Esse amazonense se tornaria, anos depois, sogro do cantor Lulu Santos. Seu nome: Walmiki Ramayana e Sousa de Chevalier, pai da jornalista Scarlet Moon. Formou-se em medicina na Bahia, mas nunca receitou uma aspirina. O que gostava mesmo era de escrever. Publicou livros, entre os quais Circo Sem Teto da Amazônia. Conquistou vaga de ‘imortal local’ na Academia Amazonense de Letras. Viveu muitos anos em Manaus, foi candidato derrotado a Assembleia Legislativa do Amazonas e aí se mudou de mala e cuia para o Rio, onde assessorou o ministro do Interior, no final da década de 1960. Foi aí que o conheci.
Na época, eu era repórter da ASAPRESS, agência de notícias que distribuía matérias a jornais de todas as regiões e que havia sido arrendada pela CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Decidi entrevistar o escritor sobre um tema que ainda hoje desperta o interesse da mídia e povoa o imaginário dos leitores: a cobiça internacional da Amazônia.
Havia uma onda nacionalistóide se espalhando pelo país, mas só no discurso. A ditadura militar, por um lado, entregava a economia do Brasil ao capital estrangeiro, sob a batuta do ministro Roberto Campos, apelidado de Bob Fields pelo humorista Stanislaw Ponte Preta. Por outro, jogava para a plateia, fazendo discursos do tipo “A Amazônia é nossa e ninguém tasca”. O ministro do interior, general Albuquerque Lima, chefe de Ramayana, era líder dessa corrente nacionalista.
- A União Soviética e os Estados Unidos planejam anexar a Amazônia – declarou o futuro sogro de Lulu Santos, nacionalista roxo. Espalhafatoso e retórico, ele chamou o rio Amazonas de “impatriótico”, porque suas águas cavam e engolem terras que são carregadas pelo Gulf Stream para a Flórida. Denunciou os padres estrangeiros que estariam montando uma extensa rede de espionagem em Manaus e no Solimões onde atuavam. E sentenciou numa frase de efeito:
- O rio Amazonas e os padres americanos vão levar Manaus de bubuia para Miami.
A honra de bubuia
MANAUS VAI DE BUBUIA PARA MIAMI, berrou a manchete de O Jornal, da empresa Archer Pinto. A matéria publicada em diversos jornais do Brasil foi distribuída, no Amazonas, pelo agente local da Asapress, Domingos Sávio Ramos de Lima. Ele e eu, ex-alunos redentoristas, fomos espinafrados pelo arcebispo de Manaus, D. João de Souza Lima, no programa radiofônico da Rádio Rio Mar, A Voz do Pastor, que nos acusou de ferir a honra dos padres, como se nós fôssemos os autores da frase e não Ramayana.
Contei essa e outras histórias na última sexta feira ao Laboratório de História da Imprensa no Amazonas (LHIA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). De passagem por Manaus, dei um depoimento tentando avaliar as relações das empresas jornalísticas com as diferentes instâncias do Poder, com os leitores, as fontes e os fatos, com a verdade e com a honra de quem se sente ferido pela mídia.
Lembrei, então, a pergunta formulada no dia anterior por meu amigo Paulo Figueiredo, advogado e jornalista, que viveu esses anos conturbados da política. Ele queria saber se fui processado por ferir a honra de alguém. Nunca ataquei a honra de quem quer que seja durante mais de 40 anos de exercício do jornalismo. Critiquei Deus e o mundo – mais o mundo do que Deus, embora de raspão tenha atingido alguns de seus representantes na terra – mas sempre a conduta pública, nunca a privada.
A honra de alguém só pode ser definida dentro do âmbito da vida privada, naquela esfera da intimidade dos relacionamentos familiares, maritais, pessoais, não profissionais. Algumas vezes, os jornais invadem esse território, mas essa nunca foi a minha praia. Um exemplo escabroso foi a polêmica entre o vereador Fábio Lucena e Andrade Neto, dono de A Notícia, que deixou a sociedade amazonense estarrecida. Baixaria pura!
No depoimento dado ao Laboratório de História da Imprensa, fui indagado sobre a coluna Taquiprati. As críticas contundentes, com humor, às vezes com deboche, às vezes ácidas, aqui feitas, se referem à conduta PÚBLICA de quem exerce um cargo PÚBLICO. Nunca ao comportamento privado, particular. Esse, não me interessa.
Quem exerce cargo público, num sistema democrático, está sujeito à avaliação, porque é remunerado com o dinheiro do contribuinte. Isso faz parte do exercício da cidadania. Um jornalista, que pretende ser uma espécie de autofalante para quem não é ouvido e se sente injustiçado, não pode calar. Se cada vez que a crítica à conduta pública de um agente público for considerada, espertamente, como atentado à honra, o Judiciário ficará entulhado de milhões de processos e não existirá imprensa livre. Quem assim obstrui a liberdade de imprensa deve ser penalizado.
A pesquisa histórica
Muitas histórias foram contadas ao Laboratório de História da Imprensa por vários jornalistas que já deram seu depoimento: Arlindo Porto, Almir Diniz, Benedito Azedo, Flaviano Limongi e Carlos Zamith. Outros estão sendo contatados: Phelipe Daou, Almino Afonso, Paulo Figueiredo, Leal da Cunha, Abrahim Aleme, Messias Sampaio, Deco Souza, Alfredo Lopes, Beth Azize, Baby Rizato e Ana Maria Blablablá. Não fica de fora nem Paulo Girardi, empresário que criou a bela experiência do Jornal do Norte.
A iniciativa do Laboratório, coordenado pelos doutores Luis Balkar Pinheiro e Luiza Ugarte Pinheiro, tem o objetivo de criar acervos documentais, visuais e bibliográficos destinados a fomentar a pesquisa histórica nesse campo. “A constituição de uma História da Imprensa no Brasil e, principalmente no Amazonas, está ainda em estágio embrionário, exigindo esforços coletivos e estudos sistemáticos” – escreveram os dois pesquisadores.
Luiza lembra que a UFAM já produziu um catálogo “Cem anos de Imprensa no Amazonas”, publicado em 1986 por Cassiano Anunciação, o Batará (1ª edição) e pela Editora Calderaro, em 1990 (2ª edição). O Laboratório prepara terceira edição ampliada, Os vice-presidentes da Editora Ana Cássia, Cirilo Anunciação e Cyro Batará, já manifestaram interesse pela publicação.
Se a imprensa é esse imenso circo sem teto da Amazônia, nós que a construímos – jornalistas e leitores - somos os palhaços, os equilibristas, os domadores, os trapezistas, os malabaristas, os pernas-de-pau e as mulheres barbadas. Cada um escolhe o que quer ser.