CRÔNICAS

Corre, minha velha, que um deles já nos viu!

Em: 13 de Novembro de 2011 Visualizações: 23391
Corre, minha velha, que um deles já nos viu!

Dezembro de 1987. Chovia. Chuvinha fina e persistente que não intimidou o poeta e ex-ministro da Educação Abgar Renault, então com quase 90 anos. Ele saiu de casa com sua esposa, dona Ignez, para a solenidade de posse do filólogo Celso Cunha na Academia Brasileira de Letras (ABL) no centro do Rio de Janeiro. Passou antes na Maison de France, de onde podia ver automóveis, ônibus, caminhões e motos correndo velozmente na pista, buzinando, queimando óleo e soltando fumaça. Parecia até que os carros do mundo inteiro haviam combinado cruzar aquela esquina, naquela hora. 

O casal precisava atravessar a Av. Presidente Antonio Carlos. A calçada fervilhava de gente. Na correria das compras de natal, as pessoas se acotovelavam, com seus guarda-chuvas, ansiosas, esperando mudar o sinal. Durou uma eternidade, mas os carros, finalmente, deram uma trégua e pararam. A multidão avançou. No meio dela, Abguar arrastava os pés, ziguezagueando diante de um ônibus mais afoito que havia invadido metade da faixa de pedestres. Foi aí que o motorista, impaciente, deu várias aceleradas em ponto morto. O motor produziu um ronco ameaçador. O poeta gritou, então, para sua mulher:

- Corre, minha velha, que um deles já nos viu!

Esse é, hoje, o grande problema das cidades, porque na realidade não foi só um deles que nos viu. Todos eles já nos viram e procuram nos acertar. E no Brasil, eles são milhões. No ano passado, a frota de automóveis brasileiros era de 64.817.974 veículos, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), vinculado ao Ministério das Cidades. Considerando que anualmente são fabricados quase 5 milhões de carros, podemos estimar em 70.000.000 o total de veículos que entopem nossas ruas e que estão nos vendo.

Aquela rua que Abgar Renault, cantando, mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhantes para dona Ignez passar não nos pertence mais, não existe mais como espaço poético e muito menos como espaço público. As pessoas foram enxotadas das ruas, agora ocupadas por máquinas assassinas. Até as calçadas, que eram o último reduto dos pedestres, estão se transformando em vias por onde circulam irregularmente bicicletas, motos e às vezes até carros, que não tendo onde estacionar se aboletam no passeio público, dificultando a movimentação de pedestres. Ontem, um carro trafegando pela calçada quase me atropelou.

Nós não temos mais como fugir dos carros, que invadem nossa existência cotidiana e nos atacam diariamente. Nem as feras selvagens, nem os bichos da floresta constituem perigo semelhante ao dos carros nas cidades. As estatísticas são alarmantes. Em cinco anos, de 2005 a 2009, o número de mortos em acidentes de trânsito no Brasil alcançou a soma de 292.752.  Cerca de 200 pessoas morrem diariamente nas ruas do nosso país em acidentes de trânsito, sem contar as centenas de milhares de feridos graves. 

Os mortos na Guerra do Paraguai no século XIX foram insignificantes se compararmos com as vítimas da atual guerra do trânsito. A mortalidade no trânsito é o segundo maior problema de saúde pública do Brasil, competindo com a desnutrição, as doenças de coração e o câncer.

Esse modelo de transporte, provocador de mortes, de doenças, de um exército de estropiados e de inválidos, está esgotado. Engarrafamentos diários gigantescos, congestionamentos, horas e horas perdidas tentando ir de casa para o trabalho são evidências de que, com esse conceito de transporte, é impossível desatar o nó do trânsito. Não adianta alargar as avenidas, fazer viadutos, abrir novas pistas – porque elas serão todas ocupadas por carros, que não conseguirão circular livremente.

A falência do modelo fica ainda mais evidente quando sabemos que diariamente toneladas de gases poluentes são lançadas na atmosfera, envenenando o planeta. Numa entrevista que fiz com Glauber Rocha, em Paris, em 1973, quando era correspondente lá do semanário Opinião, ele abriu os braços em pleno Quartier Latin e como se fosse personagem de um dos seus filmes declamou em tom profético:

- Os russos já sabem como ir à lua. Os americanos também. Os chineses estão se preparando. O homem vai ter que se picar do planeta terra.

Efetivamente, se essa forma não for substituída por outra que planeje e gerencie o caos do trânsito em nossas cidades, que faça investimentos pesados em transportes públicos, o homem vai ter que deixar o planeta terra e se picar para outra galáxia, porque sequer poderá exercitar aqui seu direito constitucional de ir-e-vir.

Te cuida, leitor (a), eles já nos viram! E estão nos atacando! Vamos reagir?      

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14 Comentário(s)

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Paulo Bezerra (2) comentou:
19/11/2011
As autoridades sempre culpam a "imprudência" dos motoristas, como se fosse a única causa dos acidentes de trânsito. Mas, não justificam porque permitem a fabricação de carros que alcancem a velocidade de 220, 240 KM/hora. Se só é permitido 40 e no máximo 80 Km/hora. Será que é p/manter as indústrias da multa, dos radares, da propina, etc ?
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Paulo Bezerra (2) comentou:
19/11/2011
As autoridades sempre culpam a "imprudência" dos motoristas, como se fosse a única causa dos acidentes de trânsito. Mas, não justificam porque permitem a fabricação de carros que alcancem a velocidade de 220, 240 KM/hora. Se só é permitido 40 e no máximo 80 Km/hora. Será que é p/manter as indústrias da multa, dos radares, da propina, etc ?
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Luiza Medeiros comentou:
16/11/2011
Estou pessimista quanto a uma mudança para melhorar nosso trânsito caótico, assassino. Teremos que mudar pra outra galaxia! Valeu! Luiza.
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jose ricardo comentou:
16/11/2011
Aqui em brasília, ainda se respeita um pouquinho os transeuntes, que fazem sinal para atravessar na faixa mas só neste quesito porque no resto 90% dirige falando no celular.
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Dirce Mello (facebook) comentou:
13/11/2011
Milhares de carros trafegam nos finais de semana na estrada -Am 070, que liga Iranduba a Manacapuru. Com a inauguração da ponte Rio Negro, a balbúrdia é geral. Sem respeito a limites de velocidade e com ultrapassagens perigosas, a Am-)70 agora é conhecida como estrada da morte. Barbeiros" atravessam ponte Rio Negro e tornam Am - 070 a estrada da morte http://www.portaldoholanda.com/
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Dirce Mello comentou:
13/11/2011
Deveria haver um meio de controlar os excessos. Conheço família composta de seis pessoas morando na mesma casa e cada um tem um ou + carros. Ñ adianta fazer visdutos e passagem de nível o problema é muito, muito sério. Parabéns Babá. Vou lhe enviar um vídeo recente para vc ver os absurdos do transito.
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vania tadros comentou:
13/11/2011
EM MANAUS COM ESTE SOL FORTÍSSIMO EXISTE TRECHOS DA CIDADE TOTALMENTE DESCOBERTODE TRANSPORTE COLETIVO. SÃO TRECHOS LONGOS. QUEM MORA NA VISCONDE DE PORTO ALEGRE E PRECISA IR A ALGUM CENTRO MÉDICO NO BOULEVARD ALVARO MAIA TEM QUE IR A PÉ, DOENTE E NESTE CALOR SEM VENTO.
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Paulo Vieira (1) comentou:
13/11/2011
No ano passado eu estava no meu carro no trânsito engarrafado da Av. Djalma Batista no final da manhã de uma sexta-feira. Ouvindo o rádio, coincidentemente, o presidente da Federação Nacional de Veículos Automotores estava sendo entrevistado e comemorava o recorde de vendas de veículos no Brasil naquele ano. O repórter perguntou ao entrevistado se aquele recorde de vendas não era uma afronta ao transporte público de massa como solução de mobilidade urbana no país.
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Paulo Vieira (2) comentou:
13/11/2011
A resposta do empresário: A INDUSTRIA NACIONAL DE VEÍCULOS AUTOMOTORES RECOLHE AOS COFRES DO GOVERNO OS IMPOSTOS, DECORRENTES DA VENDA DE VEÍCULOS, QUE SERIAM SUFICIENTES PARA DAR AO PAÍS, UM DOS MELHORES SISTEMAS DE TRANSPORTE PÚBLICO DO PLANETA.
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Paulo Vieira comentou:
13/11/2011
No ano passado eu estava no meu carro no trânsito engarrafado da Av. Djalma Batista no final da manhã de uma sexta-feira. Ouvindo o rádio, coincidentemente, o presidente da Federação Nacional de Veículos Automotores estava sendo entrevistado e comemorava o recorde de vendas de veículos no Brasil naquele ano. O repórter perguntou ao entrevistado se aquele recorde de vendas não era uma afronta ao transporte público de massa como solução de mobilidade urbana no país. Sua resposta: A INDUSTRIA N
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V.TADROS 2 comentou:
13/11/2011
ENTRAMOS EM ENGARRAFAMENTO ATÉ SÁBADO Á TARDE E DOMINGO. TODOS SAEM EM CARROS DIFERENTES DAS MESMAS CASAS AO MESMO TEMPO. PARA A MINHA NETA IR DE ADRIANOPOLIS AO CENTRO ONDE É A SUA ESCOLA LEVA 1 HORA PARA IR E OUTRA HORA PARA VOLTAR. SE CHOVE OS SINALEIROS PIFAM E DEMORA MAIS. CHEGA EM CASA DETONADA,
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vania tadroS comentou:
13/11/2011
ESSA SITUAÇÃO É SERÍSSIMA E NÃO VEJO SAÍADA. EM MANAUS COMPRA-SE CARRO A PARTIR 100O,00 DE ENTRADA. EU ACHO QUE AS PESSOAS QUE TENHAM ESSE RECURSO TÊM O DIREITO DE ADQUÍ-LO. MANAUS É QUENTE, O TRANSPOSTE COLETIVO É INSUPORTÁVEL DESDE ADMINISTRAÇÕES PASSADAS O SOÇ UM TERROR. TODOS SONHO COM O CARRO PRÓPRIO.
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Paulo Bezerra comentou:
12/11/2011
Existem mais carros no mundo do que pessoas. As áreas utilizadas por veículos (ruas, garagens, viadutos, etc) é superior as áreas destinadas a moradia. A Economia do mundo é movida a derivados do petróleo. Enfim, o mundo é dos automóveis. Nós somos apenas o acessório, o ator coadjuvante. Esta é a nossa triste realidade. VIVA O AUTOMÓVEL, MORRAM AS PESSOAS ! !.
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Manoel Paiva comentou:
12/11/2011
Parabéns Babá pelo tema que incomoda a todos nós, pois retrata a prioridade que as autoridades deram ao transporte individual em detrimento às pessoas e ao transporte público de passageiros. Forte abraço!
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