Quando cheguei no aeroporto Eduardinho, em Manaus, às 6 horas da manhã dessa quarta-feira, a primeira coisa que vi foi a careca do candidato a vice-governador, José Melo Merenda (PMDB – vixe, vixe). Fiquei em pânico. Senti que a presença dele ali, naquele momento, era uma ameaça ao curso de História do Médio Rio Negro que eu ia dar para professores e lideranças indígenas em Barcelos.
– “Minha santa periquita! Não vou poder viajar. Meu requerimento, dessa vez, vai ser indeferido” – pensei, sem tirar os olhos de cada passo do Melo Merenda, que estava inquieto, caminhando de lá pra cá, como um leão sem juba dentro de uma jaula.
O requerimento em questão é uma estratégia para dominar o medo de viajar de avião. Foi inventado pelo meu amigo Marcus Barros, ex-reitor da Universidade Federal do Amazonas e ex-diretor do IBAMA, na época em que ele e eu fazíamos parte do sindicato nacional dos professores universitários e viajávamos muito. Com o requerimento, conseguíamos dominar o nosso medo, que algumas vezes beirava ao pânico. Seu uso pode ser útil aos que sofrem da mesma fobia.
Trata-se de uma técnica simples que, de saída, procura identificar as causas do temor de um acidente aéreo. Descobrimos que a origem do nosso era o receio de uma punição divina – merecida, diga-se de passagem – pelos pecados que cometemos. Marcus agora anda mais calmo, mas pecava muito contra o 6º mandamento. Mais tímido, eu também, na minha juventude, andei pecando, embora só em pensamento, contra o 9º mandamento, sobretudo quando o próximo não estava próximo. De qualquer forma, éramos dois pecadores.
– Parceiro, quem entra num avião carrega consigo os próprios pecados. Aí, se todos os assentos forem ocupados apenas por pecadores, o peso dos pecados, auxiliado pela lei da gravidade, vai derrubar o avião. Precisamos de crianças inocentes viajando que funcionem como contrapeso – dizia Marcus, com o olho rútilo e os lábios trêmulos. Fazia sentido. Tinha lógica. Por isso, a gente ficava com o pescoço francês na mão, quando embarcava num avião.
Vai daí que no momento do check-in, procurávamos observar se havia crianças embarcando. Em caso afirmativo, a gente ficava aliviado e impetrava uma espécie de habeas corpus preventivo, numa conversa olho no olho com o Todo Poderoso. Fazíamos um requerimento oral em forma de oração, com as seguintes palavras:
Excelentíssimo Sr. Todo Poderoso,
Os abaixo assinados se dirigem a Vossa Excelência para expor e requerer o que segue.
Considerando:
1. Que os requerentes sempre obedeceram oito dos dez mandamentos;
2. Que a carne é fraca, e os requerentes, algumas vezes, transgrediram o 6º e o 9º mandamentos, que são os mais fáceis de ser perdoados;
3. Que os requerentes estão profundamente arrependidos e fazem firme propósito de emenda;
4. Que alguns passageiros deste voo são criancinhas e, em caso de acidente aéreo, pagarão pelos nossos pecados, o que não é justo;
Diante dos fatos aqui expostos, requerem:
1. Que o Senhor Todo Poderoso tenha piedade dessas crianças inocentes e não deixe o avião cair.
Nesses termos
Pedem Deferimento
Diante de argumento tão convincente, o Supremo Arquiteto do Universo sempre deferiu o pedido, porque não pode permitir que o justo pague pelo pecador. Com o medo assim dominado, viajávamos com tranquilidade.
Acontece, leitor (a) que nessa quarta-feira não havia uma só criança no salão de embarque, o que já me deixou nervoso. E ainda por cima, lá estava o Zé Melo Merenda, que transgrediu quase todos os mandamentos, carregando consigo toneladas de pecados. Aquele aviãozinho da Trip não aguentaria sobrevoar com os pecados do Melo.
O José Melo foi agente da Assessoria Especial de Informação da UFAM (AESI) na época da ditadura militar e levantou falso testemunho, transgredindo o 8º mandamento. Ainda por cima pecou contra o 11º mandamento, que não estava escrito na tabua de Moisés, mas faz parte da tradição oral: “Não dedurarás teu próximo”. Mas seus pecados cabeludos foram cometidos quando ele era secretário de educação e estão relacionados aos ovos da merenda escolar.
Na época, o deputado Luis Fernando Nicolau denunciou o desvio de duas mil toneladas da merenda escolar, no valor, então, de R$ 6 milhões, o equivalente a 215 caminhões entupigaitados de alimentos. Acusou diretamente o governador Amazonino e seu secretário de educação José Melo como responsáveis pelo desfalque.
O Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma auditoria, procurando os ovos nas notas de empenho e nas notas fiscais. Descobriu que a SEDUC pagou por eles um preço muito superior aos valores do mercado e que os ovos do Melo eram superfaturados. Os auditores visitaram as escolas do Amazonas, na hora do recreio, para ver se os ovos eram hipernutritivos e constataram que não estavam sendo consumidos. Deram uma incerta nos armazéns das empresas fornecedoras, que eram os fiéis depositários das mercadorias, e nada encontraram. Os ovos desapareceram.
Na realidade, muitos alimentos, incluindo ovos e suco concentrado, nunca chegaram à rede escolar, embora tivessem sido pagos antecipadamente. O TCU concluiu que houve superfaturamento na compra de alimentos com recursos do governo federal durante as administrações dos secretários Manoel Veríssimo e José Melo. Na época, o repórter Serginho Bartholo registrou o voto do ministro relator do processo, Paulo Afonso Oliveira, que considerou improcedentes as explicações de Melo e Verissimo.
Por isso, leitor, quando vi o José Melo no Eduardinho, carregando com ele o peso de várias toneladas de merenda escolar e os recursos desviados da Fundação de Assistência ao Estudante (FADE), tremi nas bases. “Se ele entrar no avião, eu não viajo, não corro esse risco nunca” – pensei, ainda mais porque não havia crianças no pedaço, me impossibilitando de usar o requerimento. Alguém aumentou meu pânico, dizendo que o ex-governador Eduardo Braga também ia viajar com o Melo em campanha pelo interior.
"Danou-se!" – pensei. É dose! Zé Melo e Eduardo Braga juntos no mesmo avião – o Dudu depois da variação patrimonial declarada no Imposto de Renda – constituem uma bomba na iminência de explodir. Felizmente para todos os passageiros, os dois tomaram um jatinho particular, nos livrando da companhia indesejada. Parece, no entanto, que o destino do Melo era o mesmo que o meu: Barcelos. Ontem à noite, no forró do ‘point’ de Barcelos, um barzinho chamado Espoca-Velha, vi uma careca reluzente parecida com a dele sacolejando o esqueleto e rodopiando no salão de dança. Eu, hein, Rosa? Vade retro, capiroto!