essa ideia de que é recomendável a punição física contra as crianças para ensinar e para corrigir a desobediência e o mau comportamento. Não veio dos índios e dos africanos, mas dos europeus, que professavam a “paudagogia” como mostra a documentação histórica produzida pelos primeiros jesuítas, para quem era impossível educar, sem punir severamente o erro. Isso gerou conflito entre os índios que pensavam diferentemente.
Os índios jamais castigavam, eram contra a porrada e defendiam seu ponto de vista com um discurso que construíram sobre a questão. No século XVI, o princípio pedagógico indígena mais criticado foi justamente aquele detectado pelo jesuíta, Fernão Cardim, quando ele, surpreso, constatou que “os índios amam os filhos extraordinariamente”, mas lamentou porque “nenhum gênero de castigo têm para os filhos, nem há pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filho”.
Outros cronistas confirmaram comportamento similar em diferentes aldeias Tupinambá do litoral, como ocorreu com Pero de Magalhães Gandavo, provedor da Fazenda na Bahia, em 1565, para quem os índios “criam seus filhos viciosamente, sem nenhuma maneira de castigo”.
Esse tipo de relação, na qual as crianças são socializadas sem repressão, é observável ainda hoje, no século XXI, nas seis aldeias Guarani do Rio de Janeiro, localizadas em Angra dos Reis, Parati e Niterói, com as quais tenho contato há mais de vinte anos. Nos cursos que ministro para formação de professores bilíngues, vejo as mães indígenas cochichando com seus filhos, tratando tudo na conversa. O comportamento atual dos Guarani pode ser resumido no depoimento de uma jovem guarani mbyá, mãe de três filhos: “Mbyá puro não bate na criança. Nunca. Não precisa bater nem brigar, só falar” .
No entanto, a pedagogia européia da época, acostumada com o uso da palmatória e com outras formas de violência física, considerou a ausência de castigo como uma “omissão”’, um “atraso”, um “vício”, porque não corrigia o erro e, por isso, obstruía o processo de aprendizagem. Aos olhos do colonizador, tratava-se de negligência e falta de princípios pedagógicos, e não do resultado de uma reflexão coletiva sobre a natureza do processo de aprendizagem que devia as basear no diálogo.
Durante todo o período colonial, os índios foram submetidos a um choque cultural, produzido pelo embate entre práticas e concepções pedagógicas bastante diferenciadas. De um lado, os princípios de uma sociedade, cuja educação não dependia da escola, da escrita e de castigos físicos. De outro, as normas e regras de uma sociedade letrada, dependente da escola e da palmatória que – acreditava-se – corrigia erros e, portanto, educava. Esse choque ocorreu em diferentes regiões do país, com consequências trágicas para os índios e suas culturas.
Um missionário jesuíta, João Daniel, testemunhou no século XVIII a resistência das índias do Pará, que teimavam em usar, de forma exclusiva, sua língua materna, recusando-se a migrar para qualquer outra língua. O padre, responsável pela escola, mandou dar-lhes “palmatoadas”, para que mudassem de comportamento, mas elas “antes se deixavam dar até lhes inchar as mãos e arrebentar o sangue”.
Gandavo registrou que quando as crianças eram punidas na escola, os pais ficavam irritados, “se melindravam e ressentiam”. Por isso, o índice de evasão escolar era altíssimo, conforme observou um superior jesuíta do século XVI, Luiz da Grã, para quem os castigos esvaziavam as escolas, pois “só o ver dar uma palmatoada a um dos mamelucos basta para fugirem”.
Desde os primeiros momentos, e ao longo de todo o período colonial, a documentação registra fugas constantes e frequentes de índios, que eram aprisionados, amarrados e forçados a voltar para a escola, como sinaliza a carta de Pero Correia, de 1554:
“Y quando alguno es perezoso y no quiere venir a la escuela, el hermano lo manda buscar por los otros, los quales lo traen preso...”.
Nos dias atuais, a proposta dos índios contra castigos físicos aplicados às crianças é vista com simpatia, e parece ser universalmente aceita por TODAS as correntes de pensamento dentro da pedagogia. Mas ninguém procurou os índios para reconhecer que eles estavam mais avançados, pelo menos nessa questão. Não seria demais dizer-lhes hoje: “Desculpem-nos, no século XVI, quem tinha razão eram vocês e não nós”. Se ninguém pediu desculpas, então peço eu. Agora.