Quando eu a conheci, no final dos anos 70, em Manaus, ela já era uma militante das causas impossíveis e das sonhadas utopias. Foi num evento organizado pelo CIMI - o Conselho Indigenista Missionário, na Casa Jordão. Estava cercada de índios de diversas etnias, com quem assinara um pacto de sangue, doando a eles suas energias, sua inteligência e uma vontade danada de viver e de lutar.
De onde é que aquela freirinha tão miudinha tirava tanta força e coragem? Naquela longa e tenebrosa noite, de censura e repressão, de medo e silêncio, eram poucas as vozes que se levantavam em defesa dos índios, das terras invadidas, das culturas sufocadas, das línguas proibidas e dos etnosaberes discriminados. Doroti entrou de cabeça na luta, com aquela radicalidade e aquela fé inabalável que só os profetas costumam ter, na melhor tradição que vem de Bartolomeu de Las Casas. Seu entusiasmo era contagiante.
Nesse processo de luta, encontrou Egídio Schwade, com quem se casou. Dois entusiasmos altamente explosivos, que incendiavam a todos nós que deles nos aproximávamos. Juntou-se a fome com a vontade de comer: Doroti e Egídio. Ficaram tão entrelaçados no compromisso inabalável de luta e de entrega total, que ninguém sabia mais onde é que um começava e onde o outro terminava.
Doroti, a eterna missionária, a doce radical, tinha aquela doçura do mel de abelha que o casal passou a cultivar num pequeno sitio no município de Presidente Figueiredo (AM). Os novos apicultores realizaram uma experiência no meio da capoeira, combinando criação de tambaqui, com criatório de aves e plantação de hortas, árvores frutíferas, mandioca, alface e feijão de corda. E cultivo de flores, é claro. Para as colmeias.
No início da construção do PT, lá estavam os dois. De tempos em tempos, quando nossos caminhos se cruzavam, ela aparecia com mais um filho no colo: Adu, Ajuri, Maiká, Maiá, Luiz. Agora, ela se foi, levada por um AVC traiçoeiro, mas tenho a impressão de que vou encontrá-la em qualquer lugar, ali onde houver alguém brigando por uma boa causa.
As sementes de Doroti
A notícia da partida de Doroti me foi dada pela bióloga, militante ambientalista e pesquisadora da Embrapa, Elisa Wandelli, que assina o belo artigo abaixo reproduzido, intitulado “As sementes de Doroti Mueler Schwade”. Diz Elisa:
A indigenista, agroecologista e militante socioambiental Doroti Alice Mueler Schwade com sua sensibilidade e determinação é uma das grandes construtoras de conhecimento para a sustentabilidade da Amazônia. “A índia-branca” Doroti, nasceu em Blumenau, SC, e veio para a Amazônia nos anos 60 como uma jovem e idealista freira para lutar pela emancipação dos povos indígenas. Posteriormente, casou-se com o também idealista indigenista Egídio Schwade e juntos semeiam alternativas para a soberania dos povos e para o respeito a todas as formas de vida da Amazônia.
As sementes de amor e de sustentabilidade de Doroti Schwade não são contaminadas com agrotóxicos, herbicidas, inseticidas, não são transgênicas e nem precisam ser semeadas com adubos químicos. As sementes de Doroti valorizam a vida, a soberania econômica e política dos povos, a força das mulheres e o meio ambiente e são regadas com a integração da sabedoria tradicional e popular e do conhecimento cientifico e muito amor.
Doroti transita com completo domínio entre o saber científico e o popular, sabe fazer uma inteligente integração entre a ciência libertadora e as práticas tradicionais dos povos da Amazônia e é uma incansável educadora e construtora participativa de conhecimentos para a sustentabilidade. Grande experimentadora agroecóloga, compartilha seus conhecimentos com as comunidades amazônidas, com os movimentos sociais e com todos os órgãos de pesquisa, extensão e ensino que buscam a sustentabilidade.
Sua filosofia de uso dos recursos naturais, de organização social e comunitária e de economia solidária e suas práticas agroecológicas e de criação de abelhas nativas no sítio da família em Presidente Figueiredo fazem parte de todos os cursos da Embrapa, do INPA, UFAM, IFAM e UEA que tratam da sustentabilidade rural. Doroti nos ensina que a agricultura deve produzir vida e não a morte dos igarapés, a infertilidade do solo, o desmatamento das florestas, a perda do conhecimento tradicional e alimentos que degradam a saúde humana. Ensina-nos que a verdadeira economia solidária começa com a mesa farta, diversa e saudável de nossas famílias e de nossos vizinhos.
Doroti nos alerta que povos soberanos se alimentam de seus produtos regionais, realizam agricultura sem dependência de agrotóxicos e adubos químicos, usam sementes que não perderam a capacidade de se multiplicar anualmente para enriquecer a indústria agroquímica e integram conhecimentos científicos e tradicionais em prol da qualidade de vida. Doroti demonstra que apesar de sua dedicada militância e magistério em prol de um mundo melhor, o principal papel social que homens e mulheres podem desempenhar para este fim é formar crianças éticas, humanitárias que valorizem a diversidade social e todas as formas de vida.
Doroti e Egídio Schwade constituíram uma família com cinco maravilhosos filhos, todos eles cidadãos que sabem amar e respeitar e que constituem um exemplo de vida para a transformação social e a qualidade de vida para sua comunidade e para a Amazônia.
Hoje, membros de movimentos socioambientais, indígenas, feministas, agroecologistas, das pastorais sociais, os que constroem uma ciência libertadora e os cidadãos éticos estão de luto pela passagem de Doroti Schwade. No entanto, todos temos muito a saudar e a agradecer pelo seu exemplo de vida e pela constante luta em prol de um mundo melhor.
As homenagens estão sendo realizadas na Igreja de sua comunidade em Presidente Figueiredo, cujo altar consiste de uma enorme pintura do rosto do lendário cacique Maroaga com lágrimas escorrendo devido à construção da BR 174 e da hidrelétrica de Balbina dentro do território Waimiri-Atroari, o que quase causou a extinção do combativo povo Kiña. Os Waimiri-Atroari e os demais povos da Amazônia perderam hoje uma grande aliada contra os impactos de obras faraônicas como a BR 174, BR 319, a hidrelétrica de Balbina, as hidrelétricas do Madeira e as do Xingu.
Consola-nos saber que entre as mais belas sementes de Doroti continuará frutificando entre nós sua maravilhosa família cujos filhos, Adu, Ajuri, Maiká, Maiá, Luiz e o queridíssimo companheiro Egídio Schwade continuaram exercendo dignamente suas cidadanias e nos mostrando que outra Amazônia é possível.
P.S. (postado posteriormente): Em 29 de julho de 2014, quatro ano após o adeus a Doroti, seu filho Mauricio Adu Schwade defendeu a dissertação de mestrado Riquezas Materiais e Imateriais: relações cidade e campo na Amazônia, no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da UFAM. Discutiu aí as fronteiras móveis entre cidade e interior. Da banca fizeram parte José Aldemir de Oliveira (orientador), Alfredo Wagner Berno de Almeida e este locutor que vos fala. Antes de começar minha arguição, contei uma história que me parece muito divertida. Numa banca de doutorado na UFF, na hora em que a banca deliberava, sai para o banheiro e no corredor encontrei a mãe da doutoranda que, incomodada com minhas observações na arguição, quase me espancou. A tese estava muito boa, mas - eu expliquei a ela - a crítica faz parte do processo de construção do conhecimento. Depois disso, nas bancas que participo, indago sempre se a mãe do mestrando ou doutorando está presente para saber como me comportar. No caso de Mauricio Adu não foi preciso indagar: Doroti estava ali presente, sua sombra pairava sobre todos nós.