Um Cordeiro estava bebendo água no rio Uraricuera, numa sombra cercada por buritizais. Quando levantou a cabeça, avistou um Lobby gordo, cevado, com a barriga roliça entupida de arroz, que também bebia água vinte passos rio acima.
– “Saia já daí. Você está sujando a água que eu bebo” – berrou o Lobby ameaçador.
- “Doutor – respondeu o Cordeiro – não tem lógica a fala de Vossa Excelência, porque a correnteza vem daí para cá”.
Diante do argumento irrefutável, o Lobby aterrorizou:
- “Não importa. Se quiser continuar vivo, você vai ter que sair daqui, porque esse rio e essas terras me pertencem”.
Dito isso, chamou um exército de raposas trapaceiras - tabeliães, advogados, juízes, procuradores - que trouxeram as provas: uma montanha de papéis escritos, com citações em latim, carimbados pelo Cartório da Selva, datados de 1978, com firmas reconhecidas.
O Cordeiro não se intimidou:
- “Data venia, doutor Lobby, mas o senhor veio de fora. Recentemente. Eu não! Eu nasci aqui, onde vive minha família há mais de três mil anos”.
- “Então, prova”, exigiu o Lobby. – “Prova”.
O Cordeiro narrou, então, histórias de Macunaíma, recitou poesias e cantou cantigas de ralar mandioca - as cadenciadas ´kesekeyelemu´. Depois, disse:
- “Há três mil anos, os nossos avós já cantavam histórias que trazem os nomes das plantas, animais, peixes, montanhas, rios e pedras da região. Fomos nós que batizamos, em nossa língua, as coisas da terra e do céu”. Apontou pra cima: - “Olhe ali a Kaiuanog, que vocês chamam Vênus! Tá vendo Zilizuaipu, as Plêiades? O Cruzeiro do Sul, em nossa língua, é o mutum que voa. As lembranças dos velhos são provas de que esse céu e essas terras nos pertencem”.
Como negar evidências tão incontestáveis baseadas na oralidade, se os documentos orais são muito anteriores aos escritos? Foi aí que o Lobby, sem poder argumentar, resolveu mexer com os brios e com o sentimento de amor que os animais têm pelo lugar onde moram. Inventou um bicho-papão para assustá-los, intimidando:
- “Ah, mas se a terra é de vocês, então a segurança de toda a floresta está ameaçada. Se ela for invadida por um batalhão de gorilas, orangotangos e macacos, vocês não poderão defendê-la”.
O Cordeiro riu:
- “Fique tranquilo, doutor. As cobras criadas da capital, amigas de Vossa Excelência, cuidaram disso. Aprovaram a lei da selva, em 1988, reconhecendo que cordeiros têm posse e usufruto da terra, mas não a propriedade. A propriedade é da união de todos os bichos. Portanto, gorilas podem entrar aqui em qualquer momento para defender a soberania florestal. Os cordeiros não podem e nem querem impedir a entrada deles. Só queremos viver em paz, chamando a nossa cordeirinha de ‘yewánape-kulu’ (meu coraçãozinho querido) ou de ´u´le zapeli´ (pluma da minha flecha)”.
- “Ah, tá vendo só! – berrou o Lobby irritado. – Bem que eu desconfiava! Cordeiros só querem viver no bem-bom, namorando. São preguiçosos, não plantam, não produzem. O Lobby precisa desta terra para plantar arroz e alimentar os bichos da floresta. Nas mãos de ociosos, a terra fica improdutiva, os bichos vão passar fome. O arroz já está faltando por causa dos cordeiros”, disse, acenando com outro bicho papão: a fome. Convocou, então, as hienas e os abutres para escrever e publicar o que ele havia dito.
O Cordeiro desmentiu, correndinho. Explicou que há muito tempo sua família planta milho, tabaco, amendoim, batata doce, cará e mais de quatrocentas variedades de mandioca:
- “Taí o Tatu que não me deixa mentir. Tatu, tu tá aí?”.
O Tatu tava e contou que havia cavado sítios arqueológicos, provando que por volta do ano 5.000 a.C. os cordeiros já haviam domesticado a mandioca; falou que em suas escavações havia encontrado um forno, comprovando que desde 3.000 a.C., os cordeiros fabricavam farinha, produto ainda hoje consumido em toda a floresta (TATU in Lathrap:1998, 36).
Aí, o debate esquentou. Sem mais argumentos, o Lobby convocou como testemunhas de seus direitos sobre a terra Hélio, o Jaguar Ibe, e Gilmar, a Anta de paletó. O Jaguar objetou (é isso mesmo, ele nunca pondera, ele objeta) que os cordeiros deviam ser expulsos da terra, porque eram atrasados, não tinham conhecimentos, não dominavam as técnicas. Contou que todos os bichos, no passado, haviam sido cordeiros, mas ´evoluíram´, se ‘civilizaram’ e se tornaram lobbies-homens. Sentenciou:
- “Ninguém pode deter a marcha da civilização. Dentro de alguns anos, não haverá mais cordeiros na floresta”. (JAGUAR IBE, Folha de São Paulo: 26/04/2008).
O Cordeiro pediu um laudo de dois especialistas: a amiga Coruja e a prima Carneiro da Cunha. A Coruja, que é do ar do lavrado, havia estudado viveiros de plantas. Contou que os cordeiros possuíam técnicas e conhecimentos sofisticados, faziam experimentos genéticos, melhorando a raça de vegetais, o que foi comprovado com pesquisas feitas em suas roças, onde é possível encontrar frutas, como o abiu, do tamanho de uma melancia, quando no resto da floresta, não passava do tamanho de um limão (CORUJA In KERR: 1983). Sábia e sacana, a coruja ironizou:
- “Engraçado, os cordeiros pensam que quem vai desaparecer em alguns anos são os jaguares e os lobbies”.
Carneiro disse que era uma piada chamar de ‘civilização’ aquilo que os arrozeiros beneficiados com isenção fiscal fizeram na floresta. Citou o caso da Fazenda Casa Branca, processada criminalmente porque aplicou agrotóxicos nos arrozais, e com isso matou muitas aves e outros bichos, poluiu igarapés, e prejudicou a saúde de todo mundo, causando grandes danos. Disse que a terra dos cordeiros foi identificada, demarcada e homologada com muita dificuldade durante trinta anos, seguindo as leis feitas pelo próprio Lobby, e que agora era uma tremenda injustiça desrespeitar essas leis (CARNEIRO DA CUNHA & ARAUJO, FSP, 26/04/2008).
O que vai acontecer daqui pra frente? O Cordeiro sabe que existem raposas que não são trapaceiras, hienas que não são mentirosas, orangotangos sensíveis e inteligentes, cobras criadas que não são venenosas. Desses bichos honestos, depende agora a vida dos seres vivos, a biodiversidade, a poesia, os cantos, as danças, as narrativas, as línguas, os etnosaberes. Se eles compreenderem que o que está em jogo é o destino de todos os bichos, o cordeiro fica na terra. Caso contrário, será expulso pelo faroeste, como ensina La Fontaine em sua fábula. Voilà!
O Lobby, buscando qualquer pretexto para se apropriar das terras do cordeiro, diz:
- “No ano passado você falou mal de mim”.
O Cordeiro respondeu:
- “No ano passado, eu ainda não tinha nascido”.
O Lobby: - “Se não foi você, foi teu irmão”. O Cordeiro: - “Sou filho único, não tenho irmão”. O Lobby: “Vou te devorar assim mesmo”. Moral da fábula: a ´razão´ truculenta do mais forte prevalece, quando a lei não é respeitada.
P.S. - Esta fábula atualizada do cordeiro e do diabo na serra do sol sacrificou a sutileza, para ser entendida pelo Lobby. Foi escrita por um descendente de La Fontaine, chamado Joseph Sur-la-mer Davantage e traduzida por mim, Taquiprati (Here for you), aos vinte e sete dias do mês de abril do ano 2008. O referido é verdade e dou fé.