Duas cidades - Ijuí (RS) e Dourados (MS) - foram palco de recentes presepadas que até o diabo duvida e nem Deus perdoa. Seus moradores não mereciam a vergonha pela qual passaram. Por sorte, conheço ambas, habitadas por gente fina, cordial e hospitaleira. De um lado, Ijuí que tem 80 mil habitantes, um museu antropológico decente, uma boa universidade - UNIJUI, e um diário – o Jornal da Manhã. De outro, Dourados com 200 mil habitantes, uma universidade federal – a UFGD, e um jornal - O Progresso.
O Jornal da Manhã exibe legítimo orgulho por seu filho ilustre, o futebolista brasileiro Carlos Caetano Bledorn Verri, mais conhecido como Dunga. Já O Progresso tem motivos de sobra para enaltecer a cantora Vera Capilé, que nasceu em Dourados numa família de seresteiros, com quem aprendeu a tocar piano, acordeom, viola de cocho, bruaca, pandeiro, adufo, ganzá e o que mais se apresentar.
Os dois jornais, no entanto, por ignorância ou interesse, se envergonham de fatos históricos dos quais deviam se orgulhar. O Jornal da Manhã não quer assumir, por exemplo, em suas páginas coloridas, que a região foi, durante séculos, compartilhada por Guarani, Kaingang e Charrúa, senhores do território banhado por um rio, cujo nome dado pelos índios - Ijuhy - significa, em língua guarani, rio de águas claras.
Quando se refere ao município como “terra das culturas diversificadas”, o Jornal da Manhã menciona apenas os colonizadores europeus, deixando de fora os africanos trazidos como escravos pelos espanhóis e portugueses. Registra, com justificada alegria, a chegada posterior de alemães, italianos, poloneses, austríacos, holandeses, suecos, russos, franceses, lituanos, ucranianos e árabes, mas omite, surpreeendemente, os índios que deram o nome à cidade, ou os trata apenas como “coisa de um passado remoto”.
A charge do Getúlio
Acontece que os índios de Ijui, embora expulsos de grande parte de seu território, não são peças do passado, estão cada dia mais vivos. A prova é o Coral Infantil Guarani Mbya da aldeia Koenju de São Miguel das Missões, que no final de maio cantou suas músicas no aniversário de 50 anos do Museu de Antropologia, quando houve também o lançamento do filme Bicicletas de Nhanderu, dirigido por dois índios – Patrícia e Ariel, do grupo Vídeo nas Aldeias. Da mesma forma, os velhos sábios Kaingang apresentaram seus mitos através do Grupo de Canto Kanhgág Kanhró, da Comunidade de Serrinha.
Não é essa, porém, a imagem dos índios - produtores de cultura e de saberes – que foi projetada pelo Jornal da Manhã, o diário de maior circulação no noroeste do Rio Grande do Sul, em cuja página editorial pontifica Getúlio, autor de uma charge publicada na terça-feira, dia 19/04/2011. Uma vergonha cometida no Dia do Índio, comemorado em plena Semana da Páscoa.
Nesse dia, a charge “O Coelhinho na Rodoviária” mostra um ônibus chegando na Estação de Ijuí. Na porta dianteira aberta, um coelho com um enorme ovo de páscoa, olha o cenário: índios bêbados caídos na sarjeta, índias maltrapilhas vendendo artesanato, com suas crianças deitadas num chão imundo, no meio do lixo. Getúlio, então, diz através da boca do coelho, que tapa o nariz: “Esse mau cheiro não é de chocolate!”. Morri de vergonha quando em recente visita a São Leopoldo, vi o desenho que me foi mostrado pela universitária Kaingang Eré Laisa, que estava indignada.
Nessa época do ano, famílias indígenas costumam vir à cidade “não somente para trocas econômicas, mas para trocas interculturais” como escreveu Dulci Matti, no boletim Kema do Museu Antropológico. É verdade que elas costumam pernoitar na Rodoviária ou acampam em terrenos baldios da cidade, em barracas de lona preta, sem qualquer infraestrutura. Por isso mesmo, Dulci Matti defende que as diversas instituições de Ijuí devem se articular para “garantir atenção e benefício aos índios, que também são filhos desta terra”.
Não é o que pensa o chargista, cuja mensagem reforça o preconceito contra os índios, tratados como “preguiçosos e fedorentos”. Getúlio é um exemplo vivo do fracasso da escola, uma fábrica de ignorantes, que não lhe ensinou quem são os índios. Ele certamente não deve ter visto as exposições do Museu Antropológico Diretor Pestana, com um acervo de quase 30.000 peças, inclusive de 134 sitios arqueológicos da região do Vale dos Sinos, nem participou das palestras, informando sobre a contribuição das culturas indígenas para a riqueza cultural e a formação histórica de Ijui.
Créu no réu
Outro exemplo do fracasso da escola é o advogado criminalista Isaac Duarte Barros, que escreve no jornal O Progresso, de Dourados, onde vomitou suas fantasias holywoodianas da década de 1940. Ele publicou um artigo em dezembro de 2008, intitulado “Índios e o retrocesso”, assegurando que os índios “se assenhoram das terras como verdadeiros vândalos, cobrando nelas os pedágios e matando passantes assim como faziam os ladrões assaltantes, emboscados nas estradas do passado”. Defendeu que os povos indigenas estão condenados a desaparecer, uma vez que “a civilização indígena não deu certo” e por isso “foi conquistada pela inteligência dos brancos”.
O coordenador regional do CIMI, Egon Heck, considerou o artigo do advogado como “afirmação de racismo explícito, de intencionalidade etnocida e genocida”, considerando que é na região de Dourados onde vive a maior população indígena do Estado e onde morrem mais índios por assassinato ou suicídio. Os povos Terena, Kaiowá e Guarani foram escorraçados de grande parte de suas terras, batizadas com nomes indigenas: Maracaju, Ponta Porã, Nioaque, Guaçu, Macaúba, Panambi, Itaum, Itaporã.
No período colonial, bandeirantes portugueses e colonos espanhóis andaram escravizando os índios. Depois da Guerra do Paraguai, em 1870, começou a nova onda migratória. Chegaram os paulistas e os gaúchos, fugindo da revolução federalista. Vieram sírios, libaneses, japoneses, paraguaios e toda essa mistura é o que caracteriza o povo de Dourados.
O que foi que Isaac aprendeu, desaprendeu ou não aprendeu no Curso de Direito que fez? No caso dele, o procurador da República Marco Antonio de Almeida, depois de receber denúncia dos índios, entrou com ação, processando-o. Ele foi condenado nessa semana pela Justiça Federal de Dourados a dois anos de reclusão pelo crime de preconceito contra os índios, numa decisão inédita em Mato Grosso do Sul. A sentença foi trocada por serviço prestado a alguma entidade.
É pouco. A sociedade brasileira, institucionalmente, devia fazer com Isaac aquilo que a Norma está fazendo com o Léo na novela “Insensato Coração”: fazê-lo pedir perdão aos índios pelo crime cometido. E isto porque o advogado do advogado, André Borges Neto, escolhido pela OAB-MS para defender Isaac, recorreu ao TRF-3 – Tribunal Regional Federal, argumentando que “não houve crime, o que houve foi o exercício prático de liberdade de expressão”. A OAB local teve o desplante de publicar nota considerando a sentença “injusta e arbitrária”.
Ou seja, se defende o direito que tem o criminalista Isaac para chamar os índios de “bugrada”, de “malandros e vadios". O procurador da República Marco Antonio declarou que Isaac de Barros teve oportunidade de se retratar, mas não o fez. Por isso, além dessa ação criminal, corre uma ação cível em que o Ministério Público pede indenização equivalente a um salário mínimo por cada indígena habitante no Estado de Mato Grosso do Sul.
De repente, pode ser altamente educativo para o país se Isaac continuar recorrendo até o STF, só para acompanharmos sua condenação final, com o voto do ministro Ayres Brito, que seguramente dará um creu no réu. Será educativo para as escolas brasileiras acompanharem esse processo, considerando a Lei 11.645 de 2008, que torna obrigatória a temática indígena em sala de aula. Quem sabe, assim, a gente consegue evitar a vergonha e o vexame causados pelos Getúlios e Isaaques da vida.
P.S. NOTA DO CIMI SUL DE 21 de setembro de 2016 relacionada ao tema.
Condenado por discriminação, jornal de Chapecó (SC) deverá pagar cursos e ceder espaço de publicação para indígenas por cinco anos 21/09/2016
Após ser condenado por danos morais coletivos contra a comunidade Kaingang da Terra Indígena (TI) Toldo Chimbangue, em Chapecó (SC), pela veiculação de materiais racistas e de incitação ao crime, o jornal O Diário do Iguaçu deverá pagar cursos de graduação e pós-graduação aos indígenas e deverá ceder, pelo período de cinco anos, espaço quinzenal para a comunidade indígena na publicação.
A importante e incomum decisão é, na verdade, fruto de um acordo firmado entre o jornal e os Kaingang, com o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF), após a condenação do veículo de imprensa, de um chargista e de um vereador pela Justiça Federal. O processo teve origem numa ação civil pública ingressada pelo MPF em 2002, em função de uma reportagem e de uma charge discriminatórias publicadas pelo diário contra os indígenas.
Julgado improcedente na primeira instância, o processo teve a decisão reformada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que condenou os réus ao pagamento de R$ 100 mil para a comunidade indígena como compensação pelos danos morais. Transcorridos doze anos desde a sentença, nenhum dos recursos interpostos pelos réus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao longo deste período foi admitido e o caso transitou em julgado.
Em abril de 2016, com a condenação definitiva, o MPF ajuizou uma ação para que os condenados pagassem a indenização – que, em valores atualizados, incluindo juros, honorários e multas legais, chegou a mais de R$ 850 mil.
Como o jornal alegou falta de recursos financeiros para o pagamento do total da dívida, os indígenas fizeram uma proposta alternativa para quitar a obrigação, que acabou sendo aceita pela empresa.
“Eles disseram que se fossem pagar em dinheiro, teriam que fechar o jornal. Eu disse que nós não queremos dinheiro. ‘Queremos que vocês contribuam com a comunidade, quero informar as pessoas para que elas saibam os absurdos que vocês falaram’. Também precisamos de pessoas formadas em áreas como Direito e de formação melhor para nossos professores. Isso é mais importante que dinheiro”, relatou o cacique da TI Toldo Chimbangue, Idalino Fernandes.
Pelo acordo firmado, o jornal irá custear vagas para estudantes indígenas nos cursos de Agronomia, Direito, e Enfermagem da UnoChapecó, além de um curso de pós-graduação – uma especialização lato sensu em Educação Intercultural: Metodologias de Ensino na Educação Básica – para uma turma de 20 a 30 professores indígenas na mesma instituição de ensino.
O pagamento do jornal à UnoChapecó será realizado por meio de permuta, com a cessão de espaço no diário para as veiculações da universidade. Em todas as vagas, a preferência é para os Kaingang de Toldo Chimbangue.
Os cerca de R$ 390 mil restantes da dívida serão pagos por meio da cessão de espaço no jornal, pelo período de cinco anos, para a veiculação de informativos, artigos, notas e quaisquer outras publicações de interesse dos indígenas, conforme a solicitação encaminhada pelo cacique Idalino. O MPF ressalta que não poderão ser veiculadas no jornal publicações que configurem crime ou ofensa a pessoas ou grupos, ou que incitem a prática de violência, de crimes ou de quaisquer outros atos ilícitos – exatamente os pontos pelos quais o jornal foi condenado.
“Sete palmos embaixo da terra”
Além do Diário do Iguaçu, foram réus na ação do MPF o ex-vereador de Chapecó pelo PFL e atual candidato pelo PSB, Amarildo Sperandio de Bairro, e o chargista Alex Carlos Tiburski dos Santos. Com a terra demarcada pela metade em 1985, os Kaingang reivindicavam, à época da publicação do jornal, a demarcação da totalidade de seu território – concluída somente em 2006 – e vivenciavam uma situação conflituosa com os não-indígenas que viviam em propriedades sobrepostas à área.
Em entrevista veiculada em janeiro de 2001 no Diário do Iguaçu, o então vereador Amarildo Sperandio afirmou: “é um absurdo os índios quererem ainda mais terra, se não produzem [...] muitos que estão hoje na reserva de Toldo Chimbangue não são indígenas autênticos. Todos nós sabemos disso, quando vemos índios louros, olhos claros”.
A charge de Alex Carlos (acima), veiculada na mesma edição, mostrava um homem com um machado, pronto para agredir um indígena e exclamando: “Já que índio quer terra, vô dá sete palmos de terra pro índio”. Em fuga, o indígena retratado deixa cair um celular – elemento que atestaria a “falsa identidade” dos Kaingang da região.
Na avaliação do MPF, a negação da identidade dos indígenas de Toldo Chimbangue servia para, assim, deslegitimar a demanda do povo pela demarcação de suas terras. Além disso, a discriminação e a incitação à prática de homicídio “foram publicadas em jornal de grande circulação no Oeste de Santa Catarina, propalando as matérias tendenciosas a um grande número de leitores, fomentando o repúdio às comunidades indígenas”.
Em sua defesa, o jornal e o chargista alegaram estar exercendo seus direitos à livre expressão, à crítica artística e à liberdade de imprensa, e o vereador ainda invocou sua imunidade parlamentar. Em contrapartida, o MPF afirmou que a liberdade expressão não é um direito absoluto e nem assegura a impunidade da imprensa. “O direito do indivíduo de dizer o que pensa não o exime de ser responsabilizado pelas ofensas irrogadas a outrem de forma desarrazoada”, afirma o MPF na peça que resultou na condenação.
Acordo positivo em um cenário desfavorável
O acordo judicial oferece uma oportunidade de combater o preconceito contra os indígenas na região Sul do Brasil, marcada pela segregação e pelo racismo contra os povos originários, conforme apontou recente relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Segundo o estudo, a imprensa local e os políticos que lucram votos com os conflitos são os principais responsáveis pela disseminação do preconceito contra os indígenas. Uma das motivações para o estudo foi o assassinato de Vitor Pinto, criança Kaingang de apenas dois anos natural da Aldeia Kondá, outra comunidade indígena de Chapecó, morto no colo de sua mãe quando ela vendia artesanato no litoral catarinense.
Para o Procurador da República de Chapecó (SC), Carlos Humberto Prola Júnior, o acordo é importante, especialmente pela autonomia que os indígenas terão na gestão do espaço no jornal. “A empresa não reconhece o equívoco, mas buscou uma forma de cumprir aquela obrigação, que é pesada para uma publicação pequena. Também foi bom para os indígenas, que saem satisfeitos com essa reparação”, afirma Prola.
Na avaliação do Procurador, houve um recrudescimento em relação às demandas dos povos indígenas no Poder Judiciário. “Infelizmente, houve um retrocesso nessa área. O Judiciário está pouco sensível a essa temática, em relação às demarcações e a todas as demandas indígenas. Essa decisão pode trazer isso à tona novamente”, complementa.
Para o cacique Idalino, a decisão e o acordo são importantes para o contexto da região. “Naquela época o preconceito era muito forte, a maioria da população de Chapecó era contra a gente, sem falar nos vereadores, que sempre faziam discursos contrários”, avalia a liderança Kaingang. Segundo ele, depois da decisão do TRF, as manifestações racistas dos vereadores de Chapecó, ao menos publicamente, cessaram.
O cacique Kaingang explica que a comunidade pretende utilizar o espaço no jornal – cedido até 2021 – para furar o bloqueio do racismo e da invisibilidade e para divulgar no oeste de Santa Catarina as reivindicações e a realidade vivenciada pelos indígenas de Toldo Chimbangue e de todo o país.
Fotos: arquivo Cimi Sul